A batalha final

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O Covid-19 é o terremoto biológico sobre o qual a ciência vem alertando há quase uma geração.

O surto atual, que deve ser o primeiro capítulo de uma era das pragas, precipitou e deflagrou a 'recessão iminente', que já era a grande preocupação da maioria dos economistas e analistas financeiros desde o ano passado. Em nenhum outro cenário, contudo, a queda inevitável teria começado com um grau tão assombroso de perda de controle e destruição. Ele atacou estruturas socioeconômicas e sistemas políticos ainda profundamente abalados pela Grande Recessão de 2008-09, abrindo vias expressas para o fortalecimento do nacionalismo extremo e para o governo por meio da vigilância universal. Na Europa já surgiu o primeiro ‘golpe por coronavírus’ com Viktor Orban, da Hungria, usando a pandemia como pretexto para alijar o parlamento e governar por decreto - uma ditadura, com outro nome. Em Israel, o primeiro ministro indiciado Benjamin Netanyahu também invocou a crise para travar o Knesset, ao mesmo tempo em que liberou o Shin Bet, o equivalente israelense do FBI, para espionar os telefones de todo mundo como 'medida de saúde pública'. A Índia, todavia, oferece o exemplo mais sinistro. O governo supremacista hindu de Narenda Modi, após se manter inerte durante os três primeiros meses do surto, agora aponta muçulmanos como bode expiatório e incita pogroms contra eles, levando Arundhati Roy a advertir que "a situação está tendendo ao genocídio”.

O FMI previu recentemente que a crise "pode diminuir o PIB global em 9 trilhões de dólares nos próximos dois anos". Isso foi antes do preço do petróleo cair abaixo de zero nos Estados Unidos. Os treze países da OPEP e os outros produtores independentes de petróleo enfrentam um panorama de desastre que varia entre a recessão turbulenta (Arábia Saudita) até a provável ruína (Angola). Ao mesmo tempo, o fracasso catastrófico do governo Trump em conter a pandemia em seus primeiros meses joga uma sombra sobre o futuro dos Estados Unidos que lembra o melancólico fim da República de Weimar. O empobrecimento em massa ressurge em escala de miséria que não é vista desde 1933, com um em cada três trabalhadores desempregados e entre 15 e 20 milhões de americanos - especialmente crianças e minorias - previstos para engrossar as estatísticas de pobreza até o final do ano, enquanto o número de pessoas sem seguro de saúde deve aumentar para cerca de 40 milhões em junho, à medida em que os desempregados forem perdendo sua cobertura por contrato de trabalho. O horizonte para os países da OCDE, como um todo, é de anos de estagnação, níveis altos de desemprego estrutural, extinção de um quarto ou mais das pequenas empresas e crises de endividamento de ponta a ponta.

São os países de baixa renda, no entanto, que enfrentam as possibilidades mais aterrorizantes. A Oxfam adverte que a crise econômica pode afundar meio bilhão de pessoas na pobreza em todo o mundo, enquanto a FAO, que mesmo antes da pandemia havia alertado sobre a iminência da pior fome desde a Segunda Guerra Mundial, estima agora que inacreditáveis 265 milhões de pessoas possam passar fome até o final do ano. No pior cenário, de acordo com David Beasley, do Programa Mundial de Alimentos da ONU, “300.000 pessoas podem morrer de fome todos os dias durante três meses. Sem contar o aumento da fome devido ao surto de Covid-19.” As pessoas já estão lutando por suas vidas. Motins por alimentos - reminescentes da onda global de protestos de 2008-09 - eclodem em toda a África do Sul, enquanto na Colômbia "os residentes da província costeira de La Guajira bloquearam estradas para chamar a atenção para a escassez de alimentos". Regiões pobres de países ricos também estão em tumulto. Roma enviou 20.000 soldados às regiões pobres do sul da Itália - Campânia, Calábria e Sicília - prevendo tumultos que podem vir a acontecer à medida em que forem acabando a comida e o dinheiro. Numa perspectiva global, reações em cadeia estão ocorrendo de forma descontrolada, suscitando o temor que possam acelerar a chegada de algo pior que a barbárie.

A atual pandemia em escala global expõe e amplia as divisões existentes entre as sociedades, assim como no interior delas, e nos lembra que a sobrevivência da quinta parte mais pobre da humanidade está, cada vez mais, posta em questão. Uma doença infecciosa não se resume, é claro, apenas a um patógeno e o conjunto de seus efeitos, mas antes é um ecossistema complexo no qual a evolução de uma epidemia é moldada por ambientes naturais e sociais, especialmente o estado geral de saúde pública e a frequência de infecção. O Covid-19 nos obriga a reconhecer que, de uma perspectiva imunológica, existem duas humanidades e duas pandemias. Uma humanidade se alimenta bem, tem acesso a sistemas de saúde competentes e sofre mais de obesidade e doenças crônicas. A outra humanidade sofre com desnutrição, seja ela pontual ou contínua, tem pouco ou nenhum acesso a cuidados médicos e encontra-se exposta com regularidade a doenças infecciosas. Na Europa, na América do Norte e no leste industrializado da Ásia, a maior parte da população pertence à primeira categoria, embora a pobreza e o racismo criem guetos imunológicos - que afetam até 25% da população nos Estados Unidos - onde a saúde individual está a meio caminho das condições de Terceiro Mundo. Na segunda humanidade, localizada principalmente no Sul global e compreendendo cerca de 2 bilhões de pessoas, a maior parte da população está comprometida imunologicamente por desnutrição, ampla contaminação fecal e altas taxas de doenças infecciosas e parasitárias. Os corpos das pessoas pobres oferecem, portanto, um banquete para o vírus SARS-CoV-2 e, à medida que ele for percorrendo as favelas da África e da Índia, pode fazer disparar a mortalidade entre pessoas com menos de 50 anos. O que equivale a dizer que o verdadeiro massacre apenas começou.

“O Covid-19 nos obriga a reconhecer que, de uma perspectiva imunológica, existem duas humanidades e duas pandemias.”

Ainda é impossível obter mais do que uma perspectiva muito limitada sobre os contornos globais maiores desse cataclismo econômico e biológico, no qual a perturbação na biosfera interage com o abismo da desigualdade do capitalismo. Muitos o descrevem como a crise terminal da era neoliberal da produção capitalista globalizada, que começou com a eleição de Margaret Thatcher em 1979 e de Ronald Reagan um ano depois. Contudo, se o próximo estágio do capitalismo se anuncia, provavelmente será a idade do ferro de Hesíodo quando "os deuses abandonam a humanidade" e "não haverá ajuda contra o mal". A seguir, examino a macro-dinâmica da crise sob quatro pontos de vista:

  • Nos casos da América do Norte e da União Européia, como explicar o rápido colapso das instituições responsáveis por monitorar e responder aos surtos de doença, acompanhado por um déficit enorme de cooperação internacional e ajuda mútua? O nacionalismo econômico derrotou o capitalismo transnacional?
  • Um bilhão e meio de moradores de favelas estão ameaçados de morte pela pandemia e pela catástrofe econômica, à medida que as economias da África e do sul da Ásia começarem a implodir. Uma nova crise da dívida - em escala muito maior do que nos anos 1980 - irá roubar seu futuro para sempre?
  • Atualmente, a China é o centro logístico da batalha mundial contra o Covid-19. Mas, será o país a força motriz capaz de extrair a economia global da recessão, como em 2008-09? Ou será que o mergulho da China em sua própria recessão conduzirá a uma época de estagnação contínua e, provavelmente, à guerra?
  • Em que pese as poucas exceções (Noruega e Portugal), os partidos social-democratas e movimentos progressistas falharam nitidamente em atender às necessidades da parte pobre da humanidade neste período mortífero. O vírus do ‘meu-primeiro’ parece ter uma taxa de propagação maior do que o próprio coronavírus. Ademais, conceber a sobrevivência humana em termos fundamentalmente nacionalistas, mesmo que acompanhado por evocações grandiloquentes de interesses comuns globais, equivale a aceitar uma triagem da população da Terra. Há lugar para o internacionalismo genuíno nas lutas de hoje e nas políticas de esquerda? Quais são as formas e recursos organizacionais necessários para conseguir isso?

