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COVID-19 e a Força Destrutiva do Sistema de Saúde Privatizado no Líbano

Como os fundamentos do capitalismo tardio, do governo oligárquico e das privatizações têm estripado a saúde pública e agravado o impacto da COVID-19 no Líbano.
O capitalismo, a maior força ordenadora do nosso mundo, produziu demais de tudo - inteligência artificial, medicina direcionada e personalizada, ciência da epigenética, nanotecnologias, monoculturas de alto rendimento, arte conceitual, cirurgia robótica e pessoas altamente instruídas.
O capitalismo, a maior força ordenadora do nosso mundo, produziu demais de tudo - inteligência artificial, medicina direcionada e personalizada, ciência da epigenética, nanotecnologias, monoculturas de alto rendimento, arte conceitual, cirurgia robótica e pessoas altamente instruídas.

Paradoxalmente, a pandemia da COVID-19, em desdobramento desde pelo menos dezembro do ano passado, ressaltou como o capitalismo também engendrou calamidades gigantescas: autoritarismo e vigilância de alta tecnologia; militarismo (tanto no discurso quanto na movimentação: há uma guerra contra o vírus); estados incapazes de fabricar - e por isso virados para o saque - kits básicos de proteção e higiene pessoal (máscaras, luvas, papel higiênico) e equipamentos médicos mais complexos (ventiladores, oxímetros); falta de pessoal, subfinanciamento, dilapidação e, em muitos lugares, inexistente infra-estrutura pública de saúde; vida precária (onde sua vida depende do salário mensal/semanal/dia/horário que você está fazendo como funcionário, ou como freelancer na "gig economy" ou economia informal); a incapacidade de cuidar dos doentes e dos vulneráveis; a violência dolorosa do valor ou a incapacidade de considerar os humanos fora de sua função como trabalhadores inscritos na economia capitalista (com trabalho aqui, diferente do trabalho, como definiu Hannah Arendt, e correspondente ao mundo artificial de objetos e mercadorias construídas pelos e através dos próprios humanos); e por fim, mas não menos importante, a tragédia de alguém que você ama morrendo sozinho sem que você tenha podido se despedir.

No que evidencia e revela, a pandemia COVID-19 (o que a precipitou, agravou, como chegamos lá, suas conseqüências estruturais atuais e futuras, seus limites) não é diferente do lançamento, em 1957, do Sputnik-1, o primeiro satélite espacial do mundo que levou Hannah Arendt a explorar como a interseção das formas de alienação do mundo e da Terra ameaçava o futuro da própria vida. Nossa condição contemporânea surge justamente da relação paradoxal entre tecnologia, ciência, especialização e riqueza concentrada nas mãos de poucos, de um lado, e trabalho humano (como aquele que produz, reproduz e sustenta a vida), de outro. Se os humanos podiam ir para o espaço, se algoritmos de computador podiam tomar decisões judiciais, se julgamentos controlados aleatórios podiam determinar a melhor forma de amenizar a pobreza global, tudo isso também tinha alterado radicalmente o reino das possibilidades existenciais e tornado ainda mais difíceis os compromissos mais antigos, mais terrenos, com a política e com o mundo (preocupações. Mais de meio século depois do Sputnik, a pandemia da COVID-19 provoca questões comparáveis, embora colocadas de forma diferente: ela desnuda o fato de que a forma como organizamos e produzimos nossas sociedades e nosso mundo nos deixa despreparados diante das ameaças mundanas.

Em uma escala menor e mais local, o Líbano não é diferente. Na verdade, é um exemplo do fiasco. É o descalabro do mundo 'glocalizado' (palavra desprezível) que criamos para nós mesmos. Um mundo fragmentado, constituído de relações estilhaçadas e disfuncionais entre humanos e não-humanos (árvores, rios, pontes, barragens, shoppings comerciais, carros de quatro rodas, caixas eletrônicos, um quilo de arroz, um diploma do ensino médio, o vírus); humanos uns com os outros; e política. Se há um setor, um campo de atividade, onde isso é mais óbvio (ainda mais dadas as circunstâncias atuais), é o setor de saúde.

