Ávila & Arauz: Precisamos de descolonizar o nosso futuro

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A emergência biológica e climática é uma realidade global, mas não há justiça na forma como suas causas e consequências estão divididas entre o Norte e o Sul.

Em média, uma pessoa nos Estados Unidos consome 44 milhões de calorias por dia. O corpo humano requer o consumo de 2.000 calorias por dia. O consumo exossomático de energia – para fins não-metabólicos, como transporte ou eletrodomésticos – de um cidadão do Norte excede em várias centenas de vezes o de um cidadão pobre do Sul. Vamos pensar no número de carros per capita para se ter uma ideia aproximada. Mesmo o consumo endossomático de energia – consumo calórico corporal – ainda é substancialmente menor no Sul. A fome e a desnutrição ainda são uma realidade para um sétimo da população mundial.

Mas as famílias trabalhadoras do Norte não são culpadas por essas diferenças; a culpa é do capitalismo bio-ignorante. E também sofrem com seus efeitos. Vivemos numa época em que um futuro próspero é uma perspectiva para muito poucos, pois os gestores da crise pós-Covid-19 poderiam apagar num segundo as vitórias sociais que os movimentos sociais levaram décadas para construir. Este artigo é um apelo urgente a aproveitar o momento e criar o futuro de forma diferente.

Apenas 100 corporações no mundo são responsáveis por 71% de todas as emissões globais. Nós sabemos os seus nomes. E os nomes dos seus CEOs. Os seus escritórios não são vigiados – estão à vista de todos, intocáveis pelos tribunais. O dinheiro deles, está fora do alcance, no exterior. A desordem, a dor e a destruição que causam estão espalhadas por toda a parte.

As consequências da emergência climática são sentidas principalmente pelos países dos trópicos, particularmente nas suas regiões mais pobres. Há inúmeras nações insulares próximas ao equador e comunidades inteiras em perigo de desaparecerem devido à elevação do nível do mar.

Os/as progressivo/a(s) do Norte propuseram um Novo Acordo Verde, ou Green New Deal, como uma iniciativa ousada e justa para desmantelar as fracassadas políticas de austeridade e para combater a emergência biológica e climática. Entretanto, lembramos os/as nosso/a(s) amigo/a(s) que o vírus ou o clima não param nas fronteiras. Nem os efeitos e o poder dos seus mercados e o seu poder militar sobre o resto do planeta. E a luta contra a actual emergência climática e catástrofe sanitária também não deve parar na fronteira. Como progressivo/a(s), não podemos adiar o construção de uma visão compartilhada do nosso futuro. E isso não pode acontecer sem o desmantelamento das estruturas coloniais do nosso presente.

É por isso que propomos uma conversa inicial para desenvolver um Novo Acordo Verde Digital global para descolonizar o nosso futuro com base em quatro elementos introdutórios: descolonização do capitalismo bio-ignorante, descolonização dos veículos políticos, descolonização do dinheiro e descolonização da tecnologia.

Descolonização do capitalismo bio-ignorante

O capitalismo bio-ignorante vai gritar, com voz ensurdecedora, que para "voltarmos ao normal", alguns – os/as vulneráveis e pobres – precisam de ser sacrificados. As suas mortes, evitáveis apenas se a maquinaria parar, não serão contadas – como argumenta Alex Cobham num recente livro. O capitalismo baseia-se no lucro. O lucro está na contabilidade individualista com base no dinheiro. O actual quadro contabilístico ignora a vida: é bio-ignorante. Os padrões contábeis em todo o mundo não são definidos por uma organização internacional, mas por um cartel colonialista privado, estabelecido pelas Quatro Grandes empresas de contabilidade do Norte Global e outros guardiões do capitalismo, chamado International Accounting Standards Foundation.

O capital vive na contabilidade. É por isso que a contabilidade do capital deve se tornar um bem público internacional e precisa urgentemente de ser ecologizada e bio-atualizada. Como é que as empresas podem continuar a fazer negócios e não serem responsabilizadas por uma emergência climática global? Por tragédias humanas e ecológicas em larga escala? E como é que o impacto sobre os bens comuns naturais pode ser deixado de fora da equação contábil?

