Palestine

‘O sionismo não pode ser reformado; ele deve ser abolido’.

Nada Elia argumenta que a justiça para a Palestina não pode ser conquistada exclusivamente com a abolição do apartheid israelense. Ela deve ir além, eliminando a ideologia supremacista do próprio sionismo.
É impossível enfatizar demais o fato de que o ativismo de hoje deve ser transformacional. Ele deve ser decolonial, buscando a libertação total dos cativeiros mentais e geracionais do sistema opressor, e não meramente anticolonial, com o objetivo de expulsar o ocupante.
É impossível enfatizar demais o fato de que o ativismo de hoje deve ser transformacional. Ele deve ser decolonial, buscando a libertação total dos cativeiros mentais e geracionais do sistema opressor, e não meramente anticolonial, com o objetivo de expulsar o ocupante.

A conquista da justiça para a Palestina envolve mais do que a abolição do apartheid israelense. A inércia de mais de um século de desigualdade e do status privilegiado dos colonizadores, que desapropriaram à força e violentamente, e continuam a desapropriar o povo nativo da Palestina, não pode ser revertida apenas por meio da dissolução formal do sistema opressor. A atual situação dos países anteriormente colonizados no mundo, depois que conquistaram sua independência, assim como as condições atuais dos negros e dos povos indígenas da América do Norte, que teoricamente têm direitos iguais, mas continuam sendo criminalizados, caçados, enjaulados e assassinados, prova que eliminar barreiras legais sem abordar as consequências práticas da injustiça não corrige as desigualdades históricas. Portanto, mesmo que estejamos nos organizando para derrubar a violência sancionada pelo Estado de Israel, devemos olhar além do apartheid como o principal meio de opressão do povo palestino. Além do apartheid, o próprio sionismo deve ser abolido. Trata-se de uma ideologia essencialmente racista e supremacista, e o sistema opressivo que ela produziu não pode ser reformado.

A abolição baseia-se no entendimento de que a reforma - que altera um sistema existente - não resolve os problemas criados por esse sistema, apenas ajuda a mantê-lo, tornando-o menos desagradável, obviamente, mas sem transformar o seu núcleo corrosivo. Atualmente, esse argumento é apresentado em relação à polícia nos EUA, e vários ativistas e intelectuais públicos contribuem para desfazer os mitos de que a polícia é uma força social positiva em geral, na qual ‘elementos desonestos’ ocasionalmente dão errado. Os abolicionistas argumentam, em vez disso, que o sistema não está quebrado, ele funciona exatamente como sempre foi planejado. Portanto, não há necessidade de "consertá-lo", restaurá-lo à sua forma original, porque essa forma em si é opressiva desde o início, e continua sendo até hoje. Quando é que "o sistema" não estava quebrado, perguntam os abolicionistas? Quando não foi racista, quando não foi violento, quando sabemos que a origem das forças policiais no sul dos EUA foi com as patrulhas de escravos, enquanto no norte foram estabelecidas inicialmente para impedir protestos por melhores condições de trabalho?

A reivindicação pela abolição da polícia e das prisões não é recente, tendo sido discutida nos EUA, por exemplo, há quase vinte anos por Angela Davis em 'Estarão as prisões obsoletas?' e por grupos anti carcerários, como o grupo de resistência crítica e o INCITE! Feministas Negras contra a Violência, que entenderam que suas comunidades estão em perigo, e não protegidas, pelo "estado de segurança". No entanto, a abolição passou a fazer parte do discurso popular, com organizadores reivindicando protestos nacionais para que as forças policiais fossem desbloqueadas. A abolicionista Mariame Kaba redigiu um artigo de opinião publicado no New York Times intitulado "Yes, We Mean Literally Abolish the Police" (Sim, queremos dizer literalmente abolir a polícia).  Abolicionistas da polícia são muito claros sobre a necessidade de criar estruturas fortes para apoiar as comunidades marginalizadas que nunca foram "servidas e protegidas" pela polícia. Como Angela Davis escreve: "A abolição diz respeito à organização de alternativas comunitárias ao policiamento e ao encarceramento em massa, à utilização do espaço para respirar proporcionado por essas pequenas vitórias, não para propor uma versão um pouco melhor do mesmo, mas para almejar algo radicalmente diferente".

No contexto da Palestina, a abolição baseia-se no entendimento de que uma reforma do Estado sionista não pode resolver os problemas criados pelo sionismo, apenas ajuda a mantê-los. Tentar  reformar o Estado sionista pressupõe que o impulso inicial do sionismo - que tem como premissa o colonismo e exige o roubo de terras, a desapropriação, o deslocamento e o genocídio humano e cultural - é aceitável, e que houve algo errado em algum ponto do processo. Por exemplo, uma reforma limitada à Cisjordânia e a Gaza implica que a al-Nakba - a catástrofe da Palestina - não começou por volta de 1948, mas em 1967.

O fim da ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza não eliminaria a supremacia judaica nas partes da pátria palestina ocupadas pela primeira vez em 1948; tampouco atenderia ao Direito de Retorno dos palestinos deslocados dessas cidades e vilarejos ocupados em 1948, sem os quais o sonho sionista não teria se concretizado. De fato, o "processo de paz", com sua interminável rodada de conversas infrutíferas, é uma ilustração da tentativa de "reforma", em vez de abolição. O resultado desse processo tem sido a consolidação da desapropriação, agora terceirizada para a Autoridade Palestina. É preciso perguntar: "Quando o sionismo não foi uma ideologia supremacista que privilegiava algumas pessoas em detrimento de outras, com base na etnia percebida? Quando o sionismo não necessitou da limpeza étnica do povo palestino? Houve algum breve momento, desde seu início até os dias atuais, em que o sionismo não tenha sido violento?" O sionismo não pode ser reformado; deve ser abolido.

Esse trecho foi extraído da obra Greater than the Sum of Our Parts: Feminism, Inter/Nationalism, and Palestine, publicado pela Pluto Press em janeiro de 2023.

Nada Elia é escritora, ativista e professora universitária palestina. É autora do livro Transes, danças e vociferações: agência e resistência nas narrativas das mulheres africanas, e escreveu capítulos de Palestina: uma introdução socialista e o caso das sanções a Israel. Elia é membro central do Coletivo Feminista Palestino e tem feito apresentações em importantes conferências, como na Campanha dos EUA pelos Direitos Palestinos. Ela tem artigos publicados no Mondoweiss, Middle East Eye e Electronic Intifada, entre outros. 

Foto: Alisdare Hickson / Flickr

Available in
EnglishPortuguese (Brazil)
Author
Nada Elia
Translators
Yasmim Reis and Cristina Cavalcanti
Date
25.05.2023
PalestineColonialism
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