Falha sistêmica

Apesar de planos de ação emergencial há muito elaborados, de simulações frequentes e um sistema internacional de aviso prévio, a pandemia foi irrefreável na Europa ocidental e nos Estados Unidos porque conseguiu explorar grandes vulnerabilidades políticas nos sistemas de saúde pública nacionais e internacionais. A Grande Recessão de 2008-09 ocasionou um enorme choque fiscal para as instituições sanitárias em todo o mundo, e, na maioria dos países, os cortes foram mantidos e racionalizados como ‘austeridade necessária’ tanto por governos de direita quanto pelos de centro-esquerda. Essa foi a principal condição preexistente, juntamente com lideranças fracassadas, responsável por minar a resposta ao Covid-19 nos países ricos.

Apenas um mês antes da China anunciar o surto, dezenas de milhares de trabalhadores do setor de saúde foram às ruas em toda a Europa para exigir aumentos substanciais nos orçamentos minguados do setor. “Após uma década de austeridade”, alertou o European Public Service Union, com seus oito milhões de membros, “os sistemas públicos de saúde estão agora no limite de ruptura e os profissionais de saúde não suportam mais o peso da má remuneração e da falta crônica de profissionais e recursos." Em alguns casos, como no NHS (Serviço Nacional de Saúde) britânico, o subfinanciamento faz parte de uma estratégia maior da direita para privatizar a saúde. Enquanto isso, nos Estados Unidos, o governo Obama deu importantes passos em direção à cobertura universal em 2009, mas a Lei de Assistência Acessível (Affordable Care Act) permanece sob cerco implacável da direita. Além do mais, nos locais onde são governo, os Republicanos recusaram-se a devolver o financiamento aos departamentos locais e estaduais de saúde pública, deixando o setor com 60 mil funcionários a menos do que em 2007.

Essas medidas equivocadas de austeridade e ataques ideologicamente motivados ao setor público, que destroçaram a segurança dos sistemas de saúde pública nos países ricos, também minaram a infraestrutura global de prevenção de doenças até então financiada por eles. Nos dois meses após os primeiros casos relatados fora da China, as principais organizações da rede internacional de alerta e primeira resposta a pandemias - a Organização Mundial da Saúde (OMS), o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) dos EUA e o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças – ou sofreram falhas operacionais sérias ou foram marginalizados por políticas nacionalistas dos governos de países membros.

A OMS vinha se tornando há anos um reflexo pálido do que foi um dia, enfraquecida por uma crise orçamentária crônica que a obriga a buscar 80% de seu financiamento por meio de negociações individuais com alguns poucos países ricos, com as gigantes do setor farmacêutico e alguns mega-filantropos, como a Fundação Gates, todos com poder excessivo para definir suas prioridades. Por exemplo, durante a crise da gripe aviária em 2005, a OMS recusou-se a endossar o apelo da Índia pela produção genérica de antivirais cruciais – e, em vez disso, defendeu as patentes e os lucros da indústria farmacêutica (Big Pharma) em troca de uma pequena reserva de medicamentos. Uma década depois, não foi capaz de organizar uma resposta rápida ao surto de Ebola na África Ocidental, um erro desastroso que deixou o governo Obama na posição de organizar a última linha de socorro. E no ano passado, curvou-se a Pequim e endossou a eficácia da medicina tradicional chinesa - decisão que chocou tanto cientistas quanto ativistas de direitos dos animais.

Desde a confirmação do surto, seu diretor-geral, Tedros Ghebreyesus, vem passando o pires tanto em Pequim quanto em Washington, tecendo elogios a ambos Xi e Trump. A eleição de Ghebreyesus em 2017, capitaneada por Adis Abeba e Pequim, foi a primeira grande demonstração do crescente alinhamento da União Africana com a política externa chinesa. Suas esperanças de aplacar Washington e manter a OMS na condução da resposta internacional se viram frustradas quando os detratores da China e nacionalistas econômicos no governo Trump, liderados por Steve Bannon e Peter Navarro, aproveitaram a chance para tachar a organização de lacaio do Partido Comunista Chinês. O presidente dos EUA, que de início elogiou ambos Xi e Ghebreyesus, encontrou na OMS um bode expiatório irresistível e cortou o financiamento americano (um quarto do seu orçamento) no momento mais essencial do seu trabalho. A decisão Republicana de fazer propaganda contrária à China e apontar sua ‘responsabilidade’ pela pandemia, no lugar de abraçar a cooperação científica e uma campanha de ajuda multilateral, é um presságio perigoso para a longa batalha pela frente.

Enquanto isso, o CDC dos EUA está sob ataque desde a posse de Trump, perdendo boa parte do seu orçamento, além de importantes pesquisadores e agentes internacionais de campo. Em 2018, a voz do CDC dentro da Casa Branca, a Diretoria de Segurança Global da Saúde do Conselho de Segurança Nacional - uma 'equipe dos sonhos' montada por Obama - foi abolida e seus líderes especialistas demitidos pelo então conselheiro de segurança nacional de Trump, John Bolton. No ano passado, apenas três meses antes da China notificar o surto em Wuhan, o governo Trump cancelou o financiamento do programa de Ameaças Pandêmicas Emergentes – (PREDICT), um elogiadíssimo sistema de alerta prévio criado pela USAID para trabalhar em conjunto com os projetos do CDC no exterior. Em janeiro, quando ficou incontornável que o Covid-19 batia à porta do país, o CDC decidiu desenvolver seus próprios kits de testagem, em vez de usar os kits desenvolvidos por pesquisadores alemães para a OMS. Enquanto centenas de milhares destes últimos eram enviados para todo o mundo, o CDC descobriu que seus kits diagnósticos eram falhos e davam resultados falsos, devido a contaminação no processo de fabricação. (Posteriormente, a Agência de Alimentos e Drogas dos EUA relataria que isso ocorreu porque o CDC deixou de seguir seus próprios protocolos.) Durante todo o mês de fevereiro, quando a ampla aplicação de testes poderia ter impedido a propagação exponencial da doença, o CDC corria em círculos enquanto seus especialistas trabalhavam para consertar os testes.

Além disso, a ampla rede científica internacional do CDC sempre desempenhou um papel importante, ao lado da OMS, durante campanhas de vacinação e surtos de doenças. Agora, segundo uma das principais consultoras da OMS, tornou-se uma "não-entidade" na batalha global contra o Covid-19. "Era uma organização altamente profissional e confiável que basicamente desapareceu", acrescentou. "É uma tragédia para a saúde global". Da mesma forma, o CDC perdeu seu papel tradicional nos EUA como coordenador-chefe de resposta às doenças, em razão das falhas nos testes, e também porque em fevereiro um de seus funcionários desmentiu a garantia de Trump de que estava 'tudo está sob controle' (Robert Redfield, o diretor neopentecostal, agora passa grande parte de seu tempo no papel terciário de intermediar a crise para a base religiosa de Trump.)