A contabilidade corporativa deve ser radicalmente reformada: as empresas capitalistas não devem reportar e distribuir os seus lucros à custa de enormes passivos ambientais, mesmo passivos contingentes. O provisionamento para emergências climáticas, incluindo provisões retroativas para empresas de petróleo transnacionais por não divulgarem o seu papel como cúmplices no desastre climático durante décadas, deveria ser exigido como parte da contabilidade financeira.Como é que as empresas podem receber incentivos fiscais, subsídios governamentais e socorros massivos sem o reconhecimento financeiro de sua contribuição para os nossos desastres atuais?

O capital vive na contabilidade. É por isso que a contabilidade do capital deve se tornar um bem público internacional e precisa urgentemente de ser ecologizada e bio-atualizada.

O valor presente dos custos futuros da reabilitação local dos locais de extração agrícola e mineral e da compensação pelo desastre climático deve ser incorporado nos balanços para refletir a verdadeira insolvência das indústrias extrativistas. As operações extrativistas da Chevron, com os seus derramamentos de petróleo na Amazônia intocada, teriam sido lucrativas se tivessem originalmente contabilizado os custos futuros de remediação e reparo? A contabilidade das emissões auditadas do ciclo de vida deve fazer parte da divulgação das grandes empresas e, posteriormente, estar sujeita às regulamentações de emergência climática.

Algumas empresas de energia alternativa afirmam reduzir as emissões na última parte da cadeia de valor, mas ignoram as maiores emissões líquidas de sua cadeia de produção internacional. A contabilidade não pode permanecer na esfera dos Quatro Grandes; a contabilidade – a principal regulamentação do capital – deve ser recuperada para um bem comum internacional num fórum como as Nações Unidas.

O capitalismo colonial, também conhecido como grandes corporações transnacionais, opera no Sul com impunidade. Há algum tempo, ditam as suas próprias regras, mesmo no Norte Global. Colectivamente, e às vezes individualmente, são mais ricos e mais poderosos que países inteiros. Operam em detrimento da vida humana (para não mencionar dos direitos humanos) e ignoram completamente a vida de outras espécies. A conservação da biodiversidade não é apenas a aspiração dos taxonomistas do Norte, é também o genoma de um futuro alternativo sustentável; é o conhecimento codificado embutido na sabedoria ancestral das comunidades que foram colonizadas, principalmente no Sul.

O comércio internacional e o direito de propriedade intelectual em vigor hoje privilegiam o "capital intangível" colonial em detrimento do conhecimento sulista embutido no nexo ancestral e na biodiversidade. Um Novo Acordo Verde apoiaria os esforços do Sul (principalmente na Organização Mundial da Propriedade Intelectual das Nações Unidas) para valorizar a biodiversidade e a sabedoria ancestral como forma de conhecimento protegido e permitir que países e comunidades do Sul beneficiem de produtos subsequentes derivados desse conhecimento, tais como biotecnologia comercializável, medicamentos ou cosméticos.

O direito económico internacional implantado nas últimas décadas injectou esteróides coloniais no corpo do capitalismo bio-ignorante.

O direito económico internacional implantado nas últimas décadas injectou esteróides coloniais no corpo do capitalismo bio-ignorante. Tratados bilaterais de proteção ao investimento com arbitragem neocolonial e administração privada ("solução de controvérsias investidor-estado") aprofundaram a impunidade do capitalismo colonial e subjugaram nações inteiras às corporações. Por exemplo, o ICSID do Banco Mundial, com sede em Washington, recentemente condenou o Paquistão a pagar mais de US$ 6 bilhões a uma empresa extrativista transnacional por não lhe conceder permissão (por razões ambientais) para extrair; esta é uma repetição de episódios similares contra países da África e da América Latina que ousaram priorizar o meio ambiente e comunidades vizinhas ou a soberania nacional sobre os lucros das empresas extrativistas transnacionais.

Um Novo Acordo Verde Digital global deve imediatamente acabar com os tratados que protegem os "investimentos" das empresas extrativistas transnacionais no Sul de forma colonial e descartar o desastroso Tratado da Carta da Energia e sua suposta expansão para o Sul. Deve implicar uma moratória sobre todos os novos tratados de investimento. Para que os esforços de resgate da Covid-19 tenham sucesso, precisamos urgentemente de uma suspensão global da arbitragem investidor-estado e de uma moratória sobre outras regras de comércio internacional e de investimento de desenho colonial.

