Environment

Anatomia de um projeto colonial de carbono multimilionário no Quênia

O Projeto de Carbono na Savana no Norte do Quênia (NKCP, na sigla em inglês) tenta obter uma série de resultados, mas falha em quase todos, segundo expôs a Survival International.
A legalidade, credibilidade e valor de um projeto multimilionário de comércio de carbono, que obriga os pastores no Quênia a abandonarem práticas culturais milenares, foi questionada num relatório de avaliação que o considerou conceitualmente mal orientado, abusivo, potencialmente perigoso, sem o consentimento genuíno dos proprietários da terra e condenado ao fracasso.
A legalidade, credibilidade e valor de um projeto multimilionário de comércio de carbono, que obriga os pastores no Quênia a abandonarem práticas culturais milenares, foi questionada num relatório de avaliação que o considerou conceitualmente mal orientado, abusivo, potencialmente perigoso, sem o consentimento genuíno dos proprietários da terra e condenado ao fracasso.

Operando no norte do Quênia, o projeto, no entanto, foi aprovado por avaliadores internacionais e empresas de grande porte, que já compraram os créditos. A organização por trás do projeto tem lucrado milhões,embora não seja a proprietária da terra e não tenha conseguido provar se, ou como, o projeto armazena carbono no solo. No entanto, isto não impediu a organização de divulgá-lo como um dos maiores projetos de remoção de carbono do mundo. 

Com muito esforço, como se estivesse empunhando um metafórico pente fino e um  bisturi literário, a Survival International dissecou o projeto para expor suas falhas fundamentais, suas fraquezas conceituais e a incapacidade inerente de alcançar o que ele proclama em voz alta e pelo qual é pago. A ONG internacional de direitos indígenas enfiou uma lâmina analítica nas entranhas do projeto no relatório Carvão ensanguentado: como um esquema de compensação de carbono lucra milhões em terras indígenas no norte do Quênia.

Quando lemos o relatório  de 68 páginas, vemos a imagem de um esquema enganoso e elaborado que tem pouco a ver com o que afirma o projeto. Fica evidente que ele não se alinhou com os princípios básicos de retenção de carbono no solo. Ficamos com a forte sensação de que os donos do projeto capitalizaram o infortúnio das comunidades com as quais pretendem trabalhar e a ânsia inquestionável dos grandes poluidores do Ocidente para se safarem da culpa, pagando pelo que pode-se descrever literalmente como conversa fiada. Trata-se de empresas poluidoras que injetaram milhões para comprar créditos de carbono, na crença inexplicável de que pagar alguém no hemisfério sul diminui a culpa associada à poluição do planeta. 

Sem ambiguidade e com clareza, o relatório narra a história de um grupo não-governamental grande e bem financiado que descaradamente se beneficiou distorcendo a verdade, enquanto desestabilizava e driblava as principais instituições tradicionais que há muito tempo gerenciavam e conduziam as práticas de pastoreio adotadas pelas comunidades pastoris no norte do Quênia.

As tradições influenciam o uso dos recursos 

Conforme a narrativa se desenrola, vemos que o projeto cobre cerca de dois milhões de hectares numa das regiões mais remotas e secas do Quênia. Ele arrebanha cerca de 13 reservas da vida selvagem que abrigam mais de 100.000 habitantes, em sua maioria membros das comunidades indígenas Samburu, Borana, Maasai e Rendille. Sendo pastores, eles dependem de pastos naturais, água, sal e outros recursos vitais para o pastoreio  extensivo. Para essas comunidades, a saúde e o bem-estar do gado bovino, ovino, caprino, camelídeos e, até certo ponto, dos asnos, está diretamente ligada, de diversos modos, à sua própria sobrevivência, riqueza e status. Eles habitam uma região com uma ecologia delicada que "os levou" a criar um sistema racional e pragmático do uso e gestão dos recursos que põe os mais velhos na condução, com o poder de tomar decisões que afetam os outros membros da comunidade.  Hoje, os pecuaristas se encontram em dificuldade devido às secas, cuja gravidade e frequência aumentaram em decorrência das mudanças climáticas. Como resultado, a região hoje experimenta uma seca menor a cada dois ou três anos e uma maior a cada dez anos mais ou menos, resultando muitas vezes em fomes severas e a consequente morte de milhares e milhares de animais. 