Em vez deles, o bastão foi passado para os parentes e bajuladores de Trump: o vice-presidente Pence, o genro Jared Kushner, a 'coordenadora' de medidas de resposta Deborah Birx, o diretor da Força-Tarefa de Coronavírus, Alex Azar ( secretário de Saúde, atualmente sob ameaça de demissão), e o vice de Azar, Michael Caputo. Eles se revezam em brincar de médico, cada um alegando estar no comando. Somente Birx é médica, de fato, enquanto a principal qualificação de Azar é ter sido lobista-chefe da companhia farmacêutica Eli Lilly, promovido depois a chefe de operações da empresa nos EUA. Enquanto isso, Caputo é um agente de campanha do Partido Republicano, notório divulgador de teorias da conspiração e discípulo do criminoso condenado Roger Stone. Sua principal qualificação parece ser sua habilidade em mentir para a imprensa. Tendo ignorado repetidas advertências de que o Estoque Nacional Estratégico de suprimentos médicos estava seriamente comprometido, Kushner e os outros agora criam uma cortina de fumaça com falsas alegações de que o governo federal nunca assumiu qualquer obrigação de ser instância de primeira resposta. Essa situação racionaliza a 'doutrina Trump' - improvisada espontaneamente - que força estados e municípios a competirem por suprimentos médicos junto à indústria privada e à China. Conforme a advertência de Trump dada aos governadores: “O governo federal não está aí para comprar grandes quantidades de itens e sair distribuindo. Você sabe, não somos despachantes de mercadorias."

O primeiro-ministro favorito de Trump, Boris Johnson, concentrou-se igualmente durante os primeiros meses na ameaça do Covid-19 aos lucros e não às vidas. Seu governo se opôs a qualquer medida - distanciamento social, fechamento de escolas, ordens para ficar em casa, etc. - que poderia ser prejudicial para a economia. Enquanto a OMS alertava para a pandemia emergente, Johnson comemorava o Brexit e desdenhava apelos para iniciar testagens para o vírus. "Estamos começando a ouvir uma retórica autárquica bizarra", disse ele, "quando barreiras estão sendo erguidas e há risco de que novas doenças como o coronavírus provoquem pânico e um desejo de segregação de mercado que vai além do que é clinicamente racional, a ponto de causar danos econômicos reais e desnecessários.” Sua atitude apática - ele deixou de comparecer a nada menos que cinco reuniões do gabinete de emergência, onde especialistas apresentaram relatos sobre o surto - foi amplamente imitada pelo público britânico, e foi alvo de poucas críticas de um Partido Trabalhista sem liderança. Johnson e Dominic Cummings, sua eminência parda, acreditavam que a ameaça era exagerada e, para preservar a economia, o vírus deveria ser permitido a se esgotar por conta própria. Segundo o Sunday Times, Cummings disse em uma reunião privada em março que os objetivos do governo eram "imunidade de rebanho, proteger a economia e se isso significa que alguns aposentados irão morrer, que pena".

Essa atitude implacável de laissez-faire foi simbolizada pela decisão do governo de permitir que o Festival de Cheltenham - três dias de corridas que reuniram mais de 250.000 pessoas - fosse realizado em 10 de março. Em menos de uma semana, centenas de espectadores relatavam sintomas. Ao mesmo tempo, os hospitais começaram a descobrir a falta de preparo nacional à medida que era constatada a falta de máscaras faciais e respiradores. Uma fonte anônima do alto escalão do governo relatou posteriormente ao Times: “A quase totalidade dos planos que tínhamos deixaram de ser ativados em fevereiro. Quase todos os departamentos governamentais falharam ao implementar adequadamente seus próprios planos de pandemia. Teceu-se uma enorme teia de aranha de falhas. Todos os dominós cairam em sequência.” Também caídos estavam Johnson e Cummings, ambos vítimas do Covid, ambos fora de combate por semanas.

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A resposta do Conselho Europeu e dos estados membros da UE à pandemia foi tão desorganizada e mesquinha quanto a dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. (A mobilização retardatária do Japão cabe na mesma categoria.) Durante dois meses, os líderes da UE - apoiados por especialistas do Centro Koch da Alemanha e do Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC) - sustentaram que a ameaça para a Europa era apenas "baixa a moderada". Houve poucos testes iniciais e, consequentemente, poucos dados para avaliar o volume e a velocidade das infecções. Os ministros da saúde da Europa, reunidos em Bruxelas em 13 de fevereiro, foram informados pelo diretor do ECDC que a Europa tinha capacidade laboratorial adequada e que a estratégia de contenção da UE estava funcionando. Além do mais, a “grande preocupação na Europa”, de acordo com investigação da revista Politico, “reside nos efeitos secundários de uma desaceleração da economia chinesa” – e não sobre a mortalidade em massa. Dez dias depois, chegou a época de carnaval e os adeptos de esqui partiram em massa para passar o feriado nas montanhas. Nas estâncias de esqui lotadas da Áustria e da Itália, o novo coronavírus foi disseminado por indivíduos que retornavam da Ásia. Seguiu-se o surto italiano com sua mortandade devastadora entre os idosos. Embora cada estado da UE mantenha o controle sobre seu próprio sistema de saúde, um "Mecanismo Unificado de Proteção Civil" dispõe sobre ajuda e coordenação mútuas no caso de grandes desastres, incluindo "sérias ameaças à saúde que atravessem fronteiras". Em 28 de fevereiro, os italianos ativaram esse mecanismo. Segundo uma reportagem da Politico,para as autoridades que monitoravam a resposta à crise, foi um choque quando Roma admitiu a existência do problema. Mais chocante ainda foi a reação dos outros 26 países membros da UE: o silêncio. Com cada capital da UE entrando em pânico por conta da sua própria vulnerabilidade, ninguém se ofereceu para ajudar.

Apenas um país, a China, ofereceu assistência imediata, enviando prontamente médicos especialistas e um carregamento de suprimentos. Enquanto isso, os comissários da UE constatavam tardiamente, assim como no Reino Unido, uma escassez aguda e não relatada de equipamentos de proteção individual; a maior parte dos países esgotava os estoques sob a suposição errônea de que os fabricantes atenderiam facilmente à demanda crescente. Em 3 de março, a França interrompeu as exportações de máscaras e respiradores e fechou suas fronteiras. Seu exemplo foi seguido prontamente por Alemanha e grande parte dos países do norte da Europa. A famosa Zona Comum de Viagens (Common Travel Area) da UE foi abolida sem qualquer discussão diplomática. O ECDC relutou mas acabou por elevar o nível de ameaça para "moderado a alto", e a burocracia de Bruxelas finalmente criou uma equipe emergencial de resposta ao coronavírus. Enquanto isso, ministros da saúde em vários países reclamavam da falta de notificação ou consulta das nações irmãs: eram obrigados a recorrer à mídia para saber o que os outros estados estavam fazendo.

A Itália estava enfurecida e, em 10 de março, seu representante permanente perante a UE publicou um editorial incensado denunciando o “egoísmo” que “leva à adoção de uma lógica de dane-se o vizinho, em que todos perdem”, e comparou os atuais líderes da UE àqueles “sonâmbulos” que relegaram a Europa à destruição em 1914. A Itália exigiu a criação de uma linha de crédito européia para salvar pequenas e médias empresas da falência; posteriormente, a Espanha, o segundo epicentro do surto, aliou-se a Roma para pedir a emissão dos chamados corona bonds [títulos da dívida pública compartilhados igualmente pelos membros da UE]. Amsterdã e Berlim opuseram-se imediatamente à proposta, indicando que esperavam que Itália e Espanha se sujeitassem ao mesmo regime de fome a que a Grécia foi forçada no início da década. Isso abre um caminho claro para o ‘Italexit’, caso a Lega de Matteo Salvini retorne ao poder e demande um referendo sobre a adesão da Itália ao bloco.

