War & Peace

"Mostramos que outra Bolívia é possível": Entrevista com Evo Morales

O ex-presidente da Bolívia (2006-19) fala sobre o papel do Reino Unido no golpe que o derrubou.
Em sua casa no coração da floresta amazônica, Evo Morales conta como reverteu 500 anos de história e industrializou a Bolívia, e fala dos esforços dos EUA e do seu aliado, o Reino Unido para derrubá-lo.
Em sua casa no coração da floresta amazônica, Evo Morales conta como reverteu 500 anos de história e industrializou a Bolívia, e fala dos esforços dos EUA e do seu aliado, o Reino Unido para derrubá-lo.
  • O GOLPE: 'O Reino Unido participou dele - tudo pelo lítio'.
  • OS BRITÂNICOS: 'A superioridade é tão importante para eles, a capacidade de dominar'.
  • OS EUA: 'Qualquer relação com eles está sempre sujeita a condições'.
  • O NOVO MODELO: 'Já não nos submetemos às empresas transnacionais'.
  • JULIAN ASSANGE: 'A prisão do nosso amigo é uma intimidação'.
  • A OTAN : "Precisamos de uma campanha global para a eliminá-la
  • A BOLÍVIA: 'Estamos pondo o antiimperialismo em prática'

Quando Evo Morales, o primeiro presidente indígena da Bolívia, foi deposto num golpe de Estado apoiado pelo Reino Unido, em novembro de 2019, muitos pensaram que a vida dele corria perigo. A história da América Latina está repleta de líderes de libertação eliminados por potências imperiais vingativas.

 O lendário líder da resistência Túpac Katari, que, assim como Morales, pertencia ao grupo indígena aymara, teve os seus membros amarrados firmemente a quatro cavalos pelos espanhóis, em 1781; os animais dispararam e ele foi despedaçado.

Passados 238 anos, a autodeclarada "presidente interina" da Bolívia, dias após o golpe contra Morales, Jeanine Áñez, apareceu no Congresso brandindo uma enorme Bíblia encadernada em couro. "A Bíblia voltou para o palácio de governo", anunciou.

O seu novo regime foi imediatamente imposto, mediante o Decreto 4078, que deu imunidade aos militares por quaisquer ações tomadas "em defesa da sociedade e da manutenção da ordem pública". Foi uma luz verde. No dia seguinte, dez manifestantes desarmados foram massacrados pelas forças de segurança.

Quando o golpe parecia inevitável, Morales passou à clandestinidade. 

O seu destino, assim como o do vice-presidente, Álvaro García Linera, foi El Trópico de Cochabamba, uma zona tropical nas profundezas da floresta amazônica, no coração da Bolívia, e o centro do seu partido Movimiento al Socialismo (MAS) e da sua base indígena.

Antes de renunciar oficialmente ele voou para o remoto aeroporto de Chimoré, onde os agricultores locais de coca haviam fechado as estradas de acesso. 

A folha de coca constitui a base da cocaína e, antes de Morales se tornar líder, o aeroporto tinha sido uma base estratégica da DEA (Agência Antidrogas) estadunidense na região. Morales expulsou a DEA da Bolívia em 2008 e converteu a base num aeroporto civil. Em pouco tempo a produção de coca diminuiu

Dias depois da chegada de Morales e Linera a El Trópico, o presidente de esquerda do México, Andrés Manuel López Obrador, enviou um avião para resgatá-los, levando-os novamente ao aeroporto de Chimoré para a fuga. 

Obrador disse mais tarde que as forças armadas bolivianas haviam disparado uma granada lançada por foguete momentos depois da decolagem. Parece que o regime golpista apoiado pelo Reino Unido queria ver morto o presidente deposto, que servira durante 13 anos. Morales diz que Obrador salvou a sua vida

Villa Tunari

Morales está de volta a El Trópico, mas em circunstâncias muito diferentes. 

