Labor

Leis antigreve dos conservadores britânicos buscam disciplinar a classe trabalhadora

O governo britânico está promovendo agora uma nova onda na legislação para enfraquecer o impacto das ações grevistas.
O pacote legislativo antigreve no Reino Unido faz parte de uma mudança mais ampla rumo a uma estratégia de disciplina de classe que impõe medidas que tornam mais difícil para os trabalhadores negociar coletivamente os termos de seus empregos, e mais fácil para os empregadores impor esses termos a eles unilateralmente.

A nova onda de legislação do governo  britânico é uma resposta clara aos níveis crescentes de ações trabalhistas por empregados do transporte, da saúde e outros setores, tendo em vista o aumento do custo de vida. As novas leis exigem que os trabalhadores de certos setores ofereçam níveis mínimos de serviço durante uma greve. Esta é a última de uma série de políticas similares, incluindo as medidas do governo Cameron, que dificultaram a convocação de greves ao exigir um quórum  mínimo de comparecimento às votações nas assembleias de trabalhadores, e a lei de 2022 que permite que as empresas recrutem trabalhadores temporários para cobrir os grevistas.

Essas medidas destacam até que ponto as relações trabalhistas no Reino Unido estão se afastando cada vez mais das normas internacionais. As restrições ao direito de greve muitas vezes são identificadas com o “canário na mina”, e revelam uma tendência autoritária mais ampla. O governo do primeiro-ministro Rishi Sunak também considerou proibir alguns setores de trabalhadores da possibilidade de se organizarem em sindicatos, o que ressalta como essa lógica repressiva faz parte do pensamento de seu governo; pelo menos no que diz respeito aos trabalhadores.

Por que esse ataque continuado ao direito de greve? Uma explicação poderia ser simplesmente que os parlamentares conservadores não gostam de sindicatos e querem marginalizá-los. Isso certamente é verdade, mas é uma explicação simplista demais para contar toda a história. Especialmente considerando-se que o governo trabalhista anterior se recusou a reverter o conjunto inicial de leis antigreve posto em vigor por Margaret Thatcher. Logo, não se trata apenas da rixa antissindical dos conservadores.

Será que, sendo o partido do grande capital, eles estão simplesmente fazendo a vontade dos empregadores? Na verdade, não. Alguns representantes chave do lado dos patrões expressaram sérias preocupações ante essas medidas, temendo que elas pudessem piorar, em vez de melhorar, as relações nos locais de trabalho. Impedir a expressão de discordâncias, em vez de desarmá-las por meio de negociação, costuma ser uma estratégia míope, e muitos empregadores percebem isso.

Imagine o efeito prático da legislação de Sunak durante, digamos, uma greve da enfermagem. Caso os gestores do serviço público de saúde britânico (NHS) prometam punir as enfermeiras e enfermeiros por não fornecerem um “nível mínimo de serviço” durante a greve, esta seria, na melhor das hipóteses, uma ameaça vazia e, potencialmente, uma catástrofe com consequências duradouras para a vida do sistema de saúde e a qualidade do serviço. Muitos empregadores não vão querer ou usar esses novos poderes.

Poderia, é claro, tratar-se de uma tentativa direta de “corrigir” uma situação conjuntural: o recente aumento nas greves impulsionado pelo aumento do custo de vida, que, pelo visto, continuará durante 2023. Esta explicação faria sentido, porém os conservadores já estavam implementando legislação antigreve mesmo quando as greves estavam em uma baixa histórica. Além disso, mesmo o pico atual está bem abaixo dos níveis de ação trabalhista vistos durante o chamado “inverno do descontentamento”, apesar do exagero da imprensa. Portanto, é mais plausível dizer que esse ciclo é um pretexto, e não a causa, de mais restrições à aos direitos trabalhistas.

Em nosso novo livro Marketization, argumentamos que a legislação antigreve britânica faz parte de uma mudança mais ampla na direção de uma estratégia de disciplina de classe. Por disciplina de classe entendemos quaisquer medidas que tornem mais difícil para os trabalhadores negociar coletivamente as suas condições de trabalho, e mais fácil para os empregadores impor-lhes essas condições unilateralmente.