É claro que a desunião européia ante a pandemia agravou os danos causados ​​pela cruzada de Trump contra suas principais instituições e as tradições da aliança atlântica. Assim como já é possível imaginar uma UE menor e menos poderosa, também a desintegração da OTAN, mesmo que improvável no futuro próximo, torna-se mais do que um sonho maluco dos russos.

A ONU, a essa altura, também revela ser mais uma instituição esvaziada. “Segundo o Los Angeles Times: “Visivelmente frustrado, osecretário-geral da ONU, Antonio Guterres, viu seus pedidos por maior coordenação global - incluindo um cessar-fogo mundial para conflitos regionais, a suspensão de sanções contra países sitiados pela pandemia, como o Irã e a Venezuela, e um fundo de ajuda humanitária de vários trilhões de dólares - amplamente ignorados durante a crise de saúde”.

Com a Assembléia Geral da ONU paralisada e a OMS e suas agências irmãs incapazes de conduzir a crise, as instituições geminadas que surgiram do acordo de Bretton Woods - o FMI e o Banco Mundial - permanecem como núcleo duro institucional de apoio à globalização econômica. Com as finanças da OMS definhando, o Banco - que devastou os orçamentos de saúde pública nos países mais pobres com seus regimes de ajuste estrutural ao longo dos anos 1980-90 - torna-se ironicamente o líder em saúde mundial. Mas a ironia é apenas em parte; afinal, os empréstimos do Banco para a saúde ultrapassavam o orçamento total da OMS em 1990, e sua influência sobre os gastos internacionais em saúde só vemaumentando desde então. Se a OMS sobreviver à crise (leia-se, se Biden vencer a eleição presidencial dos EUA e restaurar o financiamento dos EUA), é provável que a agência se torne um mero satélite do Banco, com a segurança coletiva da saúde subordinada às outras prioridades do Banco. Imagine um mundo em que o chefe médico também seja o cobrador de dívidas.

O destino dos pobres

No começo deste ensaio, argumentei que havia duas pandemias diferentes do Covid-19 - e o impacto do vírus sobre faixas etárias mais jovens pode diferir radicalmente em países pobres e grupos de extrema pobreza. A história da gripe espanhola nos explica o motivo. A pandemia de 1918-19, como muitos sabem, foi o maior evento único de mortalidade na história humana, com uma mortandade estimada de 1 a 2% da humanidade. Na América do Norte e na Europa ocidental, o H1N1 original foi mais letal para jovens adultos. Isso costuma ser explicado como função da força relativa de seus sistemas imunológicos, que reagiram de modo excessivo à infecção e acabaram por atacar células pulmonares, levando à pneumonia viral e ao choque séptico. Mais recentemente, no entanto, alguns epidemiologistas levantaram a teoria de que os adultos mais velhos poderiam possuir ‘memória imunológica’, proveniente de um surto anterior na década de 1890. De qualquer forma, a gripe encontrou um nicho preferencial nos acampamentos de exército e nas trincheiras dos campos de batalha, onde dizimou jovens soldados às centenas de milhares. Isso se tornou um fator importante na batalha entre impérios. O colapso da grande ofensiva alemã da primavera de 1918, e por conseguinte o próprio resultado da guerra, já foi atribuído ao fato de que os Aliados, ao contrário do inimigo, puderam reabastecer seus exércitos doentes com tropas americanas frescas.

Mas a pandemia teve um perfil diferente nos países mais pobres . Raramente se leva em consideração que quase 60% da mortalidade global (ou seja, pelo menos 20 milhões de mortes) ocorreu no Punjabe, em Bombaim e outras partes do oeste da Índia, onde exportações de grãos para a Grã-Bretanha e práticas brutais de requisição coincidiram com uma grande seca. A escassez resultante de alimentos precipitou milhões de pessoas pobres à beira da morte por fome. Elas foram vitimadas por uma sinergia sinistra entre desnutrição - que suprimia a resposta imune à infecção e gerava também bactérias em ritmo desenfreado - e a pneumonia viral. O caso é semelhante ao do Irã, ocupado por russos e britânicos, onde vários anos de seca, cólera e fome, seguidos por um surto generalizado de malária, pré-condicionaram a morte de uma parcela entre 10% e 20% da população, ao menos um milhão de pessoas. Nos dois casos, a mortalidade se distribuiu de forma mais ampla, em termosdemográficos, do que na Europa.

"Gaza, Haiti, Bolívia, Guatemala, Papua-Nova Guiné e Micronésia, bem como a maior parte dos campos de refugiados do mundo são valas comuns à espera de cadáveres. Quem são os aliados dos pobres nesses lugares?"

Essa história - especialmente as consequências das interações com a desnutrição e infecções preexistentes - deve nos alertar para tratar com cautela as repetidas garantias de que a população urbana da África subsaariana, por ser a mais jovem do mundo (apenas 3% da população tem mais de 65 anos, contra 23% na Itália e 15% nos Estados Unidos), sofrerá uma mortalidade proporcionalmente menor. Também é duvidosa a ideia, defendida por Trump, de que a pandemia retrocederá com a chegada do verão no hemisfério norte. A segunda onda da gripe espanhola, ainda mais mortal, teve início no meio do verão. É mais provável que a África seja "uma bomba-relógio", como alertou a revista Science em 15 de março.

Além da desnutrição, outro combustível para essa explosão viral é o grande número de pessoas com sistema imunológico debilitado. O vírus da HIV/AIDS matou 36 milhões de africanos ao longo da última geração, e os pesquisadores estimam que existam hoje mais 24 milhões de casos. Soma-se a isso 3 milhões ou mais de pessoas que padecem da 'peste branca' - a tuberculose. Trezentos e cinquenta milhões de africanos sofrem de desnutrição crônica, e o número de crianças pequenas com problemas de crescimento causados por desnutrição vem aumentando, em milhões de casos, desde o ano 2000. Distanciamento social é uma impossibilidade clara em mega-favelas como Kibera, no Quênia, ou Khayelitsha, na África do Sul; e mais da metade da população africana não tem acesso a água limpa e saneamento básico. Segundo a ONU, “agua limpa e sabão são tão escassos que apenas 15% dos africanos subsaarianos dispunham de condições básicas para lavar as mãos em 2015”. Soma-se a isso o fato de que cinco dos seis países com os piores sistemas de saúde do mundo estão na África, incluindo o mais populoso deles, a Nigéria. Enquanto isso, o Quênia, país com 50 milhões de pessoas e conhecido por exportar excelentes enfermeiros e médicos, possui exatamente 130 leitos de UTI e 200 enfermeiros certificados para lidar com a chegada do Covid-19. O Sudão, com uma população comparável, tem apenas 30 leitos. Dez países carecem de um único respirador e, em toda a África, há escassez aguda de oxigênio para uso em casos graves. Como disse um oficial de ajuda da ONU à Aljazeera: "Não há curva para achatar onde não existe assistência médica".

Obviamente, essas condições também estão presente em outros lugares: ao lado de Etiópia, Nigéria e Congo, Índia e Paquistão respondem ​​por metade das mortes de crianças em todo o mundo. Gaza, Haiti, Bolívia, Guatemala, Papua-Nova Guiné e Micronésia, bem como a maior parte dos campos de refugiados do mundo, são valas comuns à espera de cadáveres. Quem são os aliados dos pobres nesses lugares?

