Social Justice

“Lares” católicos na Guiana Francesa: comunidades indígenas se mobilizam em busca de reparação.

O ingresso forçado de crianças ameríndias e quilombolas em internatos católicos, revelado pelo livro Allons enfants de la Guyane, pode vir a ser objeto de uma Comissão da Verdade e Reconciliação. Pelo menos, é o que esperam muitas organizações indígenas da região.
“Era preciso matar o índio, mas preservar o homem.” É assim que Alexis Tiouka, ativista indígena, resume os onze anos que passou ​​nos referidos “lares”. Essas escolas residenciais católicas receberam crianças indígenas e quilombolas, a partir da década de 1930, para evangelizá-las e “doutriná-las social (e culturalmente)”, sob o pretexto de oferecer-lhes acesso à educação.
“Era preciso matar o índio, mas preservar o homem.” É assim que Alexis Tiouka, ativista indígena, resume os onze anos que passou ​​nos referidos “lares”. Essas escolas residenciais católicas receberam crianças indígenas e quilombolas, a partir da década de 1930, para evangelizá-las e “doutriná-las social (e culturalmente)”, sob o pretexto de oferecer-lhes acesso à educação.

Este artigo é uma republicação do original da Guayaweb, na Mediapart, parceira da Wire 

Este sistema educacional foi criado em Maná, em 1935, e aprovado pelo Estado em 1949, depois que a Guiana Francesa se tornou um departamento francês, através do financiamento público da internação de crianças e a implementação dos lares católicos.

O livro Allons enfants de la Guyane, publicado em setembro, pela jornalista Hélène Ferrarini, lançou um intenso e revelador raio de luz sobre essa parte oculta da história da Guiana. Uma história, que ainda segue o seu curso, já que, um último desses lares permanece funcionando em Saint-Georges-de-l'Oyapock, o qual abriga, aproximadamente, 60 crianças de Trois-Sauts, uma aldeia que não possui escolas.

Escola residencial de Saint-Laurent-du-Maroni, 1964. © Foto AGFMM

A investigação da nossa colega estabelece os primeiros marcos do testemunho. Das duas  mil crianças que passaram pelos internatos, “cerca de 40 já  testemunharam no livro, mas ainda há muito a ser revelado”, explicou Hélène Ferrarini durante um debate organizado no dia 10 de dezembro no cinema Eldorado de Caiena.

Ela considera que “cada lar, em Iracoubo, Sinnamary, Maripasoula..., merece uma pesquisa específica, porque são poucos os trabalhos nesse sentido, exceto aquele que foi o pioneiro, de Françoise Armanville”, publicado há dez anos.

No entanto, “o lançamento do livro ocasionou um efeito bola de neve, com a necessidade de se dizer a verdade, consciência e coragem de falar sobre o assunto. As coisas vão mudar se os ex-moradores decidirem contar as suas histórias”, diz Alexis Tiouka, advogado, que atua no reconhecimento dos povos indígenas da Guiana Francesa.

A necessidade de falar livremente é de extrema importância, pois as testemunhas diretas estão gradualmente desaparecendo, como ocorreu com Jean Appolinaire, do povo kalin'a, que faleceu em junho de 2021, e cuja história é tema de um capítulo do livro.

“É muito difícil falar sobre o que vivenciamos”

Naquela noite, na presença de Hélène Ferrarini, ex-residentes dos “lares”, contaram como foram, literalmente, arrancados de suas famílias e jogados nos internatos católicos.

Alexis Tiouka, levado para um lar aos 6 anos de idade, relata que: “Naqueles lugares, tínhamos que nos curvar aos religiosos, como sinal de reverência. Isso foi internalizado em nós. Nossas cabeças foram raspadas, como se fôssemos militares, sem se importarem com o fato de que para nós, kalin'as, o cabelo é um símbolo importante, fonte de orgulho e espiritualidade. O cabelo é muito importante na nossa cultura. Todas essas regras nos foram impostas. Fomos desacreditados e humilhados o tempo todo. É muito difícil falar sobre o que vivenciamos.”

“O que mais me doeu foi não poder mais falar a minha própria língua”, revelou Eleonore “Kadi” Johannes, para o internato católico aos 4 anos de idade. “Os lares condicionaram o resto da minha vida. Não por acaso, ainda hoje eu sou uma ativista revoltada. É uma questão de sobrevivência”, diz a porta-voz do coletivo Or de question.

Se os ativistas da causa ameríndia estão se manifestando, “é para que aquele padrão não se repita hoje com outras denominações: família de acolhimento, internato”, afirma Alexis Tiouka. Talvez, devido à natureza do evento, uma voz se destaca entre os manifestantes. É a de Jean-Paul Fereira, prefeito de Awala-Yalimapo e primeiro vice-presidente da Coletividade Territorial. Nascido na década de 1970, ele fez parte da última geração de alunos do Lar de Mana, antes de seu fechamento na década de 1980.

