Pela primeira vez, as jovens estavam falando em uníssono, embora algumas apenas momentaneamente. Elas compartilharam suas experiências vividas como sobreviventes de violência sexual, e não havia dúvida de que muitos dos que denunciaram como estupradores tiveram como alvo várias mulheres jovens. Este foi o momento #MeToo de Uganda, embora o impulso para a responsabilização tenha sido uma luta longa e difícil. Essas jovens estavam se erguendo inspiradas pela bravura de mulheres que contaram antes suas histórias, apesar da fúria pública que enfrentaram.
Sheena Bageine assumiu a responsabilidade por aquelas que ainda não podiam falar publicamente sobre sua experiência. Ela recebeu suas histórias e as postou anonimamente. Sheena foi presa, passou uma noite em uma cela e mais tarde foi acusada de comunicação ofensiva e cyberstalking (uso de ferramentas tecnológicas para perseguir uma pessoa). É assim que o poder patriarcal opera, do silenciamento online aos sistemas estatais prontos a "dar uma lição" nas mulheres que se recusam a serem caladas.
As jovens de Uganda responderam, de advogadas a especialistas em saúde mental e guerreiras da mídia social, e a hashtag #FreeSheena virou tendência. Em poucas horas, ela se tornou um peso para a polícia envolvida, que a libertou sob fiança. O caso de Sheena ainda está em andamento. Mas as ações de seus pares e a solidariedade que ela evocou mostram como é ágil a mobilização das mulheres jovens na era digital, apesar das hegemonias arraigadas que ainda prevalecem na vida cotidiana.
Essa coragem foi inspirada pela ousadia de uma longa linhagem de mulheres organizadoras e ativistas. Em anos recentes a Dra. Stella Nyanzi, poetisa e acadêmica, deu o tom de quanto as jovens podem ser radicais se quiserem. Ela reviveu formas antigas de se recusar a tratar com educação aqueles que abusam do poder. Em um poema no Facebook, descreveu desafiadoramente o presidente de Uganda como um “par de nádegas” por não fornecer absorventes higiênicos para meninas adolescentes que abandonam a escola. Foi detida, julgada e encarcerada por mais de um ano.
Milhões de mulheres jovens em todo o continente africano encontraram uma voz comum para a construção de comunidade, organização e mobilização, aproveitando o crescente aumento do acesso à Internet e aos smartphones baratos.
Mesmo estando em menor número do que seus pares masculinos nas redes, não se pode deixar de notar a indignação, ousadia e a organização das jovens africanas. O acesso à informação sempre foi a chave para qualquer despertar da consciência. Para esta geração, apesar das disparidades econômicas e digitais que ainda persistem, o acesso à informação é muito mais rápido do que para seus pais.
Ao ver outras jovens ousarem cruzar os limites que definem a educação esperada das mulheres, elas encontram coragem para se organizar em pequenas comunidades que têm se espalhado virtualmente. Os espaços online ativaram a organização pan-africana. Um protesto na Namíbia ou no Sudão pode se tornar rapidamente conhecido em outros países em questão de horas ou dias, onde outras podem encontrar formas de mostrar solidariedade.
De acordo com um relatório de 2019 do Afrobarômetro, a proporção de mulheres que usam regularmente a Internet mais do que dobrou nos últimos cinco anos em 34 países africanos, de 11% para 26%. Mas o relatório também mostrou uma lacuna de gênero persistente de 8% a 11%. As mulheres têm menos probabilidade do que os homens de "ter um telefone celular, usá-lo todos os dias, ter um celular com acesso à Internet, ter um computador, acessar a Internet regularmente e obter notícias da Internet ou das redes sociais".
As mulheres enfrentam enormes desafios nessas plataformas. Frequentemente, elas não são consideradas fontes especializadas, inclusive por seus colegas de campanhas de movimentos progressistas, e mesmo quando as questões são sobre experiências vividas por mulheres. No geral, as vozes das mulheres jovens são escanteadas e só lhes permitem ser ouvidas em "questões femininas". A marginalização dentro do discurso público se estende ao mundo online, onde as hierarquias de quem é ouvido são recriadas e estendidas a partir do mundo offline. Muitas se retiram das plataformas públicas para grupos menores de amigos confiáveis. Isso nega uma voz pública. E, como os homens, elas também devem navegar a tendência crescente de desligamento da internet e vigilância digital por parte dos governos.
Apesar desses obstáculos, as vozes feministas africanas estão causando um impacto tanto online quanto offline. Tal como acontece com os homens, aquelas com maior acesso à Internet são desproporcionalmente instruídas e ricas o suficiente para pagar os custos desse acesso. Mas o número crescente de coletivos feministas, comprometidos com a colaboração e a inclusão, é uma testemunha do potencial para políticas inclusivas.
Em alguns casos, questões que foram historicamente tratadas simplesmente como "problemas femininos" estão lentamente chegando ao centro da contestação política. Pessoas mais jovens no continente estão pressionando por mudanças que até mesmo os mais velhos, incluindo aqueles que rejeitam o status quo, não demandam. As vozes feministas estão ganhando proeminência como parte crucial dessa resistência.
Por exemplo, a Coalizão Feminista na Nigéria se mobilizou para atender as necessidades dos manifestantes nos protestos #EndSARS que abalaram a Nigéria em resposta à brutalidade policial em outubro de 2020. Na mesma época na Namíbia, os manifestantes #ShutitAllDown liderados por jovens exigiram ação para lidar com feminicídio, estupro e abuso sexual.
Formada em 2019 durante a revolta popular contra o regime de Omar al Bashir, a iniciativa #SudanWomenProtest reuniu milhares de mulheres para protestar contra a “militarização, injustiça generalizada contra mulheres e meninas, contra o feminicídio e a normalização da violência sexual como resultado de leis discriminatórias severas que ainda estão em vigor no Sudão.” As sudanesas vêm resistindo há décadas, mas sua visibilidade na revolução de 2019 que derrubou Bashir foi um "choque" para o mundo, quando um vídeo de uma mulher em cima de um carro liderando cantos de protesto se tornou viral. Em março de 2021, a iniciativa continuou a pressionar o governo de transição do Sudão para remover todas as políticas sexistas e discriminatórias.
Largamente cientes das campanhas globais na Internet, como #BlackLivesMatter, #SayHerName e #IBelieveHer, as mulheres jovens de todo o continente tomaram suas próprias iniciativas. E, como suas contrapartes em outros lugares, elas infundiram perspectivas feministas intersetoriais em sua organização. Na África do Sul formaram movimentos pela justiça de gênero, como os protestos #AmINext em resposta ao estupro e assassinato da estudante universitária Uyinene Mrwetyana em 2019. Mas as mulheres jovens também foram líderes importantes nos movimentos #RhodesMustFall e #FeesMustFall.
Fora das redes, no entanto, os movimentos e coletivos de jovens feministas permanecem marginalizados, mesmo em movimentos de jovens que pressionam por mudanças políticas. Es jovens na África estão cada vez mais se organizando em busca de mudanças radicais na forma como as nações africanas são governadas, para prover dignidade e respeito às vozes dos cidadãos. Sem a participação e liderança igualitárias de jovens feministas, no entanto, tal transformação social permanecerá ilusória.
As jovens mulheres africanas estão aprendendo e ensinando que as lutas devem ser vinculadas e não colocadas como alternativas mutuamente excludentes. Na Nigéria, por exemplo, jovens ativistas na campanha anti-brutalidade policial #EndSars também insistem que #NigerianQueerLivesMatter.
Não é aceitável pedir a mulheres jovens e africanos não-binários que deixem suas próprias lutas de lado, como nossas antepassadas fizeram repetidas vezes, em submissão ao argumento de que a libertação "nacional" deve vir em primeiro lugar.
As mulheres foram fundamentais para os movimentos pela independência e a resistência diária ao domínio colonial. Mas muitas vezes os próprios movimentos se transformaram em instrumentos da classe política hegemônica. E embora tenhamos aumentado o número de mulheres nos parlamentos da África para igualar a média global de 25%, o poder real, tanto no governo quanto na sociedade, está muito aquém até dessa conquista. A verdadeira libertação, para mulheres e minorias, das algemas introduzidas pela subversão colonial de gênero ainda está distante. De casas a bares, ruas e locais de trabalho, apesar de todos os avanços decisivos feitos para "empoderar as mulheres", ainda não vimos verdadeiramente a libertação das mulheres, no sentido de que possam andar neste mundo livres em sua própria pele e em seus próprios corpos, livres de violência.
E com frequência espera-se que as jjovens de África e as pessoas não-binárias em serem mais “civilizadas” nas suas reivindicações em defesa de sua própria humanidade, numa condescendência expressa em frases como “vocês estão pedindo demais”
Mas quem define o que é demais para a liberdade e existência de uma pessoa? Para Sheena Bageine e Stella Nyanzi aqui em Uganda, e mulheres jovens e africanos não-binários resistindo à desumanização em todo o continente, a resposta é justamente exigir e ser "demais". É apenas sendo “demais” que podem surgir novas rachaduras na parede das ditaduras do patriarcado.
Rosebell Kagumire é escritora, blogueira premiada, ativista feminista pan-africana e estrategista de comunicação. É atualmente curadora e editora do AfricanFeminism.com. É também co-editora do recente livro The Role of Patriarchy in the Roll-back of Democracy (O papel do patriarcado no retrocesso da democracia), com foco nