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Governo entrega £3 bilhões de libras a empresas privadas em tentativa de "parar os barcos"

No Reino Unido, pesquisas revelam que o setor de segurança no Canal da Mancha está em expansão, à medida que empresas lucram com o desespero de solicitantes de asilo.
Pesquisadores revelam que empresas privadas faturaram mais de £3,5 bilhões de libras em contratos de segurança de fronteira desde 2017. De tecnologias de vigilância a centros de detenção, as empresas, incluindo fabricantes de armas e gigantes de terceirização, tiram proveito de políticas que criminalizam a migração.

O governo do Reino Unido afirma que os contrabandistas lucram com o desespero humano no Canal da Mancha. Mas nós, uma equipe de pesquisadores, acreditamos que eles não são os únicos. Nosso trabalho revelou que empresas privadas receberam mais de £3,5 bilhões de libras em recursos públicos em uma economia ligada à gestão de fronteiras nos últimos sete anos. Essa indústria inclui contratos especificamente relacionados à regulamentação do movimento de pessoas através do Canal da Mancha em pequenos barcos e à prestação de serviços indiretos.

O governo dificulta o acesso a essas informações – não há um banco de dados publicamente disponível de todos os contratos que ele mantém com essas empresas. Alguns nem sequer foram divulgados e, entre os que foram, alguns dados foram omitidos. Tudo isso significa que o real valor gasto é provavelmente muito maior do que nossa pesquisa conseguiu identificar.

Diante desse sigilo por parte do Estado, organizamos um relatório com os resultados encontrados além de uma planilha para ajudar o público a compreender melhor o complexo industrial de fronteiras do Reino Unido. O documento detalha 217 contratos firmados entre o governo e empresas privadas para a segurança de fronteiras e a gestão do Canal da Mancha, incluindo operações de busca e resgate, o processamento de solicitantes de asilo que chegam ao Reino Unido em pequenos barcos, a vigilância de fronteiras e tecnologias que provavelmente se aplicam ao Canal da Mancha e ao porto de Dover, como parte de uma estratégia mais ampla de segurança.

No relatório, detalhamos os contratos relacionados ao controle de fronteiras, inclusive os de operações de busca e resgate no Canal da Mancha. Argumentamos que, embora os contratos de operação de busca e resgate (conduzidos pela Força de Fronteira, a Guarda Costeira ou outras agências) sejam categoricamente diferentes das tecnologias de vigilância e segurança, tais contratos e tecnologias estão conectados devido à forma como as pessoas são pressionadas a percorrer rotas marítimas perigosas que acabam exigindo resgate marítimo.

Nossos dados revelam que os negócios estão em expansão para as empresas envolvidas na economia de fronteira. Os nomes incluídos em nossa planilha variam de pequenas empresas regionais que operam ônibus de viagem até empreiteiras multinacionais de defesa envolvidas nos conflitos que levaram à migração de muitos dos que hoje cruzam o Canal da Mancha em pequenos barcos. Para essas empresas maiores, tanto as guerras quanto os refugiados que elas geram são oportunidades de negócios.

Viagens desesperadas

Para milhares de pessoas que não têm acesso a uma rota viável ou segura para chegar ao Reino Unido e solicitar asilo, o cruzamento do Canal da Mancha em um pequeno barco torna-se um risco que devem correr. Quase todos os dias, as pessoas continuam a correr esse risco e cada vez mais perdem a vida no processo.

Sucessivos governos do Reino Unido apresentaram planos para "parar os barcos". Desde o plano - já abandonado - de enviar pessoas em busca de asilo para Ruanda até a decisão de abrigar centenas de recém-chegados ao Reino Unido na barcaça Bibby Stockholm, os últimos anos mostraram uma tendência alarmante em direção ao autoritarismo governamental na política de imigração e ao enfraquecimento dos compromissos do Reino Unido com os direitos internacionais de proteção.

Vários primeiros-ministros britânicos enfatizaram uma necessidade de “parar os barcos” ou “desmantelar as gangues” que operam no canal. Mas essas não são estratégias implementadas por um único braço do governo. São políticas concebidas para serem executadas por múltiplas agências, com centenas de serviços prestados por empresas privadas por meio de contratos.

Por trás de quase toda a infraestrutura, todas as formas de vigilância, todos os resgates marítimos e gerenciamento de migrantes do Canal da Mancha, há empresas privadas trabalhando para ganhar contratos, executar políticas e acumular lucros. Gigantes da tecnologia, fabricantes de armas e empreiteiras de segurança privada estão se expandindo gradualmente para facilitar o controle sobre as fronteiras internacionais. Globalmente, esse mercado é projetado para crescer de $377 bilhões de dólares em 2023 para $679 bilhões de dólares em 2032.

Bilhões gastos em contratos

Há um ano, como pesquisadores das universidades de Liverpool, Nottingham, Sheffield e York, nos propusemos a entender mais profundamente o envolvimento do setor privado na fronteira do Canal da Mancha.