O Roucou, como outras manifestações culturais, era proibido aos moradores dos lares. Apenas redes eram permitidas. © Foto Boris R-Thébia

Solicitado a contribuir com o livro, ele nunca havia falado sobre sua experiência antes, mas acabou trazendo um precioso testemunho para uma audiência silenciosa e atenta presente no cinema.

“Quando fomos admitidos no lar residencial recebemos um número. Eu era o número 11. Eu ainda me lembro bem disso hoje. Houve abusos físicos e sexuais, mas muitas pessoas se recusam a falar sobre isso. Mesmo que o lar esteja fechado, aquilo ainda é um acontecimento atual, porque o vivenciamos na nossa cabeça, nas nossas veias, na nossa carne. Eu gostaria de agradecer a Hélène Ferrarini por este livro, porém, lamento o fato de que, quando se trata de questões relacionadas aos povos indígenas, muitas vezes, ainda são outras pessoas que falam por nós, que agem por nós.”

“Esta história é muito dolorosa, traumática, e ainda é um tabu”, explica Boris Thebia, documentarista guianense que vive no Canadá há sete anos. No Canadá as populações indígenas sofreram o mesmo processo de assimilação forçada, em larga escala, através da educação (150 mil crianças internadas). Trata-se de uma história que ressoa com a dos lares católicos guianenses, que Boris Thébia quer tornar pública. No Canadá, “esta é uma verdadeira questão social”, desde que o governo começou a trabalhar no reconhecimento e nas reparações, em 2009.

“A história guianense poderia ser transposta para os Estados Unidos, Austrália, Escandinávia, ou onde quer que populações indígenas tenham passado por experiências semelhantes. Em todos esses países foram criadas Comissões da Verdade e Reconciliação para reconhecer e tentar reparar o trauma. Mas não na França”, explica o professor de direito Jean-Pierre Massias, presidente do Instituto Louis-Joinet, especializado em justiça de transição. “Para superar o trauma, uma das consequências do livro poderia ser a criação de um programa de pesquisa universitária e a instalação de uma Comissão da Verdade e Reconciliação”, acrescenta ele.

No Canadá (aqui na província de Manitoba, 1940), as crianças eram colocadas em “escolas residenciais”. 150.000 pessoas experimentaram esse sistema de assimilação forçada, de acordo com investigações do governo, realizadas entre 2009 e 2015. © Fototeca e Arquivos do Canadá

“Admitir que isso aconteceu na França”

Em parceria com o Grande Conselho Consuetudinário (GCC) e inúmeras organizações indígenas (Foag, Onag, JAG, Copag), Jean-Pierre Massias veio à Guiana para iniciar uma ação judicial de reconhecimento da violência sofrida. Esta comissão é composta por especialistas (profissionais do direito, psiquiatras, historiadores, vítimas, antropólogos), e tem por objetivo “estudar e identificar as violações dos direitos humanos, ouvir as vítimas, apurar e apontar responsabilidades, propor medidas de reparação e reorganização da sociedade, a fim de evitar que os mesmos fatos venham a se repetir”, diz o jurista, que já trabalhou na Palestina e na África. “Estes são os quatro princípios da Comissão da Verdade e Reconciliação, a qual não foi constituída visando condenar um governo específico, mas para obter reparações em nome da dignidade”.

Entre as reparações possíveis, há aquelas que são simbólicas – “pedidos formais de desculpas, erguer monumentos, devolver objetos roubados” – as quais são as mais utilizadas. Reparações financeiras são “difíceis de quantificar e de custo muito elevado”, portanto, raramente são usadas, de acordo com a experiência de Jean-Pierre Massias.

“A ideia é levar as medidas reparatórias até o reconhecimento da identidade cultural. Garantir a sobrevivência da língua e da cultura indígenas, reconstruir o sistema com propostas de reformas sociais, principalmente aquelas relacionadas com a educação”, é o que espera o jurista.

Neste momento, a Guiana está longe de alcançar esse reconhecimento. O Grande Conselho Consuetudinário organizou um seminário em meados de dezembro para discutir o projeto da Comissão da Verdade e Reconciliação (TRC). No entanto, o seu orçamento foi congelado pela prefeitura, que é a organização administrativa responsável pelo órgão representativo (GCC).

Houve um corte orçamentário de “15.000 euros”, segundo Christophe Yanuwana Pierre, o vice-presidente do Conselho. Mas este corte não ocorreu por falta de recursos. Segundo Christophe Pierre, “de um total de 195.000 euros de orçamento para 2022, sobraram 85.000 no GCC, no início de dezembro. Desde então, para dar mostras de uma supervisão mais rigorosa das finanças, o orçamento (de 25.000 euros) destinado ao Encontro da Prosperidade em 17 e 18 de dezembro também foi suspenso.