O apoio da NRT com o dinheiro O apoio dos endinheirados ao NRT

Este é o contexto ecológico, socioeconômico e cultural no qual o Northern Rangelands Trust (NRT) baseou o projeto de comércio de carbono. Criado em 2004 por Ian Craig, uma personalidade conservacionista bastante "invisível" descendente de colonizadores, o NRT prefere ser conhecido como uma "organização aberta". O órgão diz melhorar a vida das pessoas, criar e apoiar a paz e preservar o meio ambiente. Hoje, a organização orgulha-se de trazer para seu rebanho cerca de 43 reservas comunitárias  espalhadas por 63.000 quilômetros quadrados nas áreas norte e costeira do país. É um território significativo, já que constitui mais de 10 por cento da superfície terrestre total do Quênia. 

O trabalho de conservação do NRT tem atraído gente com dinheiro do Ocidente que, generosamente, o tem mantido em boas condições financeiras. As quantias que recebe a cada ano são gigantescas e podem tornar outras organizações verdes ainda mais verdes de inveja. A USAID, por exemplo, doou cerca de 32 milhões de dólares  desde 2004. Ao longo dos anos, este apoio foi complementado por generosas contribuições do quem-é-quem na ordem de doação europeia. Além da União Europeia, Dinamarca e França, a organização recebe anualmente mais de 25 milhões de dólares de 46 doadores. Não se sabe exatamente quanto recebe nem de quem, pois ela não publica sua contabilidade anual. Contudo, este apoio financeiro tem contribuído em muito para aumentar a sua visibilidade como uma organização de preservação da vida selvagem, cujo modelo foi adotado pela UE, quando lançou o programa NaturAfrica de conservação em 30 países africanos. Também as corporações têm feito elogios e doado dinheiro, pois o NRT lhes oferece um lugar "onde enterrar a sua culpa". Por exemplo, no ano passado, o Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável concedeu o prêmio "Lighthouse" ao NRT.

Expandir o mandato da NRT 

Com tanto apoio e incentivo, o NRT fez acréscimos ao seu mandato inicial. Além de assumir a manutenção da paz e da segurança, a organização também está envolvida na comercialização de gado. Contudo, as suas iniciativas de conservação, paz e segurança têm feito muitas pessoas no Quênia protestarem em alto e bom som, questionando por que um órgão não-governamental possui unidades armadas e assume de forma controversa o que, segundo a Constituição, concerne exclusivamente ao governo. Porém, o NRT se considera justificado em sua missão de construção da paz, e afirma que isto cria as condições necessárias para o seu programa de conservação. Os opositores, porém, que incluem muitos dos povos indígenas afetados, declaram que as atividades de conservação da organização perturbam a vida e a subsistência da população local, ao exigir que cedam parte das terras de propriedade comunitária para a criação de áreas "centrais", as quais são utilizadas exclusivamente por investidores, turistas e a vida selvagem.

Também tem havido alegações de que guardas-florestais da NRT, armados e bem treinados, estiveram envolvidos em execuções extrajudiciais e outras formas de abusos dos direitos humanos, conforme documentou o Oakland Institute, um think tank sediado nos EUA, no relatório Jogo secreto: reservas "comunitárias" devastam terras e vidas no norte do Quênia. O relatório deu um golpe devastador na imagem do NRT ao expor como ele e seus parceiros supostamente desalojaram comunidades de pastores das suas terras ancestrais mediante corrupção, violência e intimidação, para criar e manter reservas da vida selvagem.