Vasculhamos bancos de dados de licitações e oportunidades de contratos para empresas privadas anunciadas pelo Ministério do Interior por meio de seu site Commercial Crown Service e por meio de serviços de consultoria de licitações privadas, como Contract Finder Pro e BidStats.

Não foi tarefa fácil acessar essas informações. Contratos são difíceis de encontrar, e acordos são frequente e fortemente ocultados pelo Ministério do Interior. No ano passado, o Escritório Parlamentar de Pesquisa observou justamente a dificuldade de rastrear o dinheiro que o governo do Reino Unido transferiu ao seu homólogo francês em diversos acordos relacionados à segurança de fronteira ao longo das últimas duas décadas. Tivemos uma experiência semelhante ao pesquisar os contratos que o governo firmou com empresas privadas.

Ainda assim, conseguimos encontrar £3,5 bilhões de libras em contratos governamentais distribuídos a empresas para gerenciar as pessoas que chegaram ao Reino Unido em pequenos barcos entre 2017 e 2024. Além disso, também descobrimos mais de £1 bilhão de libras disponível em licitações abertas desde dezembro de 2024. Agora divulgamos todos esses dados em uma planilha  disponível publicamente além de um relatório detalhando tudo o que apuramos.

O Canal da Mancha é um local altamente monitorado. As empresas que fornecem vigilância são responsáveis por torres de sentinela, patrulhas marítimas, câmeras de segurança, vigilância por satélite com IA, drones, sensores térmicos, muros e cercas, centros de recepção e instalações de detenção.

Tudo isso requer funcionários: guardas de segurança para patrulhar os perímetros de estacionamentos de caminhões, portos de balsas e centros de detenção; profissionais de saúde, motoristas e administradores para gerenciar cada pessoa interceptada e levada à costa.

Esse complexo industrial fronteiriço vai além da zona do Canal da Mancha, alcançando o Reino Unido em uma escala que ainda não conseguimos mapear totalmente. 

Isso ultrapassa as fronteiras desse país. 

O Estado britânico forneceu à França £800 milhões de libras para a segurança de fronteira relacionada ao Canal da Mancha entre 2014 e 2026, incluindo £464 milhões de libras entre 2023 e 2026. É provável que o Estado francês também esteja usando empresas privadas para proteger a fronteira, como já fez no passado.

O governo do Reino Unido continua procurando novas maneiras de expandir seus gastos e controle. Um dos objetivos do novo Projeto de Lei de Segurança de Fronteira, Asilo e Imigração é estabelecer uma base legal para o ‘Comando de Segurança de Fronteira’ de £150 milhões de libras, que pretende “desbloquear novas tecnologias sofisticadas” para rastrear e intervir nas chamadas "gangues de contrabando".

As empresas que lucram com a miséria

Algumas empresas da lista estão obtendo lucros significativos com a securitização do Canal.

Desde 2016, o Mitie Group PLC, uma empreiteira amplamente utilizada para trabalhos do setor público em infraestrutura, gestão de instalações, energia e saúde, administra instalações de retenção em terminais de trânsito no norte da França, que são pagas pelo governo britânico. Em 2018, a empresa garantiu £514 milhões de libras para escoltar solicitantes de asilo detidos entre instalações de detenção tanto no exterior quanto no Reino Unido. E em 2022, também ganhou um contrato de £53 milhões de libras para operar o infame centro de recepção Manston em Kent, que atualmente está enfrentando um inquérito independente por suas condições “deploráveis”. Esse contrato foi prorrogado até 2024.

O Ministério do Interior está atualmente anunciando um contrato de £700 milhões de libras para a gestão de Manston e da Western Jet Foil em Dover, uma instalação de detenção de curto prazo para onde as pessoas são levadas depois de desembarcarem dos barcos da Força de Fronteira.

As empresas de tecnologia Fujitsu e IBM garantiram £55 milhões e £65,6 milhões de libras, respectivamente, entre 2018 e 2022, para serviços biométricos destinados ao rastreamento de pessoas que possam estar tentando entrar no Reino Unido. A construtora Galliford Try se beneficiou de contratos no valor de £172 milhões de libras, em 2024, para a reconstrução de dois centros de detenção no Reino Unido como parte do agora descartado plano Ruanda.

Tecnologia militar contra migrantes

A segurança das fronteiras do Reino Unido também é confiada a empresas fabricantes de armas e tecnologia militar.

A empresa de armas israelense Elbit Systems, que se gabou de ter “testado em combate” sua tecnologia na Palestina, recebeu quase £1 milhão de libras do Ministério do Interior para tecnologia de drones na fronteira entre 2017 e 2021. O departamento governamental também pagou mais de £1 bilhão de libras à empresa portuguesa Tekever, que trabalha com as Forças Armadas da Ucrânia, por drones e vigilância marítima em 2020. Em janeiro de 2025, o Ministério do Interior estava oferecendo £19 milhões de libras para mais “vigilância e reconhecimento aéreo de inteligência” no Canal da Mancha.

