War & Peace

O que está acontecendo na Cisjordânia?

O ressurgimento dos confrontos armados entre palestinos e as autoridades coloniais israelenses estava sendo preparado há anos, e Israel iniciou uma campanha militar para varrê-los que já dura meses.
O que exatamente ocorre na Cisjordânia ocupada e em Jerusalém neste instante, e por quê? Em que essa ação difere do que temos visto na história recente, e o que ela significa para o futuro da resistência palestina à ocupação israelense e seu colonialismo de assentamentos?
O que exatamente ocorre na Cisjordânia ocupada e em Jerusalém neste instante, e por quê? Em que essa ação difere do que temos visto na história recente, e o que ela significa para o futuro da resistência palestina à ocupação israelense e seu colonialismo de assentamentos?

A Cisjordânia e Jerusalém estão “em chamas.” Esse é um termo que vemos cada vez mais utilizado nas mídias sociais, noticiários, e em partes da opinião pública, ao falarem sobre os eventos recentes no território palestino ocupado. Não se trata também de uma nova frase usada para descrever as ondas de repressão e resistência na Palestina, mais recentemente a Intifada Unida de 2021 que varreu a Palestina histórica.

As semanas recentes testemunharam uma intensificação notável da pressão israelense sobre os palestinos na Cisjordânia, mirando alvos civis, suas casas e aldeias, bem como soldados da resistência armada e seus grupos.

Simultaneamente, colonos armados têm aterrorizado comunidades palestinas por toda a Cisjordânia, frequentemente na presença e sob a proteção dos militares israelenses.

A repressão atual é parte de uma campanha maior que já dura meses para sufocar a crescente resistência palestina, principalmente a resistência armada, que ressurgiu nas áreas da Cisjordânia.

O crescimento da resistência palestina diante de uma repressão brutal

Desde o início de outubro, as forças israelenses assassinaram quinze palestinos, dos quais quatro eram crianças e adolescentes, principalmente durante ataques noturnos e operações de detenção.

Somente na última semana, quatro palestinos foram assassinados: Mujahed Daoud, de trinta e um anos, de Salfit, morreu no domingo pelos ferimentos que sofreu durante os confrontos com forças israelenses na semana anterior. Mateena Dabaya, de vinte anos, e Abdullah al-Teen, de quarenta e três, um médico e pai de três filhos, foram assassinados em um ataque no campo de refugiados de Jenin na manhã de sexta-feira. No mesmo dia, tarde da noite, forças israelenses atiraram e mataram Qais Imad Shujaya, de vinte e três anos, depois de sua atuação no tiroteio, próximo da área do assentamento ilegal Beit El, que feriu um colono israelense.

Na quarta-feira, dia 12 de outubro, um rapaz de dezessete anos foi assassinado quando forças israelenses atiraram em seu abdome fora do campo de refugiados de Arroub, ao Sul de Belém, na Cisjordânia.

Enquanto os militares, a polícia e a inteligência israelense, sob o comando do Primeiro-Ministro Yair Lapid, intensificaram sua última operação, a resistência palestina às táticas da ocupação aumentaram, junto com o medo da violência israelense.

Nas duas últimas semanas, dois soldados israelenses foram mortos em tiroteios em ocasiões diferentes: uma, em uma barreira militar na divisa do campo de refugiados de Shu’fat, em Jerusalém, e a outra, em um posto militar na área de Nablus ao Norte da Cisjordânia.

Notadamente, ambos os atiradores saíram vivos, uma ocorrência incomum à luz da política de atirar para matar do exército israelense nos territórios ocupados, que as autoridades israelenses recusam ativamente a mudar, apesar das pressões internacionais. O Primeiro-Ministro israelense Yair Lapid disse no início de setembro que nenhum soldado será processado “somente para recebermos os aplausos do exterior.” 