A relação do capital com o trabalho também deve ser verde. Na maioria das metrópoles do mundo, os/as trabalhadore/a(s) perdem mais de duas horas por dia em deslocação de casa para os seus locais de trabalho e vice-versa. Indiscutivelmente, os/as trabalhadore/a(s) pagam o custo financeiro do transporte. Mas, sem dúvida, os/as trabalhadore/a(s) também pagam o custo do tempo para chegar ao seu local de trabalho, como o isolamento pelo coronavírus tem mostrado. Um Novo Acordo Verde reduziria efetivamente a jornada de trabalho em aproximadamente duas horas por dia ao estabelecer que a jornada de um trabalhador contará desde o momento em que ele colocar os pés fora de sua casa até o seu retorno a casa. As modernas tecnologias de vigilância (infelizmente) já fazem da fiscalização um esforço trivial. Isto não só irá efetivamente elevar as condições de vida dos trabalhadores, mas também tem o potencial de aumentar o emprego global e reequilibrar as relações materiais de gênero que hoje favorecem amplamente o patriarcado. Além disso, essa medida arrojada, mas simples, movimentaria capital para pressionar o investimento em transportes públicos e planeamento urbano.

Assim como a contabilidade de capital, as estatísticas do Produto Interno Bruto (PIB) que ignoram as leis da física, da química e da biologia devem ser radicalmente reformadas. A pandemia de coronavírus tem demonstrado claramente essa inadequação. No esquema actual, a extração é considerada produção, mas a regeneração do solo não. A destruição da floresta por capital é considerada produção, mas o reflorestamento pela natureza não. O trabalho feminino vendido ao capital ou a outros homens é adicionado ao PIB, mas as mulheres que alimentam seus filhos não. A "economia de serviços" comercializada soma-se ao PIB, mas o cuidado humano nos lares, a solidariedade local e a redistribuição social que salva vidas não. O sistema das Nações Unidas e os governos nacionais devem substituir rapidamente o PIB por uma contabilidade biofísica coerente que leve em consideração a ligação dinâmica entre a humanidade e a natureza. O apelo por uma nova medida tem sido uma proposta repetida recentemente e ecoada por Andrés Manuel López Obrador, actual presidente do México: a recuperação econômica após uma pandemia não vai acontecer se o bem-estar das pessoas, especialmente daquelas que tradicionalmente foram deixadas para trás, não for tido em conta.

Essas reformas contábeis seriam uma revolução que reequilibraria os termos de troca entre o Sul e o Norte, e entre os produtores rurais de alimentos e os consumidores urbanos. Só então começaremos a avançar na urgência desesperada de mudar. Para isso, os economistas crematísticos devem ficar para trás e deixar que a métrica da nossa espécie seja conduzida por geógrafos, demógrafos, biólogos, médicos, nutricionistas, epidemiologistas, hidrólogos, engenheiros ambientais e afins. É o conhecimento deles que deve ser uma prioridade, são suas instituições subfinanciadas que devem ocupar o centro do palco e são eles que devem reportar aos nossos líderes políticos nas cúpulas multilaterais.

Descolonização de veículos políticos

A descolonização dos veículos políticos é uma tarefa difícil num estado mundial de guerra perpétua quando nem mesmo uma pandemia global conseguiu um cessar-fogo geral. O exército dos Estados Unidos é um dos maiores poluidores, com emissões mais elevadas do que todos os países industrializados. Mas a guerra não é o único veículo que os detentores de poder utilizam para impor sua vontade. Os poderosos usam a privatização da justiça através de tratados bilaterais de investimento e de acordos de livre comércio – um sistema controlado por um pequeno grupo de firmas de advogados, todos do Norte Global – e com a captura do judiciário para administrar a proliferação de casos de justiça contra ambientalistas e líderes progressivos que lutaram por justiça climática, prestação de contas e reparações por séculos de extrativismo. Muito/a(s) desse/a(s) líderes foram demonizado/a(s) enquanto governos poderosos e a imprensa corporativa fecharam os olhos para a violência política generalizada que resultou na morte de centenas de activistas sociais e ambientais.

Uma ideia inicial será reavivar o princípio da jurisdição universal ao nível global que está a ser atacado, e ampliar a sua aplicabilidade para processar danos ambientais maciços como um crime contra a humanidade. Isso deve ser aplicado por qualquer tribunal. Faz parte da luta por um tratado que ligue as empresas transnacionais aos direitos humanos. Ao mesmo tempo, todos os bens dos autores devem ser apreendidos e utilizados para reparar os danos causados, aplicando a doutrina da parceria no crime e atingindo todos os facilitadores desses crimes.