A Dinamarca, Finlândia, Canadá e Estados Unidos criaram e ativaram este “instrumento para a regeneração da democracia, que é a TRC”, diz Jean-Pierre Massias, “mas não a França”. Uma comissão “bastante semelhante” aconteceu durante o escândalo do “Reunionese de Creuse”, quando crianças do sistema de seguridade social infantil foram transferidas, sem seu consentimento, para departamentos franceses, que enfrentavam êxodo rural, mas “os exemplos ainda são poucos”, diz o jurista. “A principal barreira à implementação de iniciativas como esta não é legal ou financeira, mas psicológica, ou seja, admitir que aquilo aconteceu na França.”

Para alcançar o reconhecimento simbólico e histórico do que parece ter sido um crime colonial, o discurso guianense precisa ser “mais estruturado, convidando, por exemplo, a Igreja a dar sua versão sobre o assunto”, explica o presidente do Instituto Joinet, que apresentou um método de trabalho e respondeu às perguntas: para que serve um TRC, como implementá-lo, qual seria a sua missão? Estas questões foram discutidas e trabalhadas durante um seminário com o tema “Indígenas e a escola, reparando a injustiça”, organizado no dia 13 de dezembro, na Universidade da Guiana.

Durante toda uma tarde, o GCC, reunido em uma assembleia especial, lançou as bases para a criação da Comissão da Verdade e Reconciliação. Um relatório sobre o trabalho realizado está sendo preparado. E este será o primeiro passo para a abertura de um TRC.

“Precisamos, portanto, implementar, no contexto local específico, um estudo de viabilidade de três meses. Depois, será necessário um ou dois anos de trabalho para ouvir testemunhas, estabelecer responsabilidades e propor ações de reparação, as quais devem constar no relatório a ser elaborado”, explica Jean-Pierre Massias. Um projeto desta natureza requer financiamento para montar uma equipe de especialistas, o engajamento dos ameríndios, e vontade política para implementá-lo.

Para isso, o lobby dos parlamentares já está em andamento. Além disso, o seminário coincidiu com a visita à Guiana Francesa da presidenta da Assembleia Nacional (França), Yaël Braun-Pivet, que esteve em Camopi. Ela confirmou que foi questionada informalmente sobre os lares católicos e o projeto da comissão, e afirmou que a presidenta da Assembleia tem o desejo de levar o assunto adiante.

“Educar as crianças dos territórios distantes e isolados sem aniquilar a sua cultura e história tem se revelado um desafio permanente. Além da educação, essa questão está também relacionada com a integração e o respeito para com as populações indígenas na Guiana Francesa e em toda a França”, acrescentou.

Esta foi uma rara manifestação das “autoridades”, já que nem o Estado nem a prefeitura se pronunciaram desde que o livro foi lançado, além de não terem participado do seminário, para o qual foram devidamente convidados. A nossa solicitação de entrevista com o subprefeito das comunas do interior também foi recusada pelo representante local do estado.

“Temos que fazer justiça com as próprias mãos”, diz Christophe Yanuwana Pierre, porta-voz da Jeunesses Autóctone, cuja mãe e avó são ex-moradoras dos lares católicos.

“Esta é uma forma de pressionar a sociedade civil a agir sem esperar o consentimento do Estado. Muito embora “seja legítimo abrir uma Comissão da Verdade e Reconciliação na Guiana, por causa da história dos lares, isso tudo representa uma bomba-relógio na sociedade. Este processo desempenha um papel importante na violência intracomunitária, nos suicídios e na desestabilização cultural”, diz Jean-Pierre Massias. “A criação de uma comissão como essa poderia abrir outras experiências traumáticas, como a escravidão, a colônia penal... e permitir que outras comunidades na Guiana se emancipassem.”

“As populações minoritárias costumam estar mais atentas ao que pode acontecer no futuro”, disse o parlamentar Jean-Victor Castor (GDR), que assistiu à exibição no Eldorado. “Vocês estão se organizando. Talvez a luta indígena possa conduzir a uma emancipação mais abrangente da sociedade?”

Os lares ameríndios podem representar o ponto de partida para se discutir uma questão mais ampla: a da assimilação ou dominação do mundo ocidental sobre os povos indígenas. A Comissão permitiria recolocar esse evento na ordem do dia, em um processo mais sistêmico.

Educação, a pedra angular

Mesmo que essas escolas fechem de forma definitiva – a última, ainda em funcionamento em Saint-Georges, deve ser fechada com a inauguração, em setembro de 2023, de um complexo escolar na cidade, segundo a autoridade territorial da Guiana Francesa (CTG) – “a história não para e a sucessão de dificuldades de integração, violência e pobreza continua”, analisa Jean-Pierre Massias, que defende uma profunda transformação sistêmica, especialmente na educação.