Na caçada para encontrar os atiradores, as forças israelenses ensaiaram várias medidas de punição coletiva, incluindo diversos fechamentos de estradas, afetando todo o distrito de Nablus, e o bloqueio de bairros inteiros, como Shu’fat e seu vizinho, Anata. Esse bloqueio de Shu’fat e da vizinhança acendeu uma campanha aberta de desobediência civil nos bairros por toda Jerusalém.

Protestos em apoio à campanha de desobediência civil em Jerusalém cresceram na sitiada Faixa de Gaza, onde os palestinos se uniram para uma confrontação continuada com o aparato militar israelense.

Ao mesmo tempo, no meio dos feriados judaicos, os colonos israelenses intensificaram seus ataques aos palestinos e suas propriedades na Cisjordânia, sob a supervisão e proteção das forças israelenses.

Os ataques que ocorreram praticamente em todas as noites, a ameaça de morte em relação aos protestos, as políticas de punições coletivas e a violência crescente dos colonos foram insuficientes para sufocar a resistência palestina. Os relatos de protestos diários e confrontos com as forças israelenses por toda Jerusalém e Cisjordânia continuaram, enquanto o grupo de resistência palestina de Nablus, Areen Al-Usud (A Cova dos Leões), continuou a causar uma impressão positiva na opinião pública, ao chamar a responsabilidade pelo aumento das operações armadas contra as posições militares israelenses na Cisjordânia.

O que significa a Operação Quebra-Onda para os palestinos?

A campanha de larga escala coordenada pela inteligência e pelos militares israelenses está focada em Nablus e Jenin na Cisjordânia e na cidade de Jerusalém. Sem nenhuma surpresa para os palestinos, essa intensificação recente dos ataques de Israel eleva as ações em relação aos anos anteriores.

“A [Cidade Antiga] está como sempre esteve,” disse Basil Kittaneh, pesquisador e residente de Nablus, onde os florescentes grupos de resistência armados, liderados principalmente por jovens sem filiação partidária, fizeram sua casa.

“Todos os dias os moradores se preparam para a expectativa de algo acontecer. Toda noite soam os drones, e as pessoas estão em estado de pavor,” ele disse.

Depois do pico da Intifada Unida no verão passado, uma mudança inesperada nasceu com a unificação dos palestinos além das fronteiras, cujos efeitos continuam a agir agora.

Como os palestinos coletivamente se levantaram no ano passado, foram também coletivamente punidos, incluindo os palestinos com cidadania israelense. Em maio de 2021, a polícia israelense lançou a “Operação Lei e Ordem,” que tinha como alvo os palestinos com cidadania israelense que participassem nas atividades da Intifada Unida, especialmente aqueles que atiraram contra as tropas de choque israelenses que invadiram os bairros palestinos e atacaram seus residentes. De um dia para o outro, milhares de palestinos com cidadania israelense foram presos como uma forma de punição coletiva, e o que o aparato de segurança de Israel chama de "dissuasão''.

A Operação Quebra-Onda foi lançada em março deste ano para quebrar os grupos de resistência armada, principalmente em Nablus e Jenin, mas é importante vê-la como a continuação da Operação Lei e Ordem de 1948 em conjunto com a Operação Amanhecer em Gaza.

Encabeçada pelo Chefe do Estado-Maior do Exército Israelense Aviv Kochavi, em conjunto com o Primeiro Ministro israelense, a campanha Quebra-Onda de mais de um mês de duração está no âmago do que estamos testemunhando em toda a Palestina ocupada de hoje. Kochavi treinou soldados israelenses não apenas na Cisjordânia, mas expandiu a jurisdição militar para além da Linha Verde, até as cidades sob a jurisdição da polícia israelense. Os palestinos com cidadania israelense estavam de facto sob a legislação militar até a década de 1970.

As implicações da escalada atual por Israel é parte do projeto da colonização com assentamentos israelense, dirigidos pela ideologia sionista de direita. Em ataques diários às cidades palestinas, as forças israelenses prenderam mais de mil e quinhentos palestinos, conforme declarações do chefe militar israelense.