Em 2023, o Ministério do Interior também pagou £38 milhões de libras à BAE Systems, outra empreiteira de defesa, pelo desenvolvimento de um sistema de avaliação de risco ao longo das rotas de passageiros e carga nas fronteiras do Reino Unido e em locais portuários como Dover. A empresa é a maior fabricante de defesa do Reino Unido, com uma receita de mais de £26 bilhões de libras no ano passado.

Essas corporações maiores são apoiadas financeiramente por uma rede global de gestão de ativos, investimento privado e empresas de seguros, muitas das quais também estão profundamente envolvidas na indústria de segurança, armamento e controle de fronteiras.

Também encontramos uma grande quantidade de contratos para pequenas empresas que fornecem viagens de ônibus, cães farejadores, tendas, serviços de alimentação, manutenção de embarcações e contêineres de armazenamento.

Entre 2020 e 2024, a empresa de ônibus rodoviários The Kings Ferry recebeu £2,7 milhões de libras por serviços de ônibus para a Força de Fronteira. Em 2022, a Wagtail UK recebeu £23,4 milhões pelo fornecimento de cães farejadores. E em 2023, a Speedy Asset Services Limited recebeu £7,7 milhões por tendas para acomodação temporária durante os processos de triagem.

O menor contrato que identificamos foi de £6.000 libras, que foi pago à Fast Engineering Ltd por roupas de cama para as áreas de custódia nas instalações da Força de Fronteira.

Nossas descobertas são certamente uma subestimação dos gastos do governo nessa área. Isso ocorre porque, em parte, alguns acordos, como o contrato de £1 bilhão da Tekever, foram renovados, mas os custos atualizados foram removidos dos documentos de licitação pública.

Outros contratos simplesmente não foram anunciados publicamente. Em 2023, o Financial Times informou que o contratante militar dos EUA Anduril havia instalado uma torre de vigia no Centro de Coordenação e Resgate Marítimo de Dover. Vimos essa torre de vigia com nossos próprios olhos, mas não há registro público de seu contrato. O Ministério do Interior recusou pedidos de Liberdade de Informação sobre tal.

Uma crise fabricada, uma solução lucrativa

A expansão da indústria de fronteira no Reino Unido não está acontecendo de forma isolada. Ela reflete um cenário de crescente retórica anti-imigração, nacionalismo de extrema direita e ampliação da privatização.

Enquanto o governo do Reino Unido anuncia cortes extensivos nos benefícios para pessoas com deficiênciareduz empregos no setor público, e impõe medidas de austeridade projetadas para alimentar o crescimento de uma minoria privilegiada, o modelo de negócios de fronteirização está prosperando sem regulação efetiva.

Esses lucros vêm tanto às custas dos contribuintes britânicos quanto das pessoas forçadas a fazer travessias perigosas através do Canal da Mancha. Segundo informações, custa aos migrantes até £6.000 libras por pessoa para atravessar o canal em um barco pequeno, Contudo uma passagem de balsa na mesma rota custa apenas £50. Se pessoas em busca de asilo tivessem acesso a essas rotas, poderiam viajar com segurança e solicitar asilo em solo britânico.

Mas o governo do Reino Unido não opera com essa lógica. É mais politicamente conveniente manter o negócio das fronteiras.

Se as fronteiras fossem realmente eficazes em impedir a migração irregular, as oportunidades de negócios no Canal da Mancha, assim como o contrabando, cessariam. Mas sem rotas legais disponíveis para quem quer vir para o Reino Unido, as fronteiras fazem o oposto; elas produzem migração irregular. Isso cria negócios tanto para contrabandistas quanto para empresas de segurança de fronteira.

Décadas de pesquisa constataram que a securitização de fronteira não funciona. Mas isso não desmotiva o governo do Reino Unido nem as empresas responsáveis pela execução dos contratos. Em vez disso, o país mantém a promessa de contratos mais lucrativos pela frente. Nesse sentido, as fronteiras de fato funcionam; elas funcionam para reforçar as aspirações políticas dos Nigel Farages e Kier Starmers deste mundo, e para oferecer uma série de oportunidades lucrativas para as corporações que se beneficiam com seus programas políticos.

Authors bios: Lucy Mayblin é professora sênior de sociologia e codiretora do Grupo de Pesquisa em Migração da Universidade de Sheffield. Joe Turner é professor sênior do Departamento de Política e Relações Internacionais da Universidade de York. Thom Davies é professor associado na Escola de Geografia da Universidade de Nottingham. Arshad Isakjee é professor sênior em geografia humana na Universidade de Liverpool. Tesfalem Yemane é pesquisador visitante na Universidade de Leeds.

Available in
EnglishSpanishPortuguese (Brazil)GermanItalian (Standard)ArabicHindiChinese (PRC)RussianFrench
Authors
Lucy Mayblin, Joe Turner, Thom Davies, Arshad Isakjee and Tesfalem Yemane
Date
04.06.2025
Source
openDemocracyOriginal article🔗
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