Investimento, não extração

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Devemos mudar o paradigma das relações de dívida: um motor da miséria deve se tornar um motor da prosperidade compartilhada.

Este ensaio é parte da série "Uma Visão de Justiça da Dívida" do Projeto Justiça da Dívida da Internacional Progressista.

A dívida pública, quando sujeita à vontade de credores privados, é um motor de miséria. Facilita ciclos abusivos de pobreza que esgotam os recursos dos destituídos para encher os bolsos de seus credores. Mas esses ciclos são produto de decisões políticas. Este ensaio apresenta o argumento simples de que temos o poder - e a obrigação urgente - de mudar o paradigma da criação da dívida pública: da espoliação em benefício de poucos ao investimento para muitos.

Comecemos fazendo um balanço do paradigma atual, no qual cortes nos gastos públicos são a resposta padrão às crises. O mundo parou por causa da Covid-19. A última vez em que algo assim aconteceu foi o colapso financeiro de 2007-09, uma crise global provocada pela supervalorização das hipotecas entre as famílias estadunidenses mais vulneráveis. O que aprendemos com a resposta governamental à crise naquela ocasião é crucial para salvarmos nosso mundo hoje: forçar as pessoas à pobreza enquanto se resgata grandes bancos e se aumenta os preços dos ativos é um dogma político premeditado, não um fato econômico da natureza.

Após a primeira rodada de intervenções de emergência em 2008 e 2009, os governos rapidamente transferiram o ônus da culpa para o setor público. Impuseram um conjunto de medidas de austeridade que dizimaram os serviços públicos e o bem-estar social, e mergulharam as populações já vulneráveis em ainda maior pobreza. À medida que os países começam a emergir da crise da Covid-19, vemos o padrão se repetir: cortes de gastos públicos e reformas trabalhistas regressivas.

Quem deve a quem?

Um projeto vicioso está em andamento nas últimas quatro décadas. Tomou forma na década de 1970 como resposta contra-revolucionária aos movimentos de libertação da época - das lutas anticoloniais à crescente militância operária e movimentos sociais com base em gênero e raça que testavam os limites de redistribuição do consenso keynesiano.

Este é o projeto do capitalismo neoliberal. Em suas tentativas de reverter as conquistas desses movimentos, os tecnocratas, sujeitos aos poderosos interesses financeiros e corporativos, aumentaram a desigualdade, devastaram os serviços públicos, e forçaram as pessoas a contrair dívidas privadas como alternativa à falta de investimento público.

Dois princípios orientadores moldam as finanças públicas neoliberais; embora contraditórios em princípio, eles se complementam na prática. Um prega a virtude de orçamentos equilibrados e contenção de gastos públicos, o outro diz que orçamentos equilibrados são um anacronismo em uma era de mercados de títulos integrados internacionalmente.

Por esta razão, as forças neoliberais persuadem os governos a priorizarem cortes de impostos marginais e medidas anti-inflacionárias, mesmo que isto resulte em enorme dívida pública. Durante a década de 1980, economistas que consideram o lado da oferta da economia foram alguns dos primeiros a reconhecer que o governo dos EUA não teria problemas em financiar a espiral da dívida pública de Reagan, desde que mantivesse um controle rígido sobre os salários e a inflação dos preços ao consumidor. Os partidários do lado da oferta não eram avessos aos gastos públicos; eles apenas especificaram que estes deveriam assumir a forma oculta de cortes de impostos regressivos, em vez de investimento em serviços públicos redistributivos como saúde, educação e bem-estar. O investimento público redistributivo, argumentaram, aumentaria os salários e os preços ao consumidor, e conseqüentemente afastaria possíveis investidores em títulos, cujas posições de ativos se movem inversamente à inflação dos preços ao consumidor. Os incentivos fiscais, por outro lado, foram concebidos para influenciar o preço dos ativos em vez da inflação dos salários e dos preços ao consumidor, sendo portanto mais provável que atraíssem pessoas dispostas a  investir.

Na prática, o uso nas finanças públicas de uma combinação das teorias pelo lado da oferta e a da escolha pública, passou a significar o seguinte: enquanto defendem o equilíbrio orçamentário, os governos rotineiramente se envolvem em gastos públicos extravagantes, na forma oculta de incentivos fiscais que subsidiam detentores de ativos. Os déficits resultantes são invariavelmente atribuídos ao setor público redistributivo, que sofre um processo permanente de achatamento e reestruturação. Os antigos serviços públicos como educação, saúde e bem-estar ficam sob ataque, logo, seus custos são transferidos para as famílias, onde são financiados por trabalho não pago e dívidas de consumo. Esses tipos de obrigação privatizada atuam, previsivelmente, em formas ligadas ao gênero, onde as mulheres muitas vezes arcam com o fardo do trabalho não remunerado e da garantia de dívidas. Em uma curiosa inversão das economias “pública” e “privada”, as famílias agora são forçadas a assumir montantes crescentes de dívidas pessoais para pagar por serviços chamados públicos, enquanto os detentores de ativos privados são generosamente subsidiados por incentivos fiscais e vantagens.