A disciplina de classe tende a andar de mãos dadas com a mercantilização. Quando governos e empresas tentam intensificar o papel da concorrência nas sociedades, como vêm fazendo em todo o mundo capitalista há várias décadas, geralmente também procuram eliminar os contrapesos sociais (como a necessidade de negociar com os sindicatos) que podem impedir as organizações de responder às regras do mercado.

Compreender a situação atual exige que entendamos a disciplina de classe; de onde ela vem e como ela é. Há duas coisas que são particularmente importantes de serem observadas.

A primeira é que, embora vejamos as regras antigreve no Reino Unido como uma forma particularmente evidente de disciplina de classe, elas também se manifestam de várias outras maneiras, e não apenas naquele país. De fato, argumentamos que a disciplina de classe é um tema importante que permeia a economia política europeia de maneira muito mais ampla.

A segunda é que a disciplina de classe costuma ser obtusa. É um retorno à repressão direta por parte das elites governantes, em vez de obter o consentimento dos trabalhadores criando instituições e processos que possam acomodar parcialmente seus interesses, mediando o conflito social (o que os filósofos marxistas podem chamar de “hegemonia”). De fato, as medidas disciplinares de classe podem ter todo tipo de efeitos colaterais negativos que os governos ignoram ou toleram, porque cada vez mais concebem a disciplina de classe como um fim em si mesma.

Para apreciar plenamente esses pontos, no entanto, precisamos ampliar nossa perspectiva e olhar para a disciplina de classe para além do nosso ponto de partida, a legislação antigreve do Reino Unido.

A disciplina de classe na Europa

Primeiramente, por que a disciplina de classe se tornou tão importante nos últimos anos? Em parte, isto tem a ver com o contexto econômico mais amplo, que vai muito além das fronteiras do Reino Unido. A economia política europeia atual é dominada por fluxos de capital internacionais altamente móveis, onde os governos competem para obter investimentos dos mercados internacionais; uma situação facilitada e acelerada pelo que muitas vezes se denomina “financeirização”. Diante disso, a ideia de “confiança do mercado” torna-se uma prioridade: para incentivar o investimento, os governos precisam convencer os mercados internacionais de que o seu país é um bom lugar para fazer negócios. Essa busca pela confiança pode exercer um formidável poder disciplinar sobre os governos, que podem ser punidos por implementar políticas que não conquistem a confiança do mercado. No Reino Unido, isso levou recentemente à queda de um governo de direita; mas internacionalmente tende a ser mais frequentemente uma vara para golpear a esquerda.

A busca pela “confiança do mercado”, objetivo político que passou a ser priorizado pelos governos desde a década de 1980, levou os formuladores de políticas europeus a medidas disciplinares de classe. As evidências sugerem que os investidores que compõem os mercados financeiros tendem a exigir retornos lucrativos para os acionistas no curto prazo, em vez de apoiar investimentos de longo prazo. Eles geralmente têm pouca tolerância ante negociações ou “pactos sociais” que buscam equilibrar os interesses do capital e do trabalho. Em vez disso, tendem a forçar as indústrias ao enxugamento, para que participem de forma mais agressiva na competição de mercado.

Como tal, os governos querem mostrar que os trabalhadores em seus países podem ser facilmente mobilizados em resposta às pressões do mercado e à necessidade de obtenção de lucro. Consequentemente, eles vêm pressionando por uma disciplina de classe cada vez maior, mesmo quando essas medidas criam diversos problemas adicionais.

