Apesar de o vice-governador de Jamu e Caxemira, nomeado pelo governo federal, ter afirmado que apenas grileiros influentes que se apropriaram de terras do estado por meio de mau uso do poder seriam foco da campanha, ele também orientou os funcionários a não atingirem pessoas "pobres e comuns". No entanto, nenhuma ordem oficial foi passada nesse sentido para definir quem seria protegido da campanha de despejo. Além disso, as notícias sugeriram que pequenos comerciantes, empresários e outros também tinham sido despejados pelos tratores. As imensas máquinas, transformadas em símbolo da política de direita do BJP em toda a Índia, são usadas para destruir propriedades de ativistas e manifestantes muçulmanos críticos do regime. Embora a campanha de demolição em larga escala tenha sido temporariamente interrompida - no que era, até 2019, o único estado de maioria muçulmana da Índia -, o que ela simboliza está muito ligado à nova estrutura política de Jamu e Caxemira, pois ressuscita um sistema monárquico centenário baseado na expropriação econômica e na exclusão cultural.
Até meados de 1900, a maioria dos muçulmanos da Caxemira era de agricultores sem terras e sem direitos de propriedade sobre as que cultivavam. O sistema jagirdari, estabelecido pela dinastia Dogra do marajá Hari Singh, muitas vezes coagia a população sem-terra da Caxemira a trabalhos forçados e impunha impostos exorbitantes sobre sua colheita. Após o monarca hindu assinar o instrumento de adesão com a Índia, o Sheikh Abdullah, líder socialista da Caxemira, foi eleito primeiro-ministro de Jamu e Caxemira, em 1948. Abdullah implementou uma série de reformas para abolir o sistema feudal jagirdari, promulgando uma lei de teto da terra que redistribuía milhares de acres de terreno para agricultores sem-terra. O movimento “terra para o lavrador” o estabeleceu como líder indiscutível da região e criou um estado de bem-estar social, na tentativa de reverter os efeitos do centenário governo Dogra. Nos anos seguintes, iniciativas políticas como a “cultive mais alimentos” incentivaram as pessoas a trabalhar nas terras estatais para aumentar a produção agrícola. Mais tarde, em 2001, a Lei Roshni, formalmente conhecida por Lei das Terras do Estado de Jamu e Caxemira (Concessão de Propriedade aos Ocupantes), foi aprovada para conceder direitos de propriedade aos residentes das terras do estado.
Desde a revogação da autonomia limitada da Caxemira e o fim de sua categoria como estado, em 2019, que a transformou num Território da União, o governo, sob a liderança do partido nacionalista hindu (BJP), tem trabalhado com dinamismo para apagar a história de reformas agrárias progressistas da região e transformar o legado político deixado numa monarquia conservadora. Tanto o aniversário do Sheikh Abdullah quanto o Dia dos Mártires da Caxemira, comemorados em 13 de julho todos os anos para relembrar os 22 manifestantes mortos pelas forças Dogra em 1931, foram retirados da lista de feriados, em 2019. Isso marcou o início da reestruturação política de Jamu e Caxemira, o que o BJP considera essencial para sua integração total ao país. Embora os caxemires em geral associem o governo de Hari Singh à exploração econômica descarada e à violência, o partido o idealiza como um governante hindu pró-Índia que tornou possível a adesão da região ao país. Sua identidade hindu e o fato de que cerca de metade da população da maioria hindu em Jamu é Dogras incentivou ainda mais o BJP a se apropriar da monarquia e projetá-la como a herança fundamental que define a região. Para isso, em setembro de 2022, tornou feriado o aniversário do marajá, chamando-o de “um grande educador, pensador progressista, reformador social e um homem grandioso de ideias e ideais”.
A reformulação do caráter político de Jamu e Caxemira vai bem além dessas mudanças de titularidade, como vimos com a recente campanha “anti-invasão”. Os governos anteriores são, com frequência, creditados pelas reformas agrárias que contribuíram para o desempenho relativamente melhor de Jamu e Caxemira em vários indicadores socioeconômicos. No entanto, um novo imposto sobre propriedade, anunciado em fevereiro deste ano, ameaça tal avanço, pois exigirá que os proprietários de terras nos limites municipais da região paguem até 15 por cento do valor tributável anual dos terrenos e prédio(s) locais. Com a economia da região sofrendo em função dos efeitos de dois bloqueios consecutivos (um, de segurança, imposto após a revogação do Artigo 370, em 2019, seguido pelo da Covid-19), o imposto tornará difícil, para os moradores, comprar terras. A recente campanha relacionada às terras e a política fiscal atual, também serão um desestímulo para a aquisição de novos terrenos e a manutenção dos que as pessoas já possuem. O governo central liderado pelo BJP alegou que o Artigo 370 era um dos motivos para a falta de “desenvolvimento” em Jamu e Caxemira e usou isso como justificativa para revogar a lei. O governo tem tentado estabelecer indústrias em Jamu e Caxemira, mas não obteve sucesso expressivo até o momento. As recentes mudanças facilitarão o governo na alocação de mais terras para empresas indianas e forçarão os moradores a abrir mão das suas próprias para fins industriais. A industrialização, com ou sem qualquer impacto positivo no aumento do desemprego em Jamu e Caxemira, alimentará ainda mais a narrativa desenvolvimentista que o governo do BJP vem promovendo nos últimos anos.