Após um ano de "governo provisório", a democracia foi restaurada em outubro de 2020, e o MAS de Morales ganhou as eleições novamente. O novo presidente, Luis Arce, ex-ministro da Economia de Morales, tomou o poder e Morales regressou triunfante do exílio na Argentina.

Após percorrer a pé grande parte do país, ele voltou a se instalar em El Trópico. 

Recentemente mudou-se para uma casa em Villa Tunari, uma pequena cidade a apenas 32 quilômetros da estrada do aeroporto de Chimoré. A sua população é de pouco mais de 3.000 habitantes. 

Para ir até lá vindo de Cochabamba, a cidade mais próxima, são necessárias quatro horas em um micro-ônibus, que parte a cada dez minutos. No caminho passa-se por Sacaba, a cidade onde o regime massacrou 10 manifestantes um dia depois de conceder impunidade aos militares. 

À medida que o micro-ônibus adentra El Trópico, o significado de Morales e do seu partido MAS fica cada vez mais óbvio. 

As casas de cobogó com telhados de zinco, moradia dos pobres em todo o mundo, expõem murais com o rosto de Morales na parede. O seu nome em caixa alta - EVO -  aparece por todo lado, assim como a sigla MAS. 

Tunari é uma cidade indígena tradicional e um destino turístico rodeado por parques nacionais. A indústria turística se recuperou desde a restauração da democracia. Como El Trópico forma a espinha dorsal do apoio a Morales e ao MAS, houve forte repressão enquanto o regime golpista esteve no poder. Por um tempo, o regime de Áñez desativou os caixas bancários eletrônicos da região, tentando isolá-la completamente. 

Mas Tunari voltou a fervilhar com atividades. Ao longo da rua principal há restaurantes de frango frito e peixe. Os ônibus emitem fumaça na central de transportes da cidade, e hotéis e albergues se espalham pelas ruas secundárias. Um rio caudaloso de cor sépia corre ao longo da cidade. Parece uma parada estereotipada dos mochileiros latino-americanos. 

"Parceiro estratégico"

Chego a Tunari no fim da tarde de sábado, após um longo voo para Cochabamba e a viagem de quatro horas no micro-ônibus.

 A entrevista com Morales está marcada para segunda-feira, mas quando chego e ligo o wifi do celular entra uma leva de mensagens do assistente dele. Morales está quase pronto para o dia e quer fazer a entrevista mais tarde nesta mesma noite, dentro de algumas horas. E quer fazê-lo em sua casa. Ele é notório pela ética de trabalho. 

Pouco depois, o colega que vai filmar a entrevista vem me buscar. Sob uma tempestade tropical com lençóis d’água que caem como tijolos, seguimos para a cidade num tuk-tuk e sentamo-nos debaixo de uma lona para tomar um café e esperar a ligação do assistente. 

Por fim ele liga, nos amontoamos em outro tuk-tuk e cruzamos ruas isoladas até chegar ao muro de uma casa insignificante. Uma mulher vem ao nosso encontro e nos conduz para o interior. Entramos na sala de estar vazia, à exceção de dois sofás. Mais tarde descubro que esta é a primeira entrevista a um jornalista que Morales dá na sua casa. 

Obtive a entrevista devido a uma investigação que publiquei em março de 2021 em que revelei o apoio do Reino Unido ao golpe que depôs Morales. 

O Ministério de Relações Exteriores britânico divulgou 30 páginas de documentos sobre os programas da sua embaixada na Bolívia. Eles  mostraram que,no mês seguinte à fuga de Morales do país, parece ter havido um pagamento a uma empresa sediada em Oxford para otimizar a "exploração" dos depósitos de lítio da Bolívia. 

Os documentos mostram também que a embaixada do Reino Unido em La Paz agiu como um "parceiro estratégico" do regime golpista, e organizou um evento internacional de mineração no país quatro meses após a derrocada da democracia.