Reavivar o princípio da jurisdição universal ao nível global que está a ser atacado, e ampliar a sua aplicabilidade para processar danos ambientais maciços como um crime contra a humanidade.

Também devia haver uma revisão da legislação e da formulação de políticas globais, incluindo a ajuda colonial para práticas comerciais que dominam a Organização Mundial do Comércio, em que países em desenvolvimento são intimidados a adoptar regras perpétuas em seu detrimento e, como explicado acima, cujos activos mais valiosos existem apenas para nações poderosas acumularem e privatizarem. Todo o sistema deve ser reformulado e redefinido para servir as pessoas, acima, e além, do lucro. Um primeiro passo será uma moratória sobre o uso dos tribunais privatizados para punir os países por adoptarem regulamentações ambientalmente amigáveis.

Descolonização de dinheiro

O dinheiro é hierárquico. É de natureza colonial. Um governo, os Estados Unidos, tem o privilégio exorbitante de ter um fundo ilimitado. Este privilégio do dinheiro infinito tem sido compartilhado com aliados selecionados no Norte Global com as chamadas linhas deswap. Tem poder de veto nos bancos multilaterais que podem fornecer assistência monetária numa emergência planetária. Tem o privilégio da triagem monetária em emergências biológicas e climáticas; decide quem tem dinheiro para viver e quem tem dinheiro para morrer.

Um enorme aumento no investimento público de um país do Norte Global não pode ser suficiente, mesmo que alguma procura agregada e os seus multiplicadores possam filtrar para o Sul. O dinheiro deve ser descolonizado o máximo possível. Precisamos de alívio quantitativo (quantitative ease, QE) planetário para emergências biológicas e climáticas. Precisamos de um bio-QE internacional.

O dinheiro é hierárquico. É de natureza colonial. Um governo, os Estados Unidos, tem o privilégio exorbitante de ter um fundo ilimitado.

Isso só pode ser feito com um tipo de dinheiro internacional que poucos conhecem mas que já existe: Direitos Especiais de Saque (DES). Isso exige que todos os países instruam o Fundo Monetário Internacional a emitir trilhões de DES para investimento público de todos os países nas emergências biológicas e climáticas da nossa espécie. Devido às disparidades tecnológicas pré-existentes, esse aumento da liquidez internacional até impulsionaria as exportações do Norte Global. Além disso, um Novo Acordo Verde global incluiria a emissão emergencial de trilhões de DES a serem administrados por órgãos públicos como a Organização Mundial da Saúde, o Alto Comissariado para Refugiados, a UNESCO e sua Comissão Oceanográfica Intergovernamental, e a Organização Meteorológica Mundial. O desafio colocado pela extensa troca de DES envolverá a necessidade de DES digitais ou eletrônicos, do tipo proposto por progressivos como Yannis Varoufakis einsiderscomo Mark Carney ou Tobias Adrian.

Esta transferência de riqueza para o Sul Global vai começar a preparar o cenário para a descolonização do nosso futuro.

Bancos centrais e supervisores financeiros do Sul Global são obrigados a seguir os ditames das instituições sediadas em Basileia, Washington e Paris, totalmente dominadas pelo paradigma do capitalismo bio-ignorante na sua pior versão dogmática: a financeirização.Os grupos soberanos são destituídos do seu estatuto de direito internacional público e reduzidos a meros "partidos comerciais" sujeitos às leis imperiais do Estado de Nova Iorque ou Londres. As forças progressivas devem ser sérias em democratizar os bancos centrais e eutanizar os rentistas. Os bancos centrais são as instituições mais poderosas do mundo moderno, porém as menos democráticas. Os grupos progressivos devem planear explicitamente a aquisição democrática dos bancos centrais e os seus clubes internacionais.

Finalmente, a emissão de dinheiro internacional é importante, mas também deve haver uma real transferência de riqueza. As reparações para os povos colonizados do mundo devem ser quantificadas como dívida ecológica, e pagas com bens reais. Esta transferência de riqueza para o Sul Global vai começar a preparar o cenário para a descolonização do nosso futuro.