De volta aos EUA, e enfrentando poucas queixas dos democratas - cuja recente virada progressiva padece de uma surpreendente falta de preocupação com questões globais de desigualdade - Washington abandonou qualquer pretensão de liderança humanitária e continua a trabalhar freneticamente na construção do muro da fronteira com o México. O lema “America em primeiro lugar”, ao que parece, significa Africa no último. Trump, que já desviou suprimentos médicos destinados à Alemanha e a outros países, ordenou recentemente que a Agência Americana para a Assistência Internacional (USAID) proíba que sua verba assistencial seja usada por ONGs de países mais pobres para comprar máscaras e outros equipamentos de proteção. Aparentemente, ele pretende monopolizar o estoque global, ao máximo possível, enquanto ignora pedidos para usar a legislação existente para aumentar a produção doméstica. Desde o início da pandemia ele também cortou a assistência médica ao Iêmen e reforçou os embargos a Cuba e ao Irã.

"Para um agricultor liberiano comum ou uma mãe queniana - ou, aliás, um italiano idoso trancado dentro do seu apartamento - o que importa agora não são os velhos mitos de uma América generosa ou uma Europa fortemente unida, mas máscaras, remédios e respiradores. Nesse momento, eles tendem a trazer a inscrição: ‘Made in China'."

Enquanto isso, a Europa terceirizou para pequenas ONGs o grosso da responsabilidade por cuidar da saúde de dezenas de milhares de refugiados em campos fétidos. No início da crise, Macron - desesperado para salvar o decadente império neocolonial francês na África - mobilizou uma pequena parcela da ajuda europeia para munir os países africanos com equipamento para testagem. Mas, assim que o Covid-19 apareceu à sombra da Torre Eiffel, sua atenção se voltou abruptamente para a frente doméstica. (Ele continua a defender, contudo, uma moratória nos pagamentos da dívida africana.) A subsequente ‘crise de solidariedade’ no interior da UE obscureceu completamente os tépidos esforços de seus membros para coordenar a ajuda internacional.

Até agora, apenas quatro nações se lançaram efetivamente em defesa dos miseráveis ​​da terra. Três delas são pequenas. Os médicos de Cuba, como sempre, são os primeiros a chegar à linha de frente de qualquer surto de doença perigosa - como nos recentes casos de cólera e ebola - e suas equipes médicas experimentadas já estão trabalhando no combate ao Covid-19 em 18 países, incluindo Jamaica, Haiti, Itália, Togo, Angola e até Andorra. A Noruega, o país escandinavo menos afetado pelas recentes ondas de chauvinismo nacional, foi o primeiro na Europa a responder aos pedidos de Adis Abeba e Pretória, clamando por um esforço concertado para ajudar a África. A Irlanda, que já havia nacionalizado todos seus hospitais, quadruplicou imediatamente sua contribuição para a OMS depois que Trump cortou o financiamento americano. (A Rússia também molhou os pés nas águas humanitárias, mas concentrou-se principalmente em conturbadas negociações com a Arábia Saudita para garantir a segurança de suas exportações de petróleo e gás).

Mas é a China, com seu abastecimento colossal de suprimentos médicos e sua experiência acumulada na luta contra influenzas e coronavírus, que está levando a ajuda mais significativa para países sitiados em todo o mundo. Sua capacidade pode ser aferida pelo fato de que, desde o início de fevereiro, o país expandiu a fabricação de máscaras protetoras de 10 milhões de unidades por dia para 116 milhões, em apenas quatro semanas, e está adaptando rapidamente a produção para se tornar o arsenal do mundo na luta contra o novo vírus. No início de abril, a China já havia exportado quase 4 bilhões de máscaras e 2,8 milhões de kits de testagem. Seu esforço agressivopara liderar o mundo no combate ao Covid-19, ratificado pelo sucesso em suprimir a epidemia original em Wuhan, tem importantes implicações geopolíticas.

Pequim acumulou grande influência econômica global nos últimos vinte anos, tornando-se o maior parceiro comercial de Alemanha, Brasil, Austrália, Indonésia e muitos outros países. Mas seu poderio econômico excede em muito o seu soft power - ou seja, sua influência como modelo sistêmico admirado pelo resto do mundo. Sua Iniciativa do Cinturão Econômico da Rota da Seda, lançada em 2013 e financiada em grande parte por empréstimos a 70 países diferentes, é uma das principais razões que a relação dívida/PIB nos chamados ‘mercados emergentes e economias em desenvolvimento’ aumentou de 58% para 168% na última década. Particularmente na África subsaariana, onde os empréstimos e investimentos da China em infraestrutura a tornaram o principal credor da região, há crescente ressentimento popular contra o que muitos acreditam ser simplesmente uma forma nova e potencialmente debilitadora de neocolonialismo. A resposta de Pequim ao Covid-19 oferece oportunidades, no entanto, para reivindicar para si o manto de liderança moral. Para um agricultor liberiano comum ou uma mãe queniana - ou, aliás, para um italiano idoso trancado dentro do seu apartamento - o que importa agora não são os velhos mitos de uma América generosa ou de uma Europa fortemente unida, mas máscaras, remédios e respiradores. Nesse momento, eles tendem a trazer a inscrição: ‘Made in China'.

Porém, máscaras são uma coisa, e dívidas de bilhões de dólares são outra. Nos céus da África e de outras regiões pobres do mundo, os abutres - ou seja, os bancos estrangeiros e o temido FMI - rondam antecipadamente as carniças dos tesouros nacionais e orçamentos públicos. Desde 2014, à medida que o valor das commodities globais vem declinando, as dívidas públicas estufam na África subsaariana, em grande parte alimentadas por empréstimos para projetos de infraestrutura, como barragens, ferrovias, rodovias e portos.

A China tem sido o principal credor bilateral do continente (em média, 10 bilhões de dólares anuais), sendo Angola o maior tomador de empréstimos, seguido por Etiópia e Quênia. Os lucros do petróleo são a garantia mais importante para as transações africanas. Países que tomaram grandes empréstimos quando o petróleo estava acima de 100 dólares por barril, agora ganham menos de um décimo disso e são forçados a dedicar quase toda a renda do petróleo ao pagamento das dívidas. De todo modo, os bancos estrangeiros fecharam as portas para os países subsaarianos; mas, mesmo com a interrupção dos empréstimos, as dívidas nacionais continuam a apreciar, graças ao fortalecimento do dólar e ao enfraquecimento das moedas locais. Tudo isso é receita para uma depressão econômica e implosão de dívidas que destruirão as economias da maior parte dos países e conduzirá a ainda menores gastos com saúde, alimentação e educação. Além disso - provando que todas as grandes crises da humanidade estão interconectadas - a mudança climática vem causando grandes prejuízos na agricultura africana sob forma de uma seca épica. Em março, a África do Sul declarou estado de emergência nacional em função da seca que voltou a castigar seus agricultores, enquanto no leste da África, os campos eram despojados pela maior praga de gafanhotos há um século. Seca, dívidas e doenças constituem a trilogia temida de todos os africanos.