A história viralizou na Bolívia. O ministro de Relações Exteriores, Rogelio Mayta, chamou o embaixador do Reino Unido, Jeff Glekin, para que explicasse o conteúdo do artigo e solicitou um relatório sobre as conclusões. A embaixada britânica em La Paz, a capital da Bolívia, divulgou uma declaração alegando que a Declassified estava envolvida numa "campanha de desinformação", mas não forneceu quaisquer provas. 

"Nos primeiros seis anos tivemos os mais altos níveis de crescimento econômico de toda a América do Sul, devido às políticas provenientes de movimentos sociais baseados na nacionalização", explica Morales.  

Ele fez parte da "maré rosa" de governos de esquerda na América Latina na década de 2000, mas o seu modelo era economicamente mais radical do que os demais.

No seu centésimo dia no cargo, Morales nacionalizou as reservas de petróleo e gás, ordenou aos militares que ocupassem os campos de gás do país e deu aos investidores estrangeiros o prazo de seis meses para cumprirem as suas exigências ou partirem. 

Morales crê que o programa de nacionalização foi o que levou ao golpe de Estado apoiado pelo Ocidente contra ele.

"Continuo convencido de que o império, o capitalismo, o imperialismo, não aceitam que haja um modelo econômico melhor do que o neoliberalismo", diz ele. "O golpe foi contra o nosso modelo econômico… mostramos que outra Bolívia é possível".

Valor agregado

Morales diz que a segunda fase da revolução - após a nacionalização - foi a industrialização. "A parte mais importante foi o lítio", acrescenta. 

A Bolívia tem a segunda maior reserva mundial de lítio, metal que é empregado na produção de baterias e se tornou cada vez mais cobiçado devido ao crescimento da indústria automotiva elétrica.

Ele recorda uma viagem de formação que fez à Coreia do Sul, em 2010. 

"Estávamos discutindo acordos bilaterais, investimentos, cooperação e eles me levaram para visitar uma fábrica que produzia baterias de lítio", diz Morales. "Curiosamente, a Coreia do Sul estava a pedir-nos lítio, como matéria-prima".

Ele perguntou na fábrica quanto havia custado a construção das instalações. Disseram-lhe 300 milhões de dólares. 

"As nossas reservas internacionais estavam aumentando”, acrescenta ele. "Naquele momento eu disse 'posso garantir 300 milhões de dólares'. Eu disse aos coreanos: 'vamos replicar esta fábrica na Bolívia. Posso garantir o vosso investimento’. Os coreanos disseram não. 

"Foi quando eu percebi que os países industrializados só querem de nós, os latino-americanos, a garantia das matérias-primas. Eles não querem que nos entregar o valor agregado".

Àquela altura Morales resolveu começar a industrializar a Bolívia, invertendo meio milênio de história colonial. 

Na tradicional dinâmica imperial que havia mantido a Bolívia pobre, os países ricos extraíam matérias-primas, as enviavam à Europa para serem transformadas em produtos, industrializando a Europa ao mesmo tempo, e depois os vendiam de volta à Bolívia como produtos acabados, com  margem de lucro. 

Diante dos depósitos de lítio do país, Morales estava determinado a pôr um fim a este sistema. A Bolívia não se limitaria a extrair o lítio. Fabricaria as baterias também. Ele chama isso de "valor agregado".  

"Começamos com um laboratório, obviamente com peritos internacionais contratados", conta. "Depois erguemos uma fábrica piloto. Investimos cerca de 20 milhões de dólares, e ela agora está funcionando. Todos os anos produz cerca de 200 toneladas de carbonato de lítio e baterias de lítio em Potosí". 

Potosí é uma cidade ao sul do país que se tornou o centro do império espanhol na América Latina quando, no século XVI, ali descobriram gigantescas jazidas de prata. Chamada de "a primeira cidade do capitalismo", estima-se que até oito milhões de indígenas tenham morrido trabalhando na mineração do Cerro Rico de Potosí, cujo fruto era destinado à Europa.