O NRT e a controvérsia parecem andar lado a lado. Segundo o relatório da Survival International, a organização lançou o projeto de carbono há quase uma década, quando as alegações contra ela começavam a atrair a atenção do público. O projeto é ambicioso, abre novos caminhos no regime global de comércio de carbono e está articulado com o envolvimento das comunidades pastoris da região. Essencialmente, ele se apoia na ideia de que os pecuaristas se afastem do pastoreio tradicional "não planejado" e abracem o pastoreio rotativo "planejado", o que daria à vegetação daquela vasta área mais chances de proliferar. Em consequência (segundo esta ideia), isto resultaria em um maior armazenamento de carbono nos solos da área do projeto. O NRT estima que cerca de 750 quilos de carbono adicional seriam armazenados anualmente em cada hectare. No total, a organização estima que o projeto poderia gerar cerca de 1,5 milhão de toneladas de "armazenamento" de carbono adicional anuais e, assim, produzir 41 milhões de toneladas de créditos de carbono para vender ao longo dos 30 anos de vida útil do projeto. Isto, por sua vez, geraria entre 300 e 500 milhões de dólares, segundo as estimativas da Survival. Com resultados finais tão atraentes, o NRT qualificou o projeto como uma "solução climática natural" ao entrar no mercado de créditos de carbono. 

O projeto aprovado por avaliadores 

Antes de levar os créditos de carbono aos potenciais compradores, o projeto foi avaliado pelo Sistema Verra, conhecido por seu "conjunto rigoroso de regras e exigências". Os documentos mostram que os auditores nomeados para "validar" o projeto tentaram durante vários anos obter respostas a algumas questões relativas a problemas sérios do projeto. Algumas nunca foram respondidas mas, surpreendentemente, o projeto acabou sendo aprovado e creditado como capaz de gerar reduções de emissões reais, confiáveis e permanentes; foi-lhe atribuída a capacidade de armazenar carbono adicional no solo. Desde que foi aprovado no Sistema Verra, o projeto gerou até agora cerca de 3,2 milhões de créditos de carbono que os agentes do NRT venderam até janeiro de 2022. Embora se desconheça a renda bruta recebida pela organização, a Survival International estima que tenha oscilado entre 21 e 45 milhões de dólares, com parte dos créditos proveniente das plataformas Netflix e Meta (antigo Facebook).

Muro impenetrável da conspiração 

Normalmente, é difícil determinar o verdadeiro valor das acusações apresentadas por ONGs conservacionistas no Quênia e outros países da África. Isto ocorre porque as mesmas organizações podem avaliar os cenários anteriores e posteriores aos projetos de conservação em que estão envolvidas. Em alguns casos, assessores locais e internacionais são contratados para fazer estudos de avaliação. Porém, quando os avaliadores externos visitam o campo, costumam ser acompanhados por funcionários das próprias ONGs que estão encarregados de avaliar. Mesmo onde os avaliadores exigem fazer revisões "independentes", o trabalho é, em grande parte, dificultado por barreiras linguísticas, geográficas e culturais. Isto criou um "muro de silêncio e conspiração" quase impenetrável, porque no final as conclusões sobre o impacto terminam sendo, na verdade, mais ou menos o que a ONG queria que os avaliadores soubessem. No final, a ONG acaba tendo uma boa imagem e recebe um aceno de cabeça dos doadores. Não surpreende que haja pouco a mostrar frente a todos os bilhões injetados na conservação. De qualquer modo, as espécies vêm desaparecendo e as populações de animais selvagens estão diminuindo, enquanto os piores efeitos da mudança climática fustigam fortemente, mesmo no projeto de carbono do NRT. 