A missão impossível da China

Em contraste com as economias atlânticas e grande parte da América Latina, os países mais industrializados do leste asiático, incluindo o Vietnã, mas não o Japão, conseguiram conter o surto inicial com sucesso admirável, demonstrando capacidade formidável ​​do Estado para ações racionais e decisivas. Suas populações todas possuem cobertura nacional de saúde. Os dois casos mais notáveis ​​são Taiwan e Vietnã. Devido à sua proximidade com o continente, sua densidade urbana e sua grande população de idosos, Taiwan parecia destinado a se tornar outra Wuhan. No final de abril, entretanto, havia registrado menos de dez mortes e conseguido evitar o fechamento em massa. Não há mistério quanto aos motivos desse sucesso: Taiwan construiu o sistema de saúde público número um do mundo e respondeu imediatamente em dezembro a rumores de um surto semelhante à SARS. Quando Taipei contabilizou seu estoque médico e percebeu que os suprimentos de máscaras estavam baixos, seu Comando Central de Epidemias ordenou que as forças armadas assumissem a produção. A produção diária aumentou de dois para dez milhões de unidades em menos de três semanas. E, em contraste com a República Popular da China e Cingapura, o país logrou isso como uma democracia em funcionamento, sem depender do poder autoritário centralizado ou da repressão em massa.

O Vietnã é um caso ainda mais extraordinário. Embora mais pobre do que os outros, possui alguns dos especialistas mais conceituados do mundo em doenças epidêmicas nos Institutos Pasteur da Cidade de Ho Chi Minh, assim como uma rede nacional de postos de saúde em nível comunitário, treinados para responder aos surtos de doença. Essa combinação de especialização e mobilização de base permitiu ao país enfrentar de modo bem sucedido a chegada da gripe aviária e da SARS no início dos anos 2000. Em contraste com a China, também possui um histórico admirável em termos de transparência médica, notificação imediata de grupos de infecção e estreita colaboração com a OMS.

"É tentador afirmar que o Covid-19 também está acelerando a mudança do domínio americano para o chinês. Mas a analogia é falha porque exagera a estabilidade da economia chinesa, assim como sua capacidade de extrair o mundo de uma recessão profunda."

Contudo, a única experiência alternativa que realmente importa no cenário mundial atual é o sucesso da China continental em conter o surto e depois se tornar a principal fonte de socorro para outros países em dificuldades. (Menos conhecido do público mundial é o papel crucial dos protestos em massa para suscitar a resposta do regime autoritário de Xi.) O secretário-geral Xi Jinping, é claro, promove sua versão da história mediante muita queda de braço: espera-se que os beneficiários de empréstimos e de assistência médica chineses, como Erdogan na Turquia e Fernandez na Argentina, entoem suas loas. Mas essa pressão não difere muito da mão pesada de Washington no passado, e países menores sempre foram obrigados a retribuir a ajuda dos poderoso com condescendência, mesmo que fingida. Agora que Trump abdicou do trono humanitário, apenas uma potência detém as habilidades gerenciais e os recursos para ocupá-lo. Pela primeira vez, Pequim está praticamente sozinha no comando de uma crise mundial, testando sua ação contra a inação de Washington e da UE.

No século XVII, uma pandemia da peste foi particularmente devastadora para a Itália e - segundo alguns historiadores - acelerou a transição de uma economia européia centrada no Mediterrâneo para o domínio holandês e inglês. É tentador afirmar que o Covid-19 também está acelerando a mudança do domínio americano para o chinês. Mas a analogia é falha porque exagera a estabilidade da economia chinesa, assim como sua capacidade de extrair o mundo de uma recessão profunda. O sucesso da China em se tornar o centro do sistema solar de cadeias de valor - e, por conseguinte, a maior nação industrial e comercial do mundo - também é seu calcanhar de Aquiles, pois o colapso do comércio mundial atual ameaça levar a uma desglobalização parcial da produção por meio de uma longa recessão. Embora a China tenha feito imensos avanços no desenvolvimento de indústrias de fundo científico e serviços tecnológicos, as exportações de bens intermediários e de consumo - de cadeiras de plástico a smartphones - continuam sendo seu principal ganha-pão e fonte de divisas. A perda permanente de uma parte significativa desse mercado de exportação, seja pela diminuição da demanda global e/ou repatriação do investimento industrial, confrontaria o Conselho de Estado com uma situação há muito temida: uma massa descontente de desempregados, abarcando dezenas de milhões de pessoas.

Fuente: Cameramemories/Flickr

A liderança, é claro, está ciente há muito da necessidade de reduzir a dependência em exportações, aumentar os salários e fortalecer o mercado interno. Mas a transição tem se mostrado incrivelmente difícil, e o investimento - a segunda grande mola motriz da economia chinesa - vem preenchendo a lacuna. Embora alguns admiradores, evocando as altas taxas de crescimento geradas pelo consumo de bens duráveis e construção de moradias, nas décadas de 1950 e 1960, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, se refiram ao período atual como a ’idade de ouro’ da China, a realidade é bem diferente. O que torna a revolução urbano-industrial da China excepcional não é a adoção do modelo econômico puxado pelas exportações, comum a outros países asiáticos, mas suas taxas extraordinariamente elevadas e sustentadas de investimento em infraestrutura e construção urbana. Isso tem sido financiado por uma depressão sustentada da fatia do PIB distribuída para os trabalhadores. Nenhuma grande economia dinâmica, em tempos de paz, dedicou, de modo sistemático, uma parcela tão grande ao investimento e nem uma parcela tão pequena ao consumo.

Durante a crise de 2008-09, Pequim contrariou a queda na demanda por exportações com um enorme pacote de estímulos, que injetou empréstimos no desenvolvimento de infraestrutura e na construção de moradias, lançando um salva-vidas para empresas estatais em dificuldades. A relação investimento/PIB subiu para 48% em 2012 e depois estabilizou em 45%. (Em contraste, os americanos consumiam 70% da renda nacional e investiam apenas 15%.) "A escala e a velocidade do boom de investimentos da China são estarrecedores",escreveu uma equipe de economistasda Universidade de Oxford. “A China gastou 4,6 trilhões de dólares em 2014, cerca de 24,8% do total de investimentos mundiais e o dobro de todo o PIB da Índia.” Os empréstimos que financiaram esses estímulos também são estarrecedores. "Entre 2000 e 2014 a dívida total da China cresceu de 2,1 trilhões de dólares para 28,2 trilhões de dólares, em valores atuais - um aumento de 26,1 trilhões, maior que o PIB dos EUA, Japão e Alemanha juntos."

O estímulo pós-2008 também beneficiou os principais fabricantes de componentes da China no leste e sudeste da Ásia - e também na Alemanha, de quem importa máquinas e máquinas-ferramenta. Não fosse isso, a recuperação global da Grande Recessão teria sido incomparavelmente mais difícil. Mas o preço a pagar é a instabilidade estrutural e uma dívida em constante expansão. Isso foi reconhecido abertamente pelos líderes do país em diversos momentos. No Fórum Econômico Mundial em 2009, o premiê Wen Jiabao, um forte defensor da elevação do padrão de vida no campo, disse à platéia que "a recuperação econômica da China é instável, desequilibrada e ainda nada sólida". No ano seguinte, o vice-premiê Li Keqiang (que se tornou premiê no final de 2012) reiterou que o impulso pelo investimento havia criado uma "estrutura econômica irracional" e que "um desenvolvimento descoordenado e insustentável é cada vez mais aparente". Xi Jinping, em sua ascensão a secretário-geral do Partido e depois presidente, foi responsável por várias reformas importantes, mas a Cinturão Econômico da Rota da Seda - financiado pelo Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, patrocinado pela China - caracterizou um retorno ao crescimento impulsionado pela construção, agora em escala internacional.

"Mais provável do que uma recuperação liderada pela China é uma depressão liderada pela China."