Morales continua: "Tínhamos um plano de instalar 42 novas plantas [de lítio] até 2029. Estimava-se que os lucros seriam de cinco bilhões de dólares. Lucros"!

"Foi quando veio o golpe", afirma. "Os EUA dizem que a presença da China não é permitida, mas… ter um mercado na China é muito importante". E também na Alemanha. O passo seguinte foi com a Rússia, e então veio o golpe de Estado". 

Ele prossegue: "Ainda no ano passado, descobrimos que a Inglaterra também tinha participado no golpe - tudo por causa do lítio".

 Mas Morales diz que a longa luta do seu povo pelo controle das próprias riquezas não é única.

"Esta luta não ocorre só na Bolívia, ou na América Latina, mas em todo o mundo", diz. "A quem pertencem os recursos naturais? Ao povo, sob o controle do Estado? Ou eles são privatizados sob o controle das transnacionais, para pilharem os nossos recursos naturais?"

Parceiros ou patrões?

O programa de nacionalização de Morales o pôs em rota de colisão com as poderosas empresas transnacionais que estavam habituadas à dinâmica imperial tradicional.

"Durante a campanha de 2005 nós dissemos: se as corporações quiserem estar aqui, o farão como parceiras, ou para prestar serviços, mas não como patroas ou proprietárias dos nossos recursos naturais", diz Morales. "Estabelecemos uma posição política com relação às empresas transnacionais: falamos, negociamos, mas não nos submetemos às corporações".

Ele cita o exemplo dos contratos de hidrocarboneto assinados por governos anteriores.

"Os contratos anteriores - feitos por neoliberais - diziam literalmente: 'o titular adquire os direitos sobre o produto na boca do poço'. Quem é o detentor do título de propriedade? A companhia petrolífera transnacional. Eles o querem da boca do poço". 

E acrescenta: "As empresas dizem que quando está no subsolo pertence aos bolivianos, mas quando sai do subsolo já não é dos bolivianos. A partir do momento em que sai, as empresas transnacionais têm direito adquirido sobre ela. Por isso dissemos: dentro ou fora, tudo pertence aos bolivianos".

Morales continua: "O mais importante agora é que de 100% das receitas, 82% é para os bolivianos e 18% para as corporações. Antes era 82% para as empresas, 18% para os bolivianos, e o Estado não tinha controle sobre a produção - quanto produziam, como produziam - nada".

Foi uma batalha difícil, acrescenta, e algumas empresas saíram. 

"Respeitamos a decisão delas de partir", diz ele. "Mas dissemos que, em vez de ir para a CIADI, quaisquer reivindicações legais seriam feitas na Bolívia. Essa foi outra batalha que enfrentamos, para que as reivindicações fossem tratadas no plano nacional, porque se trata de uma questão de soberania e dignidade".

CIADI é o acrônimo espanhol do Centro Internacional de Resolução de Litígios de Investimento. Um ramo pouco conhecido do Banco Mundial, é o principal foro supranacional onde as empresas transnacionais podem processar os Estados por decretarem políticas que, segundo elas, infringem os seus "direitos de investidor". Na realidade, é um sistema que muitas vezes permite às corporações anular ou arrefecer a formulação de políticas estatais soberanas - ou obter somas enormes em indenização. 

Neste sistema de "arbitragem", uma empresa britânica levou a Bolívia ao tribunal. Em 2010, o presidente Morales nacionalizou o maior fornecedor de energia do país, a Empresa Eléctrica Guaracachi. 

O investidor energético britânico Rurelec, que detinha indiretamente a participação de 50,001% na empresa, levou a Bolívia a outro tribunal, desta vez em Haia, exigindo uma indenização de 100 milhões de dólares. 

A Bolívia acabou sendo condenada a pagar 35 milhões de dólares à Rurelec; após novas negociações, em maio de 2014 as partes chegaram a um acordo sobre o pagamento, de pouco mais de 31 milhões de dólares. 