Sistemas de saúde públicos e privados no Líbano

O sistema de saúde do Líbano é altamente privatizado, com cerca de 70% dos centros de saúde primários e 80% dos hospitais (incluindo pelo menos 8 hospitais universitários) pertencentes ao setor privado. Também é fragmentado, pois é construído em torno de parcerias público-privadas imbricadas com múltiplas fontes de prestação de serviços, financiamento e administração (realizadas por instituições que aprovam protocolos reembolsáveis, estabelecem cursos de tratamento reconhecidos e autorizados) para os pacientes.

Prestação de serviços e financiamento

Os prestadores de serviços incluem hospitais públicos semi-autônomos, hospitais privados sem fins lucrativos, hospitais privados com fins lucrativos e mais de 700 centros de saúde primários e Centros de Desenvolvimento Social que prestam serviços de saúde primária - 70% dos quais são dirigidos por ONGs (locais e internacionais) e associações afiliadas a instituições religiosas ou partidos políticos. O Ministério da Saúde Pública também supervisiona uma rede de cerca de 220 clínicas que oferecem pacotes de atendimento abrangente - com saúde sexual e reprodutiva incluída - e que foram credenciadas pelo Ministério. As fontes de financiamento são bastante variadas. Elas incluem, entre outras, o Ministério da Saúde Pública, o Fundo Nacional de Seguridade Social (NSSF), os fundos das forças armadas, cooperativas de funcionários públicos, Organizações Não-Governamentais (ONGs) e seguradoras privadas. Hoje, cerca de 47% dos cidadãos libaneses têm cobertura de seguro saúde. Cerca de 23% estão cobertos pelo Fundo Nacional de Seguridade Social (NSSF), 9% por esquemas militares, 7% por seguros privados, 4% pela Cooperativa dos Servidores Públicos e 4% por outros esquemas. Os demais 53% não têm cobertura formal e são cobertos pelo Ministério da Saúde Pública, que atua como "seguradora de último recurso". Vale ressaltar também, aqui, que a cobertura de saúde no nível das clínicas de saúde primária se dá através do programa específico do Ministério para a atenção primária financiado pelo Banco Mundial, por meio de uma combinação de doações e empréstimos (150 milhões de dólares).

Existem outras formas e fontes de cobertura de saúde para os estrangeiros sem cidadania que vivem no Líbano. Os refugiados palestinos têm acesso à saúde através dos sistemas de saúde administrados e/ou financiados pela UNRWA, incluindo clínicas de saúde primária administradas pela própria UNRWA, hospitais administrados pela Palestinian Red Crescent Society e hospitais privados ou públicos inscritos no Sistema de Saúde Libanês (e onde os custos de tratamento são cobertos por fundos da UNRWA e seus parceiros). Como é conhecido de todos, e há muito tempo, a UNRWA vem lidando com repetidos cortes de fundos, suspensões de serviços e descontinuidade nos programas. Os refugiados sírios têm acesso à saúde através dos mecanismos de apoio do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), incluindo ONGs internacionais e/ou locais parceiras. Eles acessam as diferentes clínicas do país que são apoiadas pelo ACNUR ou por ONGs. O ACNUR também fornece acesso subsidiado a níveis mais especializados de atendimento em hospitais libaneses. Também aqui tem havido uma tendência geral: os fundos dedicados ao atendimento continuam a diminuir enquanto os hospitais privados continuam a lucrar com o corpo humano. Sobre esse ponto: os trabalhadores migrantes não têm cobertura de saúde além do seguro médico obrigatório do kafala*. Embora tecnicamente permita aos trabalhadores migrantes com papéis válidos do kafala o acesso aos cuidados essenciais nos hospitais públicos, a realidade da sua experiência vivida é outra. Além do apoio que recebem de certas ONGs, os trabalhadores migrantes indocumentados não têm qualquer cobertura de saúde. Por último, mas não menos importante, e com contribuições do Fundo Fiduciário do Banco Mundial para o Líbano (TFL), e do ACNUR, o Governo do Líbano - através do Ministério dos Assuntos Sociais - continua a implementar o Programa Nacional de Focalização na Pobreza (NPTP) já estabelecido em 2011, no âmbito do Projeto de Apoio à Implementação da Segunda Emergência de Proteção Social do Líbano (projeto ESPISPII). Este projeto envolveu assistência social a 40.000 famílias libanesas extremamente pobres, mas também, entre outras coisas, cobertura de saúde para beneficiários em hospitais públicos e privados através da renúncia de 10-15% de co-pagamentos para hospitalização.