Há dois anos, uma investigação sobre as perspectivas futuras da China conduzida pelo Banco Central Europeu, encontrou todos os sinais clássicos de superinvestimento e da resultante má alocação de recursos: um excesso agudo de capacidade produtiva na indústria básica, gastos em infraestrutura que excedem a demanda potencial, construção especulativa de unidades de moradia inacessíveis para a maior parte das famílias, conversão desnecessária de terras agrícolas nas cidades, gastos lamentavelmente inadequados em saúde pública e educação e, ainda, o que só pode ser descrito como um sistema bancário estatal que gerencia dívidas por meio de prestidigitação. Enquanto isso, o motor de investimento está falhando. “A relação incremental entre capital e produção”, explica o estudo do BCE, “sugere que o impulso ao crescimento econômico por novos investimentos está diminuindo”. Em outras palavras, o investimento não está elevando a produtividade geral aos níveis esperados, e gastos mal administrados em capital fixo estão afetando negativamente o PIB. Assim, a incrível máquina de crescimento de Pequim “está chegando a um ponto de inflexão. A queda do crescimento da produtividade e a diminuição dos retornos sugerem que a China está atingindo os limites do ‘antigo’ modelo de crescimento por acumulação de fatores. Continuar a pressionar esses limites, com mais investimentos e dívidas, piorará os desequilíbrios existentes e ameaçará a sustentabilidade do crescimento a médio prazo.”

Por isso é impossível para a China repetir seus feitos pós-2008. Mais provável do que uma recuperação liderada pela China é uma depressão liderada pela China. Isso garantiria uma paralisia sincronizada do crescimento em todos os três grandes blocos da economia mundial - América do Norte, União Européia e leste da Ásia - sem que nenhum deles seja capaz de impulsionar uma recuperação por ação unilateral. A parceria bilateral que, em teoria, poderia frear o colapso é um plano coordenado de gastos entre Estados Unidos e China, mas o relacionamento deles, deixando de lado a política, é estruturalmente o elo mais fraco ou, se preferir, o mais ‘desequilibrado’ da economia mundial. É uma atração entre opostos: os Estados Unidos consomem em demasia, e a China produz em excesso; Washington avança sobre um enorme déficit comercial, mas a China refinancia a dívida para permitir que os americanos continuem seu consumo desenfreado.

Os populistas americanos de extrema direita enxergam apenas um lado dessa equação: os custos domésticos para o emprego causados pela terceirização da cadeia produtiva e o balanço comercial negativo dos Estados Unidos. Eles ignoram ou simplesmente desconhecem o papel recíproco da China como principal credor da dívida nacional dos EUA e parecem acreditar, fantasticamente, que uma guerra econômica contra o principal credor de Washington sairia relativamente barata, pois recuperaria milhões de empregos do leste da Ásia. Na realidade, as cadeias de produção mais passíveis de decomposição são aquelas instituídas de cima para baixo por distribuidores finais e varejistas, como Walmart ou Target, cujo estoque de importação consiste em bens de consumo e eletrônicos baratos. Diferentemente das cadeias de produção orientadas pelo produtor (como General Motors e seus fornecedores de peças, por exemplo), a maior parte das linhas de produção para o consumo pode ser facilmente automatizada – de preferência do outro lado da fronteira mexicana - o que quer dizer que a repatriação de investimentos não conduzirá ao retorno de empregos anteriormente perdidos e nem a um renascimento da indústria nos EUA. No entanto, essa é a ilusão que sustenta a base republicana no meio-oeste americano.

Ambos os principais partidos políticos americanos vêm agitando, desde 2008, pelo retorno de algum inimigo externo de grandes proporções, de preferência um menos escorregadio e evasivo do que Al-Qaeda ou ISIS. A preferência de Hillary Clinton era por uma nova guerra fria com a Rússia; Trump escolheu a China. Primeiro veio a guerra comercial em 2017, e agora o Perigo Amarelo do Covid. Seu comitê de reeleição está testando atualmente a resposta do eleitorado ao slogan 'A China deve pagar pela pandemia!' como principal mote de campanha. (De acordo com uma pesquisa recente da Pew, um quarto dos americanos, o público base da Fox News, acredita que o coronavírus foi criado em um laboratório chinês de guerra biológica e deliberadamente lançado contra os EUA.) A crise permite que os nacionalistas econômicos que se agregam sob a bandeira negra de Steve Bannon (devolvido recentemente ao Conselho de Segurança Nacional) agitem a favor de um ‘desacoplamento duro' das duas economias, enquanto outros querem punir a China, confiscando eletronicamente os 1,1 trilhão de dólares em títulos do tesouro dos EUA que o país possui (o que seria um ato de guerra, perante a Lei internacional). Embora um governo Biden possa atenuar a retórica belicosa, há forças poderosas dentro do Partido Democrata que defendem uma linha dura em relação à Pequim, tanto na frente econômica quanto militar.

"A globalização capitalista se tornou biologicamente insustentável?"

A China não brandiu, até agora, a ameaça da retaliação financeira. Primeiro, por medo de perder seu maior mercado de exportação; segundo, porque a valorização do dólar durante as crises aumenta o valor de suas reservas. Porém, se o comércio com os Estados Unidos continuar a se deteriorar e importantes cadeias de valor não puderem ser restauradas, diminuirão os fatores que limitam uma agressão da parte de Pequim. Isso acrescentaria uma dose grande, embora incalculável, de caos à turbulência geoeconômica existente. Cada regime capitalista e estatal-capitalista procuraria não apenas bodes expiatórios, mas também inimigos mortais para justificar a ação de aplacar a fúria populista com mísseis.

Precisamos fazer, em resumo, duas perguntas sem precedentes sobre o futuro da ordem mundial neoliberal. Primeiro, a globalização capitalista se tornou biologicamente insustentável? A resposta depende, é claro, se a cooperação internacional de alto nível e gastos maciços em saúde pública configuram perspectivas realistas. Temo que não sejam. Segundo, as infraestruturas logísticas e financeiras da globalização são sustentáveis ​​numa era pós-hegemônica? Elas podem funcionar, em outras palavras, sem serem garantidas por uma fusão de soberania monetária e liderança global numa única superpotência disposta a atuar como gerente do mercado mundial? Há um precedente a ser lembrado: a fragmentação regional do comércio mundial durante os anos 1930, quando um Estados Unidos dominante abdicou do seu papel de credor da Europa e se voltou para dentro em busca de soluções para a Depressão. A situação de semi-autarquia reorientou as potências imperialistas européias em direção à modernização da exploração de suas colônias tropicais, enquanto a Alemanha se voltou para a conquista da produção de grãos da Ucrânia e do petróleo cáspio, com consequências catastróficas para a humanidade. Pouquíssimos economistas e especialistas em política externa podem imaginar um mundo em processo acelerado de desglobalização e rearmamento. Mas, em contraprtida, será que algum deles pode argumentar de modo convincente que retornaremos aos tempos idos do índice Dow a 28.000 pontos e agradáveis ​​carnavais em Davos?

Em busca da solidariedade

O período sombrio que se aproxima rapidamente no horizonte condenará o capitalismo como ameaça à sobrevivência humana. Um promotor lançaria quatro acusações. Primeiro, como sistema mundial, o capitalismo é incapaz de gerar renda e futuro social para a maioria da humanidade. Segundo, ele não é capaz de descarbonizar a economia ou adaptar as sociedades mais pobres para suportarem as consequências extremas do aquecimento global, situação para a qual elas pouco contribuíram. Terceiro, ele não é capaz de garantir segurança alimentar ou acesso a recursos hídricos sustentáveis. Quarto, ele impede que avanços biológicos revolucionários sejam revertidos para a saúde pública. São crises convergentes, inseparáveis umas das outras, que precisam ser vistas em seu conjunto complexo, e não como questões separadas. Formulado em linguagem mais clássica, o atual capitalismo financeirizado tornou-se um grilhão absoluto que trava o desenvolvimento das forças produtivas necessárias para a sobrevivência da espécie.