A Rurelec comemorou o prêmio com uma série de comunicados de imprensa no seu website. "A minha única tristeza é que tenha demorado tanto para chegar a um acordo", declarou o CEO do fundo. "A única coisa que  queríamos era uma negociação amigável e apertar a mão do presidente Morales".

Condições de colocação

Desde a formação da Doutrina Monroe, em 1823, que reivindicou o Hemisfério Ocidental como esfera de influência dos EUA, a Bolívia tem estado, em grande parte, sob o seu controle. Isto mudou pela primeira vez com o advento do governo Morales. 

"Como Estado, queremos manter relações diplomáticas com todo o mundo, mas baseadas no respeito mútuo", afirma Morales. "O problema que temos com os EUA é que qualquer relação com eles está sempre sujeita a condições".

Ele continua: "É importante ter comércio e relações baseadas no benefício mútuo, e não na competição". E encontramos alguns países europeus que fazem isso. Mas, acima de tudo, encontramos a China. As relações diplomáticas com eles não se baseiam em condições".

Ele acrescenta: "Com os EUA, por exemplo, e o seu plano econômico, a Millennium Challenge Corporation (MCC), se quiséssemos ter acesso a ele tínhamos de, em troca, privatizar os nossos recursos naturais".

O MCC foi um projeto da administração George W. Bush que procurou gerir a ajuda mais como um negócio. Dirigido por um CEO, é financiado por fundos públicos mas atua de forma autônoma, e tem um conselho de administração ao estilo de uma corporação, com empresários especialistas em fazer dinheiro. A ajuda "compacta" que assina com os países vem acompanhada de "condicionalidades" políticas.

"A China não nos impõe quaisquer condições, tal como a Rússia e como alguns países da Europa", acrescenta Morales. "Portanto, essa é a diferença".

Um vislumbre de como o governo dos EUA tradicionalmente encara a Bolívia está numa conversa privada entre o presidente Nixon e o seu conselheiro de segurança nacional, Henry Kissinger, em junho de 1971.

Kissinger: Também estamos com um grande problema na Bolívia. E -

Nixon: Percebi isso. [John, secretário do Tesouro dos EUA] Connally mencionou isso. O que você quer fazer a respeito?

Kissinger: Eu disse ao [subdiretor da CIA para planos Thomas] Karamessines que iniciasse uma operação o mais rápido possível. Até o embaixador, que tem sido um molenga, agora diz que precisamos começar a jogar com os militares de lá, ou a coisa vai por água abaixo.

Nixon: Sim.

Kissinger: Isso deve ser na segunda-feira.

Nixon: Sim: O que Karamessines acha que precisamos? De um golpe?

Kissinger: Veremos o que podemos, se - e em que contexto. Eles vão nos expulsar  dentro de uns dois meses. Já se livraram do Corpo de Paz, que é um trunfo, mas agora querem se livrar-se da [Agência de Informação dos EUA] e dos militares. E não sei se podemos sequer pensar num golpe, mas temos de descobrir qual é a situação do terreno. Quer dizer, antes de eles darem um golpe, nós...

Nixon: Lembre-se, nós demos a esses malditos bolivianos aquele estanho.

Kissinger: Bem, podemos sempre inverter isso. Então nós...

Nixon: Inverta isso.

O "maior problema" na Bolívia de que Kissinger falava era Juan José Torres, um líder socialista que havia tomado o poder no ano anterior e tentava tornar o país independente. 

O golpe estadunidense veio dois meses depois da conversa entre Nixon e Kissinger, e o general Hugo Banzer foi instalado no poder. Torres exilou-se e cinco anos mais tarde, em 1976, foi assassinado em Buenos Aires pela Operação Condor, uma rede terrorista de direita apoiada pela CIA, que naquela época operava em toda a América Latina. 

Antes de Morales, Torres foi o último líder de esquerda na Bolívia. 