A Lei Roshni, declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal de Jamu e Caxemira, em outubro de 2020, tem sido historicamente contestada pelo BJP por beneficiar os muçulmanos e promover a “jihad da terra” – uma teoria da conspiração propagada pela direita hindu na qual os muçulmanos compram e/ou invadem a área para legalizar a mudança demográfica. O ministro da União, Anurag Thakur, chamou a Lei Roshni de “o maior golpe da Índia relacionado a terras” e declarou que os muçulmanos estavam se entregando à “jihad da terra” ao assumir o controle de terrenos estatais, na maioria hindu em Jamu, para falsificar a demografia da região. Mais tarde, veio à tona que a maioria dos beneficiados pela Lei Roshni em Jamu não eram muçulmanos e vários deles eram líderes relevantes do BJP. Em seguida, o governo de Jamu e Caxemira entrou com uma ação revisional no Tribunal Superior com vistas a uma modificação da ordem do Tribunal, argumentando que derrubar a lei por inteiro teria um impacto negativo nos cidadãos comuns. No entanto, antes que o BJP voltasse atrás na Lei Roshni, inúmeros canais de mídia nacionais pró-governo realizaram uma campanha em larga escala para pintar a lei como comunitária e apoiaram a alegação do partido de que a “jihad da terra” estava acontecendo em Jamu.
A demonização dos muçulmanos e a campanha “anti-invasão” são sinais de desapropriação sistêmica, agora sendo estendidos ao governo civil. As leis propostas pelo governo liderado pelo BJP têm por objetivo designar novos grupos sociais como Tribos Agendadas e Castas Agendadas. No entanto, há preocupação que tal identificação possa reduzir de maneira desproporcional a representação dos caxemires, ao mesmo tempo em que estende os benefícios de reserva em empregos públicos e educação a outros grupos. Grande parte desses grupos sociais reside na maioria hindu da região de Jamu e certamente ajudará o BJP a construir apoio para as próximas eleições. Essas leis são uma extensão do exercício de delimitação do ano passado, que adicionou seis assentos na região de Jamu e apenas um na Caxemira. Várias mudanças já foram feitas nas regras de reserva existentes, prejudicando os caxemires. Por exemplo, uma cota de quatro por cento em empregos e admissões foi introduzida para a população de língua Pahari, em 2020. No mesmo ano, também ocorreu um corte de 20 para 10 por cento na cota para a categoria Área Reservada Para Regiões Atrasadas. A maioria dos beneficiados nesta categoria eram caxemires. Essas mudanças começaram a mostrar seu impacto; apenas 32 candidatos da Caxemira apareceram, entre 181 candidatos que se qualificaram para o concurso público mais importante da região este ano.
Menos caxemires em altos cargos na administração civil significa facilidade para o governo implementar as políticas contestadas pelas massas, mas que atendem aos interesses do partido no poder. Anos de governo central em Jamu e Caxemira viram várias dessas políticas serem implementadas sem o consentimento do povo e, apesar da grande oposição, as diretrizes foram mantidas. A imposição do imposto sobre propriedade é uma dessas políticas contestadas por todos da região. É seguro dizer que a administração com nomeação centralizada do Território da União não irá retroceder nessa decisão, uma vez que ela não é eleita e funciona como uma burocracia mecanizada. O único obstáculo que pode enfrentar, talvez previsto pelo governo, é o trabalho dos caxemires dentro desse sistema. Sua exclusão do governo civil mata dois coelhos com uma cajadada só. Primeiro, reinventa a imagem política da região como uma sombra de seu passado feudal. Em segundo lugar, remove quaisquer obstáculos potenciais na implementação de políticas que tornem possível essa reforma.
Claramente, a reinvenção do legado político de Jamu e Caxemira por parte do BJP e seu modelo de governança é um retrocesso, além de ser baseado na exclusão e apagamento dos caxemires. A campanha de terras por ora interrompida e as mudanças em andamento (e futuras) nas leis de reserva são sintomas de um novo sistema político o qual busca valorizar a temida monarquia hindu e ocultar o caráter socialista do antigo estado. A Naya Kashmir ou “Nova Caxemira” prometida pelo BJP, após remover a autonomia limitada da região em 2019 é, na verdade, uma velha Caxemira que trata os caxemires como meros súditos do estado com direitos mínimos e representação insignificante em seus assuntos.
Maknoon Wani é jornalista, mentor acadêmico e foi aprovado como aluno de pós-graduação no Oxford Internet Institute, University of Oxford. Maknoon realizou ampla cobertura jornalística sobre o conflito da Caxemira, os cortes de serviço da internet e o discurso de ódio contra minorias na Índia. Também tem interesse em políticas tecnológicas e governança da internet.