“Vamos cobrir cada cidade, cada bairro, alameda, casa ou porão para este fim,” disse Kochavi em setembro. No entanto, os números são bem superiores aos relatados por Kochavi, o que leva a um ataque sistemático à sensação palestina de estabilidade e de segurança, uma vez que isso implica que as forças israelenses não estão confinadas em apenas um espaço geográfico, mas que têm qualquer pessoa como alvo, não somente àquelas que estão na resistência, mas a todos que mostrarem qualquer sinal potencial de resistência.

“As pessoas [da Cidade Antiga] são alertadas todas as noites,” Kittaneh explicou para Mondoweiss. “Por toda parte há a conivência com a resistência, mas as punições coletivas são aplicadas em toda Nablus.”

Resistência sem uma comunicação organizada

Como os militares israelenses não estão circunscritos a uma única área geográfica, o confronto palestino também não está. O mês de agosto testemunhou  uma nova dinâmica entre Gaza e a Cisjordânia, onde diferentemente da década passada Gaza tornou-se uma força mediadora para redução da resistência na Cisjordânia.

“Qualquer pessoa digna e livre do mundo, estará do nosso lado,” afirmou o soldado da resistência S. para Mondoweiss em setembro, enquanto os sons da artilharia das forças da Autoridade Palestina, que lançou uma campanha para simultaneamente anular os grupos de resistência crescente de Nablus, eram ouvidos à distância.

Embora certas cidades palestinas tornaram-se alvos primários na última campanha israelense, o ataque pelos militares israelenses e pela inteligência é abrangente. Mais de 5.292 palestinos foram presos desde janeiro, de acordo com a Sociedade de Prisioneiros Palestinos. De cada cem prisões efetuadas, quatorze são de crianças e menores, com 766 detenções efetuadas entre esse grupo desde janeiro.

A resistência palestina vai da resistência armada até a resistência desarmada, que se expandiu com o engajamento de palestinos da diáspora e no exílio. Desse modo, a fragmentação israelense da identidade palestina continua a ser desafiada e interrompida.

Dado que este ano foi um dos mais letais em termos da violência dos colonos contra os palestinos desde 2005, os palestinos encaram agora um caleidoscópio de repressão.

Em paralelo à intensificação das prisões, os militares israelenses estão aumentando intencionalmente os assassinatos extrajudiciais dos palestinos, principalmente dos soldados da resistência. Isso resultou no assassinato de mais de cento e sessenta palestinos, somente na Cisjordânia (e mais quarenta e nove assassinatos em Gaza durante o massacre de agosto).

O papel da Autoridade Palestina na anulação da resistência

Enquanto Israel continua sua campanha contra os grupos de resistência palestina, o governo israelense e as forças armadas encontraram um parceiro testado e aprovado na supressão dos grupos: a Autoridade Nacional Palestina (ANP).

Em 19 de setembro, as forças de segurança da ANP, que mantêm a controversa política de coordenação da segurança com os israelenses, atacou a cidade de Nablus e prendeu dois soldados da resistência palestina, Musaab Shtayyeh, de 30 anos, e Ameed Theileh, de 21, o primeiro que se tornara o sucessor não oficial de Ibrahim al-Nabulsi, o “Leão de Nablus,” depois do seu assassinato no início do último verão.

No curso desses ataques, que espalharam confrontos pesados em Nablus e queixas contra a ANP por toda a Cisjordânia, as forças de segurança da ANP mataram Firas Yaish, de 55 anos. Para a maioria da população palestina, o ataque da ANP aos soldados de Nablus foi um ataque à resistência palestina, e foi apenas mais um exemplo da ANP fazendo o trabalho sujo de Israel.

O ataque dirigido contra a resistência de Nablus veio quase uma semana depois das conversas entre Lapid e Kochavi sobre o aumento das comunicações entre os militares israelenses e as forças de segurança da Autoridade Palestina, ao definirem a resistência palestina como alvo. O estrangulamento israelense à Cisjordânia depende amplamente da facilitação feita pela ANP na vigilância, definição de alvo, prisão de ativistas e redirecionamento do envolvimento político dos palestinos para longe do discurso de libertação.