No que diz respeito ao projeto de comércio de carbono, a verdade diverge, em grande parte, entre o que declara a organização e os avaliadores do projeto. A Survival International criou uma dicotomia inconfundível entre o que o NRT afirmou eloquentemente nos documentos do projeto e a realidade no campo. Fundamentalmente, o NRT não informou as comunidades corretamente sobre o projeto, "muito menos teve o seu consentimento livre, prévio e informado a respeito dele". Quando os funcionários da Survival International percorreram a área, se deram conta de que, na melhor das hipóteses, a organização se limitara a compartilhar as informações necessárias com um reduzido número de pessoas que tinham assento nos conselhos das 13 reservas. Contudo, eram informações limitadas e não compartilhadas nas línguas nativas "muito depois do início do projeto". O mesmo foi relatado pelos auditores durante a verificação inicial do projeto. Trata-se de uma clara violação de alguns dos princípios aos quais se espera que os projetos de comércio de carbono adiram. 

Em seu conjunto, pode-se dizer que o projeto explora e interfere grosseiramente na vida de dezenas de milhares de pastores. Com o seu desenvolvimento, as comunidades vêm cada vez mais perdendo o controle das suas terras e o poder de determinar como usá-las. À medida que a organização foi removendo o que denomina "barreiras culturais" à retenção de carbono no solo, a injustiça da abordagem veio à tona, já que pessoas sem muito a ver com a poluição do planeta foram forçadas a alterar a forma como sobrevivem e aderir aos ditames de uma organização que emprega ardis e métodos não comprovados para receber financiamentos que não merece. Ainda assim, o projeto está tentando substituir a prática predominante, na qual os meninos pastoreiam o rebanho pagando em dinheiro os adultos para fazê-lo. Isto é visto como uma tentativa flagrante de destruir a dignidade dos homens e mulheres, que tradicionalmente não se envolvem nesta atividade. Como diz o relatório, é provável que isto provoque "rejeição e fracasso". 

Veja: O Projeto de Carbono das Savanas no Norte do Quênia é um engodo?

Além disso, o relatório levanta sérias questões quanto à legalidade do projeto. A metade da área estipulada está em terras classificadas como terras de custódia,  sujeitas à regulamentação da Lei de Terras Comunitárias, de 2016. A lei não autoriza o NRT, e sim os governos dos condados em questão, a "manter as terras em custódia" até que sejam formalmente registradas como terras comunitárias. No entanto, o processo de registro tem demorado muito, e o atraso é parcialmente atribuído, segundo alguns locais, à "obstrução ativa" da poderosa organização. Na verdade, a legalidade das reservas estabelecidas pelo NRT foi contestada em 2021 no Tribunal de Meio Ambiente e Terras. O caso ainda está em andamento. 

Relacionada à legalidade do projeto está a questão, levantada no relatório da Survival International, sobre se o NRT tem o direito de comercializar o carbono armazenado em terras que não possui. A organização não havia feito um acordo formal com as comunidades das 13 reservas antes de embarcar no projeto. Ela formalizou os acordos em junho de 2021, oito anos e meio depois de iniciar o projeto. A este respeito, o relatório afirma que "o NRT não tinha o direito contratual claro de vender o carbono durante este período".

Em um comunicado, o NRT afirmou repetidamente que não é proprietário das terras em questão. Seria então de se esperar que transferisse a maior parte dos lucros do comércio de carbono às comunidades. Entretanto, a Survival International diz que a organização não só continua embolsando a maior parte dos lucros como tem a última palavra sobre como estes são distribuídos. O NRT contrapõe que destina 30 por cento do total dos fundos às 13 reservas, "para os fins que as próprias comunidades determinarem". Porém, a Survival International contesta isto. "Comprovadamente, este não é o caso na maior parte das vezes", assevera o relatório, segundo o qual 20 por cento da parcela das reservas é realmente gasto nas práticas de pastagem "prescritas pelo NRT", enquanto 60 por cento é distribuída a seu critério. Os líderes comunitários entrevistados durante a investigação da Survival International disseram que a distribuição é feita "mediante um processo bastante opaco" e que o dinheiro "é usado para exercer controle sobre as comunidades e promover as prioridades do NRT".