Capitalismo do desastre: a Guerra Civil Libanesa e o setor de saúde

A Guerra Civil Libanesa teve um impacto tremendo nos sistemas de saúde do país. Entre 1975 e 1990, a prestação de serviços de saúde pelo governo diminuiu tremendamente. Esses longos anos de luta civil também levaram à destruição sistemática das capacidades financeiras, infra-estruturais e institucionais do setor público de saúde. Em 1990, apenas metade dos 24 hospitais públicos ficaram em funcionamento, com um número médio de leitos ativos não superior a 20 por hospital. Os hospitais públicos foram destruídos, fechados, deixaram de funcionar, médicos e enfermeiros foram queimados e muitos até fugiram do país. Por outro lado, durante a guerra, houve também um cogumelo de clínicas pertencentes a ONGs, várias associações e partidos políticos - essas clínicas primárias de saúde aos poucos assumiram os serviços que deveriam ter sido prestados pelo setor público. Ainda mais, as agências da ONU tiveram um papel importante na concepção e implementação de programas essenciais de saúde, em coordenação conjunta com as ONGs. As atividades médicas desses centros dependiam fortemente da disponibilidade de medicamentos, que eram frequentemente doados por agências como a UNICEF, que utilizavam esses medicamentos como incentivo a programas de prevenção entre as ONGs.

Assim, a guerra, de certa forma, precipitou a virada para uma privatização total do setor de saúde no Líbano. Enquanto em 1970, apenas 10% do orçamento do Ministério da Saúde Pública era destinado à saúde em hospitais privados, estima-se que hoje mais de dois terços da receita dos hospitais privados provêm de dinheiro público. No total, o Ministério da Saúde Pública também conta fortemente com financiamento e apoio internacional. Os parceiros do Ministério incluem múltiplas agências da ONU, agências governamentais, fundos da UE, apoio do Banco Mundial e intervenção de ONGs. Como mencionado anteriormente, esses parceiros operam no nível das clínicas do país, mas também no "desenvolvimento das capacidades" dos hospitais públicos. Por exemplo, o Hospital Universitário Rafik Hariri (anteriormente conhecido como Hospital Governamental de Beirute do BGUH), que ajuda a liderar os esforços do país para conter a propagação da COVID-19, testar e tratar pacientes, conta com o apoio de organizações como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e Médicos Sem Fronteiras.

Por fim, dívida nacional, déficit comercial, dissidência interna, profundas discordâncias políticas e pressões do setor privado influenciam como o orçamento do Ministério da Saúde Pública é alocado e gasto. Além da suposição popular (muitas vezes exagerada) de que os partidos políticos utilizam fundos públicos para fins clientelistas, administradores de hospitais privados, médicos conhecidos e altamente influentes, bem como empresas importadoras de medicamentos, desempenham um papel substancial na forma como os fundos do Ministério da Saúde Pública são desembolsados: em hospitais privados, na comprar medicamentos de empresas como Mersaco, Fattal, Pharaon, Omnipharma e outras. As empresas farmacêuticas se beneficiam muito do cenário da saúde privada do país. Segundo dados da alfândega libanesa, em 2014, por exemplo, o Líbano importou US$ 1,1 bilhão em produtos farmacêuticos. Um total de dez empresas controlam 90% do mercado, sendo que apenas quatro dessas empresas controlam 50% do mercado. Isso dá uma idéia aproximada do lucro exorbitante que essas empresas devem estar obtendo.