Muito tem sido escrito ultimamente sobre a conexão entre o declínio do investimento público em serviços sociais e o aumento vertiginoso da dívida familiar. Os economistas Aldo Barba e Massimo Pivetti demonstraram que mesmo as famílias de renda média, que possuem recursos, foram forçadas a se endividar para manter o acesso a serviços públicos ou subsidiados pelo governo, como educação, saúde e moradia. Essa  carga crescente de dívidas veio substituir a queda nos gastos do governo como estímulo à demanda.

Essa situação é às vezes chamada de “keynesianismo privatizado”, mas é preciso lembrar que a dívida pessoal não é a mesma para todes: para aqueles com ativos correntes, muitas vezes adquiridos por herança, a dívida representa uma alavancagem e um meio de consolidar ainda mais a riqueza; para aqueles sem recursos, a dívida muitas vezes representa uma forma de servidão permanente e uma requisição do trabalho futuro. Embora hipotecas, cartões de crédito, assistência médica, empréstimos estudantis e por antecipação de salário sejam os suspeitos usuais, também devemos estar atentos às formas peculiares de dívida que afligem os pobres de renda e de recursos em conseqüência do desgaste do serviço público. Na esteira das revoltas fiscais que começaram na década de 1970, os governos locais e estaduais lutam para cumprir suas crescentes responsabilidades de serviço público, devido à redução da base tributária.  Muitos estão operando sob limites constitucionais de impostos e gastos, e recorrem cada vez mais a multas, taxas de uso, e diversos encargos de consumo para manter os serviços públicos.

Embora não seja de modo algum o caso mais extremo, a história de Ferguson, em St. Louis (Missouri), trouxe o foco da mídia para a prática dos governos locais de usar multas de trânsito e outras penalidades a fim de gerar receita. O uso habitual das cobranças de usuários para serviços chamados públicos — inclusive dentro do sistema de justiça criminal — é uma fonte crescente de endividamento entre as pessoas sem recursos, tanto nos Estados Unidos como no mundo.

Além disso, o ressurgimento do movimento Black Lives Matter, sediado nos Estados Unidos, em meio à crise do COVID-19, e sua rápida disseminação pelo mundo, aponta para um novo nível de consciência política. Pelo menos desde os protestos de 2014 em Ferguson, Missouri, o movimento Black Lives Matter colocou em primeiro plano as conexões entre cortes de gastos do governo, dívidas domésticas e violência policial. Em cidades com pouco caixa, como Ferguson, os policiais são mais do que apenas os supostos executores da lei; são também coletores de impostos e oficiais de justiça, cujo trabalho é arrecadar receita aplicando multas e punindo os inadimplentes. Como tal, os protestos de Ferguson servem como exemplo poderoso para aqueles que gostariam de organizar um movimento mais amplo em torno da justiça da dívida.

Desde a década de 1970 os financistas internacionais têm brandido a ameaça de saída para minar os esforços dos governos locais, estaduais e nacionais de empreenderem um investimento público mais democrático. Quando, nos EUA,  os trabalhadores, estudantes, e mães que recebem auxílio do bem-estar social intensificaram sua militância na década de 1960, ameaçando corroer tanto os lucros industriais quanto os retornos sobre ativos financeiros, os financiadores de títulos municipais fugiram da cidade de Nova York em busca de oportunidades de investimento mais lucrativas no Sul Global. Quando o presidente do Federal Reserve (o banco central estadunidense), Paul Volcker, respondeu a esta crise aniquilando a ameaça da inflação dos salários, os mesmos fundos de investimento afluíram de volta aos mercados de capitais dos EUA, mergulhando simultaneamente as economias do Sul Global em uma prolongada crise de dívida.

Investimento nas Pessoas

A questão é clara: por que os governos tomam emprestado preferencialmente de instituições financeiras privadas, expondo-se assim a serem disciplinados pelo mercado de títulos sempre que suas prioridades de gastos se tornarem democráticas demais? A aparente inevitabilidade dessa subordinação é reforçada pela natureza semiprivada do banco central, junto com o dogma mais recente da independência monetária, que autorizou os bancos centrais a punirem os governos sempre que suas decisões de gasto ameaçarem gerar aumentonos salários. Os bancos centrais há muito desistiram de sua luta para suprimir o crescimento dos salários (eles não precisam mais), mas seus esforços para resgatar o setor financeiro a qualquer preço os transformaram em geradores confiáveis da inflação de preços dos ativos e desigualdade intensificada.