O partido

O governo britânico apoiou abertamente o golpe de 2019 na Bolívia, acolheu com entusiasmo o novo regime e elogiou o potencial que este abriu às empresas britânicas para fazer dinheiro com os recursos naturais do país, particularmente o lítio.

Em 14 de dezembro de 2019 - três semanas após o regime apoiado pelo Reino Unido levar a cabo outro massacre de manifestantes - o embaixador britânico Jeff Glekin ofereceu na embaixada uma festa inglesa de chá com o tema Downton Abbey. Foi servido o pão-de-ló Vitoria.

"Lamentamos muito que os ingleses tenham  celebrado a visão de pessoas mortas", diz Morales. "Claro que essa é a nossa história desde a invasão europeia de 1492". 

Ele acrescenta: "Respeitei alguns países europeus por se libertarem das monarquias, mas há uma continuação da oligarquia, da monarquia, e da hierarquia que não partilhamos". Morales diz que o novo milênio é o milênio do povo, não de monarquias, nem de hierarquias nem de oligarquias. Esta é a nossa luta".

E acrescenta sobre os britânicos: "A superioridade é tão importante para eles, a capacidade de dominar". Somos pessoas humildes, pessoas pobres, essa é a diferença entre nós. É condenável que eles não possuam um princípio de humanidade, de fraternidade. Em vez disso, são escravos das políticas da dominação".

Sobre a relação com o Reino Unido ele opina: "Há profundas diferenças ideológicas, programáticas, culturais, de classe e, especialmente, de princípios e doutrina". 

E acrescenta: "Há países que, com a sua política de Estado, têm sempre a mentalidade de reprimir, isolar ou condenar, repudiar irmãs e irmãos que falam da verdade e defendem a vida e a humanidade. Eu não aceito isto".

Menciono que quando contatei o Ministério de Relações Exteriores do Reino Unido para a minha investigação original, disseram-me simplesmente que "não houve golpe de Estado" em novembro de 2019. O que pensa Morales sobre isto?

"É impossível compreender como um país europeu... no século XXI possa pensar que aquilo não foi um golpe de Estado, não faz sentido".

E acrescenta: "É uma mentalidade totalmente colonial. Eles pensam que alguns países são propriedade de outras nações. Pensam que Deus os colocou lá, por isso o mundo pertence aos EUA e ao Reino Unido. É por isso que as rebeliões e as revoltas vão continuar".

Morales cresceu vendo as consequências de o seu país fosse propriedade de outros países. Criados na extrema pobreza, quatro dos seus seis irmãos morreram na infância. Ele começou a trabalhar como "cocalero" (coletor de coca) e foi politizado pela chamada "guerra contra as drogas" estadunidense na Bolívia. Tornou-se uma figura nacional ao ser eleito líder da união dos cultivadores de coca em 1996. 

“Uma intimidação” 

Quando, em 2010, a WikiLeaks começou a publicar telegramas diplomáticos estadunidenses, veio à tona uma ampla campanha da embaixada dos EUA em La Paz para depor o governo de Morales. Há muito tempo existiam suspeitas, e os telegramas deixaram claras as ligações dos EUA com a oposição. 

Pergunto a Morales sobre Julian Assange, o fundador do WikiLeaks, que está há quatro anos na prisão de segurança máxima de Belmarsh por ter exposto estas e outras operações imperiais dos EUA. 

"Às vezes o império fala de liberdade de expressão, mas no fundo eles são inimigos da liberdade de expressão", responde. "O império, quando alguém diz a verdade… é quando começa a retaliação, como com Assange".

Ele acrescenta: "Algumas pessoas… levantam-se contra estas políticas porque sentem que é importante defender a vida, a igualdade, a liberdade, a dignidade. E aí vem a retaliação". 

"Eu saúdo e admiro aqueles que, movidos por princípios de libertação do povo, dizem a verdade", afirma Morales. "A prisão do nosso amigo [Assange] é uma escalada, uma intimidação para que todos os crimes contra a humanidade cometidos pelos diferentes governos dos Estados Unidos nunca sejam revelados. Tantas intervenções, tantas invasões, tantos saques".

Ele acrescenta: "Esta rebelião inclui também ex-agentes da CIA, ex-agentes do DEA que dizem a verdade sobre os Estados Unidos da América. A retaliação sempre vem". 

"A verdade é que isto não vai acabar, vai seguir", continua. "Portanto, ao nosso irmão [Assange] envio o nosso respeito e a nossa admiração. Espero que venham mais revelações, para que o mundo seja informado… de toda a criminalidade no mundo".

Morales acredita que a informação e a comunicação para as "pessoas que não têm voz" é a questão mais importante hoje em dia. Ele atualmente trabalha na construção de meios de comunicação independentes na Bolívia. 

"As pessoas sem muitos meios de comunicação são confrontadas com uma dura luta para se comunicarem", diz Morales. "Temos alguma experiência, por exemplo, em El Trópico. Temos uma estação de rádio;ela não tem audiência nacional, mas é ouvida e acompanhada com frequência pelos meios de comunicação sociais da direita". Eles a seguem principalmente para encontrar linhas de ataque a Morales.

"Como seria bom se as pessoas tivessem seus próprios canais de comunicação", continua. "Este é o desafio que as pessoas têm. A mídia que temos pertence ao império ou à ala direita na Bolívia, e é assim em toda a América Latina. Ela defende os seus interesses... nunca está com o povo".

Ele acrescenta: "Quando, por exemplo, a ala direita comete um erro, este nunca é revelado, é encoberto, eles se protegem. A mídia  [empresarial] está lá para defender as suas grandes indústrias, as suas terras, os seus bancos, e quer humilhar o povo boliviano, o povo humilde do mundo".

“Tenho muita esperança''

Há muito tempo a América Latina tem sido o berço do socialismo democrático mundial. Pergunto a Morales se ele tem esperança para o futuro. "Na América do Sul não estamos em tempos de Hugo Chávez, Lula, [Néstor] Kirchner, [Rafael] Correa", responde.

Juntos, estes líderes progressistas impulsionaram a integração da América Latina e do Caribe, por meio de organizações como a União das Nações Sul-Americanas (UNASUR) em 2008, e da Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe (CELAC) em 2011. 

"Nós caímos, mas agora estamos nos recuperando", acrescenta.

Os acontecimentos recentes apontam para um ressurgimento da esquerda no continente. Morales cita as recentes vitórias no Peru, Chile e Colômbia, e o esperado regresso de Lula à presidência no Brasil em breve. 

"Aqueles tempos vão voltar", diz.  "Precisamos consolidar novamente estas revoluções democráticas, para o bem da humanidade. Tenho muita esperança".

E segue: "Na política devemos nos perguntar: estamos com o povo ou estamos com o império? Se estamos com o povo, fazemos um país; se estamos com o império, ganhamos dinheiro. 

"Se estamos com o povo, lutamos pela vida, pela humanidade; se estamos com o império, estamos com a política da morte, a cultura da morte, as intervenções, a pilhagem do povo. É isso que nos perguntamos como seres humanos, como líderes: Estamos ao serviço do nosso povo?"

Morales fala então da invasão russa da Ucrânia. "Sinto que é tempo agora, vendo os problemas entre a Rússia e a Ucrânia… de fazer uma campanha internacional, globalmente, primeiro para explicar que a OTAN é - em última análise - os Estados Unidos". 

Ele acrescenta: "Melhor ainda, uma campanha orientada em torno da ideia de eliminar a OTAN". A OTAN não é uma garantia para a humanidade nem para a vida. Não aceito - na verdade, condeno - que  excluam a Rússia do Conselho dos Direitos Humanos da ONU. Quando os EUA intervieram no Iraque, na Líbia, em tantos países nos últimos anos, por que não foram expulsos do Conselho de Direitos Humanos? Por que isso nunca foi questionado?