Forçar as comunidades à aceitação

O relatório aponta a credibilidade das compensações de carbono como "carência" e seu impacto sobre as comunidades pastoris como "negativo". O próprio sucesso (ou falta dele) do projeto depende de forçar as comunidades a aceitarem uma mudança radical no antigo padrão tradicional de pastoreio que elas têm praticado para o que o NRT acredita que traria as compensações de carbono necessárias. Contudo, segundo a Survival International, isto pode "pôr em risco [a] subsistência e a segurança alimentar" dos pastores, além de ser " culturalmente destrutivo". Ao criar um projeto que exige que os pastores confinem as suas criações a uma área delimitada, o NRT pretendia se alinhar a uma exigência da metodologia. Mas isso não dá o menor valor ao que obviamente é uma prática racional e pragmática de pastoreio adotada pelas comunidades centenas de anos antes da criação do projeto.

O mais grave é que as exigências do NRT por mudanças nas práticas de pastagem são insensíveis aos problemas que os pecuaristas vêm experimentando com o agravamento das mudanças no clima. Este é outro  exemplo típico das dificuldades que as comunidades na África enfrentam sempre que são forçadas a se engajar em atividades que dificilmente atendem aos seus próprios interesses e à sua sobrevivência. Hoje, para muitos quenianos “progressistas”, embora o NRT tenha sido criado no Quênia, sua filosofia e operação são "alienígenas e transplantadas" da Europa. Muitos o consideram um organismo que, com ousadia e determinação, reacendeu o cenário colonial em que os brancos não consideram errado usar a força e o dinheiro para provocar mudanças que não beneficiam as comunidades africanas e, pelo contrário, são extremamente perturbadoras para suas vidas.

Será que o NRT merece os milhões? 

O NRT não pode escapar da acusação de colonialismo de carbono, e tampouco as empresas poluidoras que não encontram nada de errado em lidar com um "corretor" e outros, à exclusão dos proprietários das terras em que o projeto de comércio de carbono se baseia. Apesar disto, surge a questão sobre a organização merecer os milhões de dólares pagos pela Netflix e outras empresas. Para uma delas, o projeto não fornece provas críveis de que o pastoreio tradicional tenha levado à degradação dos solos e, portanto, à perda de carbono desse solo. "Ele se baseia na presunção de que as formas tradicionais de pastagem estavam causando a degradação dos solos e que somente o projeto de carbono poderia remediar isto", diz o relatório. E acrescenta que o NRT não apóia "com nenhuma evidência empírica" a afirmação de que a degradação ali ocorre devido ao "pastoreio não planejado".

Ao mesmo tempo, a atividade central do projeto, a "pastagem rotativa planejada", não parece estar ocorrendo. "As informações limitadas fornecidas pelo projeto, que pretendem mostrar um declínio na qualidade da vegetação antes da sua chegada, na verdade não mostram nada disso", diz o relatório. Em todo caso, as evidências apresentadas pelo NRT indicam que a qualidade da vegetação "declinou desde o início do projeto". O relatório conclui que "isto sugeriria que o carbono do solo em grande parte da área também está, de fato, diminuindo". 