Descolonização da Tecnologia

Uma nova e mais pronunciada dinâmica colonial chegou nos últimos tempos. O colonialismo digital é a nova implantação de um poder quase imperialista sobre um grande número de pessoas, sem o seu consentimento explícito, manifestado em regras, desenhos, línguas, culturas e sistemas de crenças por um poder amplamente dominante. Disfarçada de 'transformação digital', a pandemia da Covid-19 tornou explícita e tangível esta agressiva e desajustada dinâmica de poder. Uma transformação que até contribui para a destruição acelerada de todo o planeta.

Hoje, os/as Gigantes da Tecnologia escrevem e ditam as regras que os regulam, reduzindo o poder dos Estados sobre o seu futuro, enquanto instalam um sistema de vigilância global para concentrar o poder neles. As regras são projetadas para perpetuar efetivamente esse poder, independentemente de mudanças no governo. Um exemplo são os acordos de livre comércio recentemente aprovados, como o Acordo de Parceria Transpacífica, um projeto de futuro digital que devemos temer como inimigo comum das forças progressivas, que bloqueia a possibilidade de os países construírem, possuírem e controlarem seus futuros digitais. O acordo evita a todo custo enfrentar a justiça ou pagar impostos, e até permite a participação de empresas tecnológicas estrangeiras no desenvolvimento de políticas nacionais.

De forma semelhante às suas alianças profanas com as agências militares e de espionagem dos Estados Unidos, os gigantes da tecnologia e da extração estão a unir forças para utilizar inteligência artificial na aceleração da extração de petróleo com análises avançadas, modelagem para exploração e otimização de oleodutos.

Enquanto alguns dos/das gigantes da tecnologia se comprometeram publicamente a defender e até mesmo financiar a inovação para um futuro verde, pouco/a(s) estão dispostos a se manifestarem. De forma semelhante às suas alianças profanas com as agências militares e de espionagem dos Estados Unidos, os gigantes da tecnologia e da extração estão a unir forças para utilizar inteligência artificial na aceleração da extração de petróleo com análises avançadas, modelagem para exploração e otimização de oleodutos. Segundo a Greenpeace, o contrato da Microsoft com a ExxonMobil pode levar a emissões superiores a 20% da pegada anual de carbono da gigante tecnológica. Os/as líderes da tecnologia estão impulsionando a expansão e a eficiência da indústria de extração de combustíveis fósseis que precisa ser desmantelada. A automação e a inteligência artificial estão efetivamente a acelerar a destruição do planeta, e empresas como a Amazon, Google e Microsoft são as facilitadoras.

Acrescente a isso a sua abordagem de "impunidade embutida", com suas empresas fora do alcance dos tribunais e autoridades fiscais nacionais e seus "activos intangíveis" de propriedade de empresas de caixas postais guardadas por escritórios de advocacia offshore da K-street e Magic Circle. Por exemplo, um dos principais beneficiários da crise da Covid-19, a Amazon pagou US$ 0 em impostos federais em 2018 nos EUA e tem escritórios em 30 países ao redor do mundo.

Para o cidadão normal, a Grande Tecnologia é muitas vezes equiparada a empresas de mídia social ou produtos desde mailing até redes sociais e compras online. Mas o seu alcance e poder vai além dos nossos modestos ecrãs e sinaliza uma era mais agressiva de privatização e controle corporativo à medida que assumem uma infraestrutura estratégica que os governos não têm capacidade de gerir localmente. A infraestrutura pública é então administrada por grandes empresas de tecnologia, com responsabilidade limitada e operadores offshore, escapando às leis nacionais de consumo e até mesmo a considerações de segurança nacional.

Não são responsabilizados pelos seus impactos e erros.

Ao fornecer infraestrutura digital aos Estados, os grandes gigantes tecnológicos também extraem dados em massa gerados pelos serviços públicos, logo assumindo o controlo e moldando os algoritmos que governam o sector público, com princípios e processos adequados à sua indústria, o que muitas vezes resulta em maior fiscalização dos/das trabalhadore/a(s), cientistas e estudantes, impedindo-o/a(s) de ingressar em sindicatos, e também na deslocalização da força de trabalho pública, levando a mais privatização e fragmentação, resultando em menos empregos e medidas de austeridade.