Nos últimos meses de 2021 e nos primeiros deste ano, a Autoridade Palestina assumiu uma campanha de larga escala contra a oposição política, incluindo os alvos como estudantes universitários e jovens que demonstrem críticas ou confrontação da legitimidade da ANP.

Somente no ano passado, em 24 de junho de 2021, as forças de segurança da ANP invadiram a residência do candidato ao Conselho Legislativo da Palestina Nizar Banat, e o espancaram até a morte diante de sua esposa, Jihan, e de seus quatro filhos. Nenhuma responsabilidade foi apurada para esse crime de assassinato extrajudicial, que sua esposa descreveu para Mondoweiss como “análogo à tortura.”

Enquanto Kochavi votava pelo aumento da violência, o Primeiro-Ministro Yair Lapid falava na tribuna das Nações Unidas, sugerindo a retomada da solução de dois estados,  dirigindo seu discurso aos palestinos, dizendo: “podemos construir juntos o nosso futuro, tanto em Gaza quanto na Cisjordânia, “ mas somente se os palestinos forem desarmados e provarem que o Hamas e a Jihad Islâmica não irão tomar o Estado Palestino [que a ANP] quer criar.”

Em julho deste ano, antes da visita do presidente Joe Biden à região, diplomatas experientes do Departamento de Estado fizeram visitas frequentes à região. No entanto, a maioria das reuniões com os  representantes palestinos foram focadas em Majed Faraj e Hussein Al-Sheik. Ambos são comandantes na administração civil e segurança preventiva, e enquanto bastante impopulares entre o público palestino, são posicionados como sucessores potenciais ao velho Presidente Mahmoud Abbas.

Aos vinte anos, S. só chegou a conhecer a brutalidade da segunda revolta, ou a falha da ANP em fornecer serviços e proteção para os palestinos. “Nós vivemos aqui sob duas ocupações,” disse ele ressentido.

Indicações do que poderá vir

O discurso atual de Israel  sinaliza a semelhança não apenas na escalada da violência contra os palestinos de modo similar à Operação Escudo Defensivo no início dos anos 2000, mas também o paternalismo da percepção de Israel em relação à Palestina.

Lapid levantou uma questão ao dizer que irá ajudar os palestinos a construírem seu futuro. A declaração está sob a sustentação de uma negação paternalista e colonial do direito palestino à autodeterminação e soberania, uma vez que ele enfatiza a necessidade de desarmar os palestinos.

De fato, a Cisjordânia foi desmilitarizada sob a Autoridade Palestina desde o final da Segunda Intifada, e mesmo agora parece que foi apenas temporariamente. Enquanto grupos como Areen al-Usud continuam a receber apoio popular e influência, a ANP do mesmo modo irá aumentar sua coordenação da segurança com Israel para assegurar que as armas usadas contra a ocupação israelense não sejam amanhã voltadas contra a Autoridade Palestina.

Resta saber se a opinião pública palestina em geral escolherá reunir-se em torno desses grupos de resistência armada emergentes e transformar esse momento atual em uma revolta total. Mas os efeitos que estes grupos estão tendo certamente estão sendo sentidos - tanto nas mídias sociais quanto nas ruas.

Sem nenhuma mudança em relação à expansão dos colonos e o roubo das vidas, terras e recursos palestinos, a realidade atual da Palestina tem, por necessidade, dado espaço a novos modos de pensamento e ação.

Enquanto os palestinos permanecerem sob as botas do colonialismo de Israel, continuarão a resistir e lutar por novos espaços que os permitam gritar coletivamente “basta.”

Mariam Barghouti é a correspondente sênior da Agência de Notícias Mondoweiss.

Yuma Patel é a diretora de notícias da Palestina da Agência Mondoweiss.

Photo: Wikipedia

Available in
EnglishGermanPortuguese (Brazil)Spanish
Authors
Mariam Barghouti and Yumna Patel
Translators
Fábio Meneses Santos and Rodolfo Vaz
Date
18.10.2022
Source
Original article🔗
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