Tijolo por tijolo 

Tijolo por tijolo, a Survival International desmonta a maior parte das alegações em que se baseia o projeto. Além de apontar o método de avaliação do armazenamento de carbono como "inadequado", o relatório contesta a credibilidade dos relatórios periódicos sobre as atividades de pastagem apresentados pelas 13 reservas, e os qualifica como "totalmente inúteis". Segundo o relatório, não se pode confiar neles para determinar se o pastoreio rotativo foi implementado, e muito menos confiar  nos seus resultados. Acrescente-se a isto o fato de que o NRT empregou um método repleto de erros para medir a quantidade de carbono retido no solo. Houve uso de sensoriamento remoto para avaliar a cobertura vegetal, em vez de medir diretamente o carbono do solo. Aparentemente, o NRT está ciente dos pontos fracos desta abordagem, e na verdade admite que ela contém margens de erro e imprecisões muito amplas - e a Survival International a considera  "comprovadamente problemática". Além disso, é altamente duvidoso que qualquer carbono adicional armazenado (o que é improvável) dure muito tempo na área do projeto. Neste sentido, a Survival International afirma que o agravamento das mudanças climáticas na maior parte da área do projeto, assim como em toda a região norte do Quênia, "resultará em declínios na vegetação e no armazenamento de carbono no solo". 

O NRT alega ter sido capaz de contar o número de dias que o gado passou fora da área do projeto. Esta informação é essencial para saber se o carbono extra supostamente armazenado nos solos da área poderia implicar que o custo de carbono simplesmente sendo perdido em outro lugar de pastoreio, invalidando assim o projeto. Os relatórios mensais de pastoreio usados para monitorar os movimentos dos rebanhos são inadequados para este propósito; faltam informações confiáveis sobre onde os animais estão em um momento dado, e elas se guiam por mapas vagos e confusos. Além disso, a área do projeto é muito remota e inacessível, o que torna quase impossível monitorar o que ocorre nos limites altamente porosos do projeto. Embora o NRT assevere que possui mecanismos para detectar e monitorar o movimento dos rebanhos fora da área do projeto, ele não segue a metodologia que fundamentou inicialmente o projeto. Isto se traduz em que a organização tem pouca ou nenhuma ideia da quantidade de "vazamento" de carbono.

Uma mentira informada? 

Segundo a avaliação do relatório feita por um leigo, está claro que o projeto "aderiu" à longa tradição em que  muitas ONGs de conservação no Quênia deturpam os fatos com o objetivo de obter financiamento do Ocidente daqueles dispostos a abrir suas bolsas. Não se pode explicar como o NRT foi capaz de obter o aceno de avaliadores e enormes quantias de empresas de grande porte. A explicação está em outro lugar; o sucesso dessas ONGs em conseguir atrair milhões em financiamento tem a ver com a possibilidade de incluir pessoas brancas, seja como fundadores, como membros das diretorias ou como funcionários nos altos escalões das suas instituições. Por alguma razão, as ONGs que recrutam pessoas brancas no Quênia têm muito mais chances de conseguir apoio financeiro da Europa ou dos EUA. Neste quesito, o NRT está associado à família Craig, que vive no Quênia desde o início dos anos 1900. Esta família tem relações mais do que casuais com a família real britânica. Por exemplo, não só o príncipe William mantinha uma amizade íntima com Jessica Craig, a filha de Ian Craig, fundador do NRT, antes de se casar com Kate Middleton, como propôs matrimônio a Kate na antiga casa da família Craig na Lewa Wildlife Conservancy. Um observador casual pode não ver a conexão, mas muitas organizações formadas por brancos no Quênia conseguem se livrar facilmente de inverdades e meias verdades injustificáveis. Aqueles que as financiam parecem não ter nenhum desejo de encomendar avaliações independentes que lancem luz sobre a realidade dessas organizações na solução dos problemas que pretendem resolver. 

O projeto de carbono da NRT não é diferente. Ele claramente deturpa os fatos, enquanto o seu valor veritativo e seu valor real são questionáveis. Não se pode ter certeza de se todo o projeto está baseado numa mentira cuidadosamente elaborada com o uso de um algoritmo complicado, ou se não passa de uma farsa.

Gatu wa Mbaria é coautor de The Big Conservation Lie.

Foto: Flickr

Available in
EnglishPortuguese (Brazil)
Author
Gatu wa Mbaria
Translators
Cristina Cavalcanti and Valeria Gauz
Date
18.04.2023
Source
Original article🔗
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