  • Socializar a dívida: precisamos imaginar como socializar ou comunalizar a criação da dívida pública, de modo que cada pessoa se torne proprietária e servidora da dívida coletiva, tendo uma parte igual em nosso futuro coletivo. Os bancos centrais precisam de novo ser responsabilizados democraticamente: além do pleno emprego, seu mandatodeve incluiro aumento do salário social e a permissão para investimento em infraestruturas coletivas de existência, sejam elas sociais ou ecossistêmicas. Os bancos centrais deveriam fazer tudo ao seu alcance para suprimir a inflação dos preços dos ativos e aumentar os salários sociais, tanto para os empregados quanto para os desempregados. Precisamos de bancos públicos, não de bancos privados, para emprestar ao Tesouro e financiar títulos do governo, liberando definitivamente os governos da chantagem dos detentores de títulos privados. As instituições financeiras, especialmente os bancos públicos, precisam se afastar de seus modelos de empréstimo atuais, que se concentram na extração regressiva de receita e na maximização do lucro de curto prazo. As práticas de empréstimo podem ser reorientadas para atender ao bem-estar público impulsionando os empréstimos "pacientes" de longo prazo e um sistema de tributação mais progressivo.
  • Acabar com a punitividade: nos Estados Unidos, a longa crise fiscal do Estado - produzida pela retirada constante de fundos federais, a revolta fiscal da década de 1970 e um mercado de títulos municipais mais punitivo - criou uma situação em que os governos municipais e estaduais conferem maior prioridade à “segurança pública” do que à educação ou à saúde. Desde o final dos anos 1970, as cidades têm recorrido cada vez mais a multas e taxas regressivas para cobrir seus déficits de receita. No entanto, poucas pessoas reconhecem essas cobranças como formas alternativas de tributação. Precisamos quebrar esses vínculos entre tributação regressiva, injustiça econômica e punição dos pobres.
  • Proteger o público: em todo o mundo há recursos financeiros e capacidade institucional acumulados, que muitas vezes são capturados por interesses privados ou que acabam atendendo mais às necessidades das classes detentoras de ativos. Mas não precisa ser assim: por exemplo, os estados podem obrigar os bancos públicos a financiar iniciativas para transições verdes, fontes de energia renovável e verde ou moradias populares equitativas e com eficiência energética.
  • Construir um Banco do Povo: a habilidade dos financistas internacionais em jogar um país contra o outro ressalta a importância de desenvolver uma solidariedade internacional em torno da resistência à dívida. Devemos desenvolver novos mecanismos de cooperação financeira internacional que restrinjam o poder de disciplinar as decisões de gastos públicos dos Estados que têm hoje os mercados de crédito privado e as agências de classificação de crédito. Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas é importante reconhecer desde o início a imensidão da tarefa: não podemos resistir com sucesso ou de forma duradoura à disciplina local do financiamento privatizado da dívida sem resistir a ela em outros lugares.

Melinda Cooper é membro do Coletivo pela Justiça da Dívida da Internacional Progressista. Melinda é professora de Sociologia na Australian National University. É autora de “Valores da família: entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo social” (2017) e está atualmente concluindo uma monografia sobre o tema das finanças públicas neoliberais.

Da equipe de Projetos da Internacional Progressista

Vivemos em um mundo de dívidas. A profundidade e a amplitude do endividamento global são difíceis de exagerar. A argumentação básica desta coleção é que todas essas dinâmicas disparatadas - fundos de hedge acumulando lucros pandêmicos, estudantes lutando para prover sua educação, micro-mutuários à beira da inadimplência - são manifestações diferentes do mesmo mecanismo estrutural básico no coração do sistema financeiro global: o ciclo interminável de ganhos privatizados e perdas socializadas. Dito de forma simples, os ricos ficam mais ricos, enquanto os pobres, por definição, continuam pobres.

O objetivo deste Coletivo é encerrar esse ciclo. Leia a íntegra do Projeto pela Justiça da Dívida aqui. Se você estiver interessado em participar, escreva para Varsha Gandikota-Nellutla em [email protected].

Available in
EnglishPortuguese (Brazil)
Authors
Melinda Cooper
Translators
Ligia Prado and Rodolfo Vaz
Published
22.04.2021
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