"Temos profundas diferenças ideológicas com a política implementada pelos Estados Unidos utilizando a OTAN, baseada no intervencionismo e no militarismo".

E conclui: "A Rússia e a Ucrânia querem chegar a um acordo e [os EUA] continuam  provocando a guerra, a indústria militar estadunidense, que vive graças à guerra, e provoca guerras para vender suas armas. Essa é a outra realidade em que vivemos".

A Guerra da Água

Morales é o presidente de maior sucesso na história da Bolívia - e um dos mais bem sucedidos na história da América Latina. O seu período como presidente é também, indiscutivelmente, a experiência mais bem sucedida do socialismo democrático na história da humanidade. Isto é perigoso para as potências imperiais, que há muito alertam para a ameaça de um bom exemplo

Ele também interrompeu 500 anos de governo branco na Bolívia, e trouxe o país para o mundo moderno pela primeira vez. A nova Constituição de 2009 "refundou" a Bolívia como um Estado "plurinacional", permitindo a autodeterminação dos povos indígenas da nação. Criou um novo Congresso com cadeiras reservadas aos menores grupos indígenas do país e reconheceu a deidade andina da Pachamama no lugar da Igreja Católica Romana. 

"Como é possível que os índios - ou os movimentos sociais -  liderem uma revolução?", pergunta ele, imitando a tradicional elite branca boliviana e seus patronos imperiais. "Uma revolução democrática, baseada nos votos do povo, que despertou a consciência do povo e chegou ao governo".

E prossegue: "Ainda hoje há gente que pensa 'temos de dominar os índios, comandar os índios'. No interior da Bolívia essa é a mentalidade - 'eles são escravos, são animais, temos de erradicá-los'. A nossa batalha é superar essa mentalidade".

No caminho de regresso a Cochabamba, uma movimentada cidade indígena que é a quarta maior da Bolívia, recordo que foi aqui que teve início esta luta épica.

No começo de 2000 estalou a "Guerra da Água" de Cochabamba, após a privatização da empresa local de água e o aumento drástico das tarifas pela empresa estadunidense Bechtel, que proibiu até mesmo a coleta da água da chuva. Durante meses, dezenas de milhares de manifestantes enfrentaram a polícia nas ruas da cidade. 

Os produtores de coca, liderados por um congressista pouco conhecido chamado Evo Morales, se juntaram aos manifestantes e exigiram o fim do programa de erradicação das suas colheitas patrocinado pelos EUA. 

Após meses de protesto e ativismo, em abril de 2000 o governo boliviano concordou em reverter a privatização. Uma revolução havia começado. O povo tomou o poder cinco anos mais tarde, revogando 500 anos de domínio colonial na Bolívia. 

No entanto, em 2022 o perigo ainda espreita. Os EUA e a Grã-Bretanha continuam operando para dobrar a Bolívia, juntamente com os seus compadres locais. Porém,  parece que perderam neste país maioritariamente indígena. 

Morales me conta que a construção do poder sindical foi a base da revolução democrática, mas que o mais importante foi entrar no governo. 

"Chegar com poder político nos permitiu fechar a base militar dos EUA, expulsar a DEA, expulsar a CIA. A propósito, o embaixador dos EUA que conspirou e que financiou  [a tentativa] de golpe de 2008 também foi expulso.

Ele faz uma pausa. "Não estamos só falando de antiimperialismo, estamos pondo o anti-imperialismo em prática".

Matt Kennard é investigador chefe da Declassified UK. Ele foi membro e depois diretor do Centro de Jornalismo Investigativo em Londres. Siga-o no Twitter @kennardmatt

Photo: Flickr

Available in
EnglishPortuguese (Brazil)German
Author
Matt Kennard
Translator
Cristina Cavalcanti
Date
25.08.2022
Source
Original article🔗
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