A legislação antigreve pode ser vista neste contexto; um sintoma desse cenário disfuncional mais amplo de mercantilização e financeirização. Ela é, em vários aspectos, uma agenda bastante míope, que pode frequentemente revelar-se incoerente, e até mesmo destrutiva. Mas, pelo menos, ela promete tornar mais fácil para os empregadores tomarem decisões rápidas em resposta às condições do mercado, sem o retorno dos trabalhadores. Na verdade, depois de décadas esvaziando a capacidade do Estado, o governo do Reino Unido provavelmente não tem muitas outras ideias para catalisar o crescimento e o investimento além desse instrumento grosseiro e, portanto, a disciplina de classe performativa tornou-se uma solução pronta para uso. É como um valentão de escola medíocre que, na tentativa de impressionar os garotos mais velhos, acaba vitimizando o mesmo alvo de sempre: pode até não funcionar, mas é o único plano que ele consegue pensar.

Da assistência social ao trabalho

Não é o único exemplo. Outro caso em que os governos têm buscado agressivamente políticas que impõem disciplina de classe, apesar dos seus vários resultados negativos, é a mudança para sistemas mais coercitivos de transição da assistência social ao trabalho, em que os beneficiários dos programas sociais são penalizados por não buscarem empregos com vigor suficiente.

Esta é uma tendência internacional. Junto ao discurso dos ministros conservadores britânicos sobre a necessidade de impor uma “ética de trabalho” aos beneficiários dos programas sociais, podemos acrescentar a retórica semelhante dos presidentes franceses, e a nossa pesquisa também acompanhou debates em outros países onde pessoas desempregadas eram chamadas de “parasitas sociais” ou qualificativos semelhantes. Alguns países europeus têm historicamente usado sistemas de bem-estar para ajudar os trabalhadores a preservarem suas habilidades e seu status profissional (por exemplo, reembolsando parte da sua renda anterior enquanto procuram empregos que correspondam ao seu treinamento). Porém, mesmo alguns deles, como a Alemanha, se voltaram para modelos que forçam os trabalhadores a aceitar qualquer emprego disponível o mais rápido possível, sob pena de sanções. Nossa pesquisa examinou como esse processo de disciplina de mercado foi implementado em vários países.

Essas políticas de workfare infligem miséria aos beneficiários da assistência social onde quer que se implementem, como está bem documentado por pesquisadores e grupos ativistas. Mas, além do custo humano imensurável, elas geralmente não funcionam muito bem. Alimentam a rotatividade e a insegurança em vagas de baixa remuneração, com as pessoas entrando e saindo de primeiros empregos de baixa qualidade. Elas impedem que os indivíduos preservem ou desenvolvam habilidades, porque são pressionados a aceitar qualquer trabalho disponível, seja ele qual for. E a workfare altera o papel dos funcionários públicos da linha de frente encarregados de “aconselhar” os beneficiários da previdência social que deixam de ser  profissionais de um serviço social solidário e passam a se comportar como capatazes. Nada disso é bom seja para os indivíduos, as instituições nem o mercado de trabalho no longo prazo, mas os seus efeitos intimidatórios de curto prazo têm atraído os governos.

A disciplina de classe é um tema que se incorporou cada vez mais na formulação das políticas europeias, e a legislação antigreve do Reino Unido é apenas um exemplo particularmente contundente disso. Tanto ela quanto as políticas coercitivas da workfare são medidas destrutivas que, no entanto, servem ao propósito direto de enfraquecer os trabalhadores a qualquer custo. O fato de as medidas disciplinares de classe serem frequentemente mal concebidas e frágeis pelo menos nos dá a esperança de que seus arquitetos possam ser realmente desafiados, se houver vontade e organização suficientes. Os próximos meses de organização trabalhista no Reino Unido serão um teste vital para saber se a disciplina de classe pode ser revertida.

Charles Umney é professor de Trabalho e Emprego Internacional na Universidade de Leeds. 

Ian Greer é professor pesquisador e diretor do Ithaca Co-Lab na Escola de Relações Industriais e Trabalhistas da Universidade Cornell.

Eles são os autores de Marketization: How Capitalist Exchange Disciplines Workers and Subverts Democracy.

Foto: Steve Eason / Flickr

Available in
EnglishPortuguese (Brazil)French
Authors
Charles Umney and Ian Greer
Translators
Lucas Amorim and Cristina Cavalcanti
Date
24.01.2023
Source
Novara MediaOriginal article🔗
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