A escolarização das crianças indígenas e sua acomodação, ainda são questões cruciais em 2022. Segundo o Libération, devido à falta de escolas locais, cerca de 300 alunos de comunidades isoladas estão atualmente alojados em internatos, ou com famílias de acolhimento, principalmente no litoral, a partir da sexta série. Isso está longe do ideal e, entre outros problemas, leva à evasão escolar.

O CTG está trabalhando há um ano em uma nova política para as famílias que acolhem as crianças, a fim de minimizar as inúmeras falhas do atual sistema.

É por isso que, além do reconhecimento da violência praticada pelo Estado, as questões educacionais propostas pela Comissão da Verdade e Reconciliação podem desempenhar um papel central nas medidas a serem adotadas, visando prevenir que esses tristes fatos históricos se repitam.

“A educação em si é um direito humano básico, o qual permite adquirir consciência de outros direitos”, lembra Alexis Tiouka no prefácio de Allons enfants de la Guyane. Esta postura é semelhante à da representante da Guiana Francesa no Unicef - órgão da ONU dedicado à infância - que participou do seminário organizado na universidade.

De acordo com um relatório do Observatório de Práticas Linguísticas elaborado em 2017, cerca de 20 diferentes idiomas são usados nas primeiras fases educacionais, na Guiana Francesa. Desde 1998, o sistema de ensino nas línguas maternas tornou possível o aprendizado nesses idiomas regionais. Esta é uma das raras tentativas de adaptação do sistema educacional aos alunos indígenas.

“A educação está diretamente relacionada com a questão da proteção da criança ou das famílias de acolhimento, porque a moradia na Guiana Francesa, devido ao seu isolamento, é um importante fator que define o acesso à educação e o seu êxito. Esta é uma das particularidades daqui, juntamente com os idiomas”, observou David Chenu.

Durante o seminário, ele conduziu uma oficina sobre as realidades dos estudantes indígenas: acomodação no litoral, transporte, mobilidade, vínculo família-escola. Entre 60 e 70 pessoas participaram da oficina, enquanto 30 estavam presentes na oficina de CVR, sinal de que questões relacionadas às práticas cotidianas geram grande interesse nas pessoas.

Houve diversas contribuições no final da oficina, as quais constarão em um relatório que será elaborado nas próximas semanas. As questões levantadas não são novas e estão relacionadas a uma maior aproximação com as instituições de ensino. “Isso seria relevante em Trois-Sauts, por exemplo, onde pode haver aproximadamente 150 futuros alunos do ensino médio”, enfatiza David Chenu.

Em segundo lugar, é necessário promover a cultura ameríndia na região costeira “com ideias como, multiplicar o número de pontos de contato da população ameríndia com as escolas onde são acolhidos os alunos indígenas. Esses pontos de contato criariam um vínculo que ajudaria a entender o funcionamento das escolas e “falariam a mesma língua”, evitando assim bloqueios e o abandono escolar”, diz o delegado do Unicef.

Apenas uma escola na ilha de Caiena adota este tipo de procedimento, segundo David Chenu. Nós não conseguimos confirmar as informações com a direção da escola.

Uma terceira observação: é necessário aumentar a inserção e integração das crianças e das famílias nos sistemas existentes, para que haja uma melhor compreensão de como eles funcionam e, consequentemente, o apoio seja melhor e mais efetivo.

“Precisamos envolvê-los na reflexão sobre o que pode ser mudado, para que as regras não sejam elaboradas e implementadas apenas pelas instituições. Isso possibilitaria criar mais vínculos e montar sistemas e mecanismos de emergência, se necessário”, explica David Chenu.

Durante a oficina também se reivindicou mais transparência para que todos pudessem compreender a realidade das crianças e das famílias, “e assim evitar que os jovens vão para as ruas quando os internatos fecham nos fins de semana e nas férias”, sublinha o representante da Unicef.

“Há muito a ser feito na Guiana Francesa. Para começar, poderíamos nos inspirar no que já foi realizado na Polinésia, por exemplo, cujas ilhas se espalham por uma superfície do tamanho da Europa. Uma resposta possível seria a criação de escolas secundárias em múltiplos locais.”

A aposta é alta: implementar um sistema com estabelecimentos locais capazes de oferecer educação adequada para que os lares católicos não sejam simplesmente substituídos por uma outra estrutura, com outro nome, mas produzindo os mesmos resultados.

Available in
EnglishFrenchSpanishGermanPortuguese (Brazil)
Author
Guillaume Reuge
Translators
Enio Cardoso and Cristina Cavalcanti
Date
03.08.2023
Source
Original article🔗
Justiça SocialColonialism
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