Com ou sem a COVID-19, a saúde privada é criminosa?

Como disse Yanis Varoufakis, a saúde privada não só é ineficiente, como também é destrutiva. Cada dólar gasto em saúde privada diminui a capacidade de nossas sociedades lidarem com pandemias. Não há argumento para a saúde privada e não apenas porque ela torna os cuidados de saúde caros e inacessíveis. No cerne de tudo isso estão também as questões relativas aos significados associados à saúde, à doença e às enfermidades, do que conta como importante em nossas sociedades, de como os profissionais de saúde são treinados, valorizados e remunerados, como a especialização nega habilidades e conhecimentos mais gerais e como os corpos humanos são considerados. A saúde privada explora a vulnerabilidade humana diante da morte. Simplesmente, é o pior e mais imoral tipo de exploração e despossessão (do próprio corpo em prol do lucro). O Líbano é um caso em questão. Com um sistema de saúde tão privatizado e fragmentado, é impossível desenvolver quadros preventivos e curativos de saúde social (de saúde como direito), muito menos enfrentar uma pandemia como a COVID-19. Como mencionado anteriormente, as capacidades destrutivas da saúde privada giram em torno da incapacidade dos pacientes de arcar com os custos e acessar a assistência, mas também incluem a própria capacidade de uma sociedade de lidar com uma pandemia. Vamos desenvolver ainda mais esta ideia tomando dois exemplos: a capacidade de testes do país e a recusa dos hospitais privados em assumir os testes COVID-19 e o tratamento de pacientes gratuitamente.

Teste de Covid-19

Durante a última semana de março, a Ordem dos Médicos Libanesa condenou o teste COVID-19 que estava sendo realizado por vários hospitais e laboratórios privados em todo o país e pediu ao Ministério da Saúde Pública que instasse as empresas importadoras a restringir as vendas a um punhado de hospitais qualificados. A Ordem também pediu ao Ministério que cobrisse os custos desses testes em hospitais privados. Os testes para a COVID-19 são realizados utilizando RT-PCR (Reverse Transcription Polymerase Chain Reaction), técnica que permite medir a quantidade de seqüências genéticas específicas do vírus. A RT-PCR é uma técnica altamente sensível que envolve o uso de diferentes protocolos, kits e tipos de sondas (uma molécula utilizada para detectar e identificar as seqüências genéticas do vírus). Requer também medidas de controle de qualidade (testes e re-testes para garantir que os resultados sejam confiáveis) que são quase impossíveis de se obter quando os testes estão sendo realizados de forma aleatória. O risco e o percentual de falsos negativos e falsos positivos (de graves conseqüências no caso da COVID-19) são assim aumentados em tal cenário de saúde. É provável que o número oficial de casos relatados diariamente pelo Ministério da Saúde Pública não seja tão exato quanto poderia ser.

Como acompanhamento, e em circular emitida em 3 de abril de 2020, o Ministério da Saúde Pública forneceu uma lista de 15 hospitais que considerou qualificados para realizar os testes COVID-19 usando RT-PCR. Uma rápida olhada nessa lista revela mais duas deficiências: o acesso aos cuidados e a transferência de encargos nos hospitais públicos. Não há hospitais para testes na região de Bekaa, no Sul ou em Akkar. Apenas um dos hospitais listados (Rafik Hariri University Hospital - RHUH em Beirute) é um hospital governamental que realiza o teste gratuitamente. Os pacientes que se dirigiam aos outros hospitais tinham que pagar por seus exames. Os pacientes que optaram por fazer o teste em um dos centros universitários médicos mais conhecidos do país em Beirute relataram pagar até LBP 160.000 (Libras libanesas equivalentes a US$100) para abrir um arquivo médico (quando são novos pacientes para aquele hospital em particular), além de LBP 200.000 para o teste real. Alguns pacientes também foram solicitados a se submeterem e pagarem por radiografias torácicas. Da mesma forma, o diretor da RHUH, Dr. Firass Abiad, declarou no Twitter que quando a capacidade de exames da RHUH está sobrecarregada, a RHUH envia exames para o Centro Médico da Universidade Americana de Beirute e para o hospital do Hotel Dieu de France (que pertence à Universidade particular Saint Joseph) como parte da colaboração do hospital governamental na luta para enfrentar a pandemia da COVID-19 - não está claro se a RHUH e o Ministério da Saúde Pública têm que pagar esses dois hospitais particulares por esses exames.