“A ilusão mais perigosa, no entanto, é a nacionalista: que uma depressão global possa ser evitada por um simples acúmulo de respostas nacionais independentes e descoordenadas.”

Michel Aglietta, um dos economistas mais respeitados da Europa, tece argumento semelhante. Ele escreveu recentemente que três concepções errôneas e perigosas regem a maioria dos discursos oficiais sobre a pandemia. A primeira é a idéia que devemos deixar de lado ações contra as mudanças climáticas e a destruição de habitats para focar na ameaça viral. Isso ignora o quão profundamente o fenômeno das doenças emergentes está ligado às mudanças climáticas, à agricultura industrial e à criação de rebanhos animais, assim como à crescente destruição da biodiversidade, especialmente as florestas tropicais. “Em última instância, doença e clima são movidos por dinâmicas semelhantes, mesmo que as temporalidades sejam diferentes. Ambos são processos que evoluem sob radical incerteza e que, em algum ponto de inflexão desconhecido, poderão fugir do controle.” O segundo erro é subestimar o papel das dívidas, doméstica e internacional, que crescem quase sem controle desde 2009, com potencial para acelerar e ampliar a queda atual. "O que mais caracteriza a última década", ele argumenta, "é a globalização da lógica [da financeirização]." A pandemia acabará por produzir um pânico financeiro - uma demanda incessante por espécie - que, por sua vez, levará ao desinvestimento na economia real, estorvada atualmente por sua vasta capacidade excedente. As cadeias de produção industrial e o comércio de bens intermediários, argumenta ele, são especialmente vulneráveis.

A ilusão mais perigosa, no entanto, é a nacionalista: que uma depressão global possa ser evitada por um simples acúmulo de respostas nacionais independentes e descoordenadas. ”Um Novo Acordo Verde Global (Global Green New Deal, ou GGND) é o único futuro possível... Precisamos erradicar a visão neoliberal do mundo que subordina tudo ao fetiche do ‘mercado’ sem reconhecer sua dependência da natureza. Os mercados transformam bens comuns em males comuns. Como foi o caso do New Deal, o GGND exige que o poder público exerça liderança sobre o privado.” Os 'eixos estruturais' do GGND precisam ser a conversão da indústria à energia verde, um movimento em direção a cidades com baixa emissão de carbono e um imenso esforço global para restaurar habitats e agricultura sustentável. Para conseguir isso, o investimento público precisa se libertar da ’tragédia dos horizontes‘, a lógica saqueadora e de curto prazo dos mercados financeiros. "A transformação da estrutura da economia produtiva exige planejamento estratégico."

Aglietta, acredito, está certo ao dizer que o neoliberalismo abriu a caixa de Pandora - e que somente a cooperação planetária na escala de um novo GGND poderá garantir a sobrevivência comum. Deve-se louvar ainda sua insistência de que precisamos entender a nova era pelo crivo da ecologia política, reconhecendo que tudo agora é questão ambiental. Porém, ele emprega eufemismos para contornar a questão das questões: a democratização do poder econômico. A emergência atual nos empurra para muito além do ponto em que podemos entender isso como uma questão de leis antitruste, regulamentação mais rígida ou colocar trabalhadores nos conselhos corporativos. A condição prévia inescapável para a “liderança pública da economia” é a propriedade social de setores estratégicos, como produção farmacêutica, combustíveis fósseis (para requalificar trabalhadores e fechar poços e minas), grandes bancos e a infraestrutura digital da qual depende a vida no século XXI (banda larga, a nuvem, mecanismos de busca e mídias sociais). O retorno, em outras palavras, do projeto socialista revolucionário.

"No campo de batalha global, então, as oportunidades e os perigos para uma nova esquerda estão provavelmente igualmente distribuídos."

Digo ’revolucionário‘ porque o poder popular, mesmo no bloco da OCDE, enfrentará cada vez mais as capacidades repressivas do estado de vigilância aliado às políticas antidemocráticas do populismo autoritário. A violência social tende a se tornar comum, à medida que vulcões de desespero entrem em erupção em todo o mundo. Em alguns casos - por exemplo, onde governos nacionalistas extremos foram bem-sucedidos em direcionar o ódio para potências estrangeiras ou minorias locais, como na Índia ou na Polônia - os regimes de direita podem se tornar abertamente neofascistas. Em outros países, como o México, onde governos progressistas deixaram de cumprir promessas importantes, os resultados políticos permanecem imprevisíveis. Mas nos Estados Unidos, assim como no Brasil, os ventos sopram forte para a esquerda. Em retrospecto, calculo, os historiadores julgarão que o acontecimento mais surpreendente dos EUA no início do século XXI não foi Trump, mas o surgimento repentino de um amplo movimento multirracial que se identifica como socialista. A radicalização dos trabalhadores da saúde (17 milhões de pessoas) pode desempenhar o mesmo papel na década de 2020 que coube aos trabalhadores da indústria automobilística na década de 1930.

No campo de batalha global, então, as oportunidades e os perigos para uma nova esquerda estão provavelmente igualmente distribuídos. Mas vitórias socialistas em um ou outro país não levarão a um GGND na ausência de um novo internacionalismo. A erosão da solidariedade internacional se evidencia, talvez com maior clareza, na nova esquerda americana; nos debates para as prévias do Partido Democrata, por exemplo, nem Sanders nem Warren se pronunciaram sobre a pobreza global ou sobre a interação catastrófica entre secas e guerras no Sahel e na região do Crescente Fértil. Embora um 'Novo Acordo Verde' seja a principal bandeira de luta do movimento progressista, raramente se estende isso para incluir fundos de adaptação às mudanças climáticas para países pobres ou um Plano Marshall para as nações quebradas e pauperizadas pelas intermináveis ​​guerras dos EUA no Oriente Médio. Às vezes, o foco internizado da esquerda se aproxima perigosamente de uma versão do ’EUA em primeiro lugar‘ (America First).

É somente por meio de campanhas ativas e persistentes que podemos lançar novas bases para a solidariedade internacional. Agora que a pandemia se alastra pela África e o sul da Ásia, movimentos verdes e socialistas na América do Norte e na Europa precisam urgentemente se unir a grupos religiosos e humanitários para fazer as seguintes demandas:

  1. A reativação do princípio consagrado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de que a boa saúde é um direito universal.
  2. Um esforço maciço de ajuda internacional para impedir que milhões de pessoas morram na África e outras regiões pobres devido aos efeitos combinados de doença e fome.
  3. Bilhões de dólares a mais investidos em linhas de produção de vacinas para garantir um suprimento adequado para toda a humanidade. Todos os países devem ter direitos iguais ao crescente estoque de vacinas e medicamentos antivirais. Há um perigo grande que os países ricos guardem os suprimentos para si.

Num mundo em risco, uma visão revolucionária não exclui a busca da comunhão com todos que abraçam os valores humanistas essenciais. Na verdade, no momento atual, só existem dois líderes mundiais que invocam sistematicamente a urgência da solidariedade humana: um é o Dalai Lama e o outro é um fã de futebol argentino que mora numa casa grande em Roma. Devemos lembrar que todos os grandes revolucionários - Paine, Danton, Garibaldi, Marx, Luxemburgo, Lenin, Trotsky e Che - conceberam sua missão não apenas como a emancipação das classes trabalhadoras, mas a libertação de toda a humanidade.

Available in
EnglishPortuguese (Brazil)
Authors
Mike Davis
Published
30.04.2020
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