Uma tecnologia descolonizada para o Novo Acordo Verde internacional significará um investimento abundante em educação e pesquisa de habilidades locais para desenvolver os nossos próprios bens comuns “verdes”, onde dados do sector público são usados para políticas verdes que beneficiam as pessoas, e onde as aquisições privilegiam empresas verdes locais que respeitam a justiça social e a dignidade humana, tornando seu código fonte disponível e seus algoritmos auditáveis. Um Novo Acordo Verde Global deve incentivar a inovação social digital e, em vez de conceder contratos no valor de milhões ao Silicon Valley, deve institucionalizá-lo a nível comunitário e cidadão para garantir sua escalabilidade e permanência. Comunidades autónomas e linguísticas serão encorajadas a desenvolver a sua própria tecnologia e conteúdo digital e a preservar e exportar as suas culturas para um novo ambiente digital e verde. As políticas públicas garantirão que a adopção de tecnologias de produção em massa não criem mais desigualdade, exclusão ou imposição de valores e práticas alienígenas às comunidades receptoras. Pelo contrário, será uma oportunidade para resgatar e desenvolver ainda mais o conhecimento local, e encontrar as soluções que nosso planeta precisa urgentemente, expandi-las e reutilizá-las em outros países, sem as barreiras à inovação impostas pelo atual sistema de propriedade intelectual.

Enraizados na lógica local, na lógica descentralizada e nosdigital commons: estas são as características das políticas que vencerão o colonialismo digital e que poderão desmilitarizar, descentralizar, se não desmantelar, o poder do Vale do Silício.

Muito tem sido escrito sobre as enormes oportunidades para as empresas capitalistas de beneficiarem do Novo Acordo Verde devido aos avanços tecnológicos necessários para combater as emergências biológicas e climáticas. A monetização da tecnologia dos avanços climáticos pode ser um incentivo razoável para isso. Os países que possuem um regime de propriedade intelectual favorável ao capital e acesso assimétrico ao conhecimento de origem colonial têm uma grande vantagem. Isto implicará uma maior concentração da riqueza no Norte e novas dependências coloniais para o Sul, mas também uma implantação muito lenta destas tecnologias em todo o mundo, pois os retornos financeiros terão prioridade sobre o acesso. Com o dinheiro internacional do Novo Acordo Verde Digital disponível para investimento, os inventores (mesmo no Norte) poderiam ser compensados por suas pesquisas (semelhante ao funcionamento actual do "Medicine Patent Pool") e a tecnologia desenvolvida poderia tornar-se parte do domínio público, para que as pessoas no Sul pudessem adaptar, replicar e aplicar a tecnologia de forma rápida, barata e em grande escala, tão necessária para combater a emergência climática. Descolonizar normas técnicas também significa declará-las bens públicos e descolonizar a infraestrutura de credenciamento em comunidades epistémicas nacionais e regionais. Estas tensões em torno da transferência de tecnologia já estiveram na vanguarda das conferências e convenções das Nações Unidas sobre biodiversidade e clima nas últimas três décadas; um Novo Acordo Verde Digital avançaria rapidamente a posição do Sul sobre esta questão.

Enraizados na lógica local, na lógica descentralizada e nosdigital commons: estas são as características das políticas que vencerão o colonialismo digital e que poderão desmilitarizar, descentralizar, se não desmantelar, o poder do Vale do Silício.

Considerações finais

Somente as forças da Progressiva International actuando em plena coordenação podem gerar essa mudança. Não podemos perder de vista as transformações estruturais que são necessárias. O capitalismo bio-ignorante e patriarcal deve ser reformado na sua essência: a contabilidade. A estrutura de resolução de conflitos baseada na arbitragem privatizada por firmas de advogados deve ser desmantelada e um sistema judicial vinculante de direitos humanos baseado no património comum com jurisdição universal deve ser promulgado. O dinheiro deve ser descolonizado e os bancos centrais devem ser arrancados dos tentáculos dos banqueiros e colocados a serviço do bem público. Osdigital commonsdevem ser resgatados das mãos da aliança militar e de vigilância dos grandes gigantes da tecnologia extrativista.

Devemos desafiar a academia e a mídia a revelar o verdadeiro funcionamento do sistema capitalista, não podemos continuar sem saber onde as batalhas de transformação devem ser travadas. Apontamos alguns dos principais guarda-costas do passado colonial. É hora de enfrentarmos de frente as forças que conspiram contra a humanidade. A esperança da nossa espécie é alcançar um Novo Acordo Verde internacional, digital e feminista que descolonize o nosso futuro.

Foto: Dennis Jarvis

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Authors
Renata Ávila and Andrés Arauz
Published
09.06.2020
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