Transferência de encargos

Existem diferentes maneiras de conceituar a colaboração entre estabelecimentos de saúde públicos e privados. No Líbano, essa colaboração é algo parecido com isto: o sistema de saúde é criado para que as instituições privadas de saúde colham lucros enquanto despejam os encargos financeiros e médicos e os riscos nos hospitais governamentais. A transferência de encargos é um quadro através do qual se pode explorar a dinâmica do setor de saúde, como, por exemplo, a transferência hierárquica e de gênero de encargos de médicos para enfermeiros. No Líbano, os enfermeiros são altamente explorados, sobrecarregados e mal remunerados. Segundo Mirna Doumit, chefe da Ordem dos Enfermeiros, o salário de um enfermeiro em tempo integral pode chegar a 700.000 LBP. Com o contínuo colapso financeiro do país, vários hospitais reduziram os salários dos enfermeiros e muitos enfermeiros já passaram 5 ou 6 meses sem salário. Mas nosso interesse aqui é a dinâmica das relações entre estabelecimentos privados de saúde e hospitais governamentais. Nos últimos anos, a crise dos refugiados sírios já havia aprofundado nosso entendimento de como ocorre a transferência desse tipo de ônus. Hospitais privados, embora contratados pelo ACNUR para tratar pacientes refugiados sírios, muitas vezes recusariam a admissão de pacientes com fatores de alto risco - pois estes poderiam precisar de cuidados intensivos, ou poderiam passar longas internações no hospital. Há muitas razões para essa recusa de internação, incluindo, mas não se limitando a: poupar capacidades limitadas de leitos (especialmente na unidade de terapia intensiva) para pacientes que pagariam taxas mais altas; e evitar a responsabilização por um pico em suas taxas de mortalidade potencial - o que, como no caso da mortalidade materna, por exemplo, é algo que é normalmente investigado pelo Ministério. Esses casos muitas vezes acabam em hospitais governamentais.

No contexto da estratégia nacional do Ministério para enfrentar a pandemia da COVID-19, o Hospital Governamental de Beirute tem como incumbência prover atendimento gratuito para todos. Em tese, o maior hospital do país (com capacidade potencial de quase 600 leitos) é um hospital universitário, equipado para lidar com casos complicados, e cujo pessoal realiza pesquisas médicas e é capaz de oferecer atendimento de alta qualidade e produzir sólidos conhecimentos científicos. Mas os fatos no país (e a enxurrada de campanhas de arrecadação de fundos destinadas a apoiar o hospital) mostram que o pessoal está sobrecarregado, mal pago e exposto, que muitas vezes falta equipamento e que o estado geral da infra-estrutura do hospital é decrépito. Enquanto isso, e até o momento de escrita deste artigo, hospitais privados continuam a recusar atendimento gratuito aos pacientes diagnosticados com a nova infecção pelo coronavírus. O argumento deles: o Ministério da Saúde Pública e o Fundo Nacional de Seguridade Social nos devem dinheiro atrasado para os pacientes que tratamos há séculos. Não está claro se eles se recusarão a internar os pacientes, caso o Hospital Governamental de Beirute fique sobrecarregado (e talvez fique).

Vários grandes hospitais privados em Beirute e arredores já anunciaram a criação de enfermarias especiais para diagnosticar, cuidar e tratar pacientes diagnosticados com uma infecção por COVID-19. Em um memorando dirigido às seguradoras (a maioria das quais está excluindo os custos relacionados à COVID-19 de sua cobertura - os contratos dessas empresas especificam que as pandemias não estão incluídas) e a terceiros pagadores privados, um desses hospitais, um renomado estabelecimento francófono no subúrbio oriental de Beirute, listou o preço dos exames e tratamento em seu "centro da gripe". Antes da admissão, os testes diagnósticos (vários testes PCR, um exame torácico e uma consulta clínica) podem custar até um total de US$ 638. Após a internação, todas as noites passadas no hospital, sem contar o custo de medicamentos, consultas, etc., custariam a cada paciente: US$ 1.000 em um quarto isolado; US$ 1.500 na unidade de terapia intensiva quando não houver necessidade de ventilador; e US$ 2.800 na unidade de terapia intensiva quando for utilizado um ventilador. Aos pacientes cobertos pelo Fundo Nacional de Previdência Social, é concedido um desconto de 30%. Procedimentos adicionais incluindo oxigenação extracorpórea, uma técnica de oxigenação do sangue fora do corpo que desempenha temporariamente o papel do coração e pulmões quando não estão funcionando adequadamente, é cobrado como uma intervenção única, a uma taxa de US$ 10.000. A esmagadora maioria da população do Líbano não pode arcar com tais cuidados, mesmo antes do colapso financeiro do país (muito menos após a desvalorização da libra libanesa). Essas pessoas irão para o hospital governamental, mesmo que ele esteja dilapidado. É um hospital para os pobres, não é mesmo? Mas então o que farão os hospitais privados se o hospital governamental for sobrecarregado? Recusar-se a admitir pacientes? Puxar a tomada quando depois de duas semanas na unidade de terapia intensiva uma família não consegue mais cobrir a conta? Não há direitos sob o capitalismo, no fim das contas, apenas o consumo. Você recebe pelo que paga. Lide com isso. Siga em frente.

Se o mundo está quebrado, o Líbano também está despedaçado e à beira da implosão. A nova pandemia de coronavírus agravou os efeitos de anos de exploração, extração e despossessão ininterruptas pelos oligarcas do país, que o deixaram país no caos. Mas como bem observou Adam Hanieh, o mundo está, de alguma forma, compartilhando coletivamente uma experiência desse tipo. Tratar da pandemia da COVID-19 e do desdobramento do colapso econômico global requer uma abordagem global. Quarentena ou não, nunca estivemos tão conectados, mas em "termos concretos", onde realmente importa, nunca nos sentimos mais sozinhos. É aqui que recaímos no enigma em que reside o cerne da questão: a tensão paradoxal entre ciência e avanços tecnológicos, de um lado, e nossas relações com a vida e uns com os outros, de outro. Há uma ligação não surpreendente a ser feita aqui com outro trabalho muito citado de Arendt sobre "As Origens do Totalitarismo" - onde ela argumenta que o totalitarismo, como predisposição política, nasce dessa mesma relação dialética. Em sua luta contra o novo coronavírus, os Estados têm respondido de forma cada vez mais totalitária.

A pandemia da COVID-19 revelou as muitas formas pelas quais sofremos de uma dupla alienação: da "natureza" (as relações humanas com o meio ambiente) e do mundo social que criamos (o colapso econômico) - se tal distinção for mesmo possível. A política é o que opera a mediação entre os dois. Como nos posicionamos diante das calamidades? Como desmantelar o Banco Mundial? Como desmantelar o FMI? Como evitar que o capitalismo mundial, mais uma vez, se reinvente, volte a aprofundar, mais uma vez, a alienação e a aumentar, vez após outra, as desigualdades? É um mundo onde, como disse Karl Marx, cada um poderia se realizar em tudo o que desejasse? Ao fazer essas perguntas, não estou interessado em sondar a pragmática das proposições políticas. Ao contrário, estou procurando ativar o trabalho da imaginação para que outros futuros se tornem possíveis.

No mínimo, ninguém deveria morrer sozinho.

Foto: marviikad, Flickr

Available in
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Author
Cynthia Kreichati
Translators
Rodolfo Vaz and Dennis Pacheco
Date
16.06.2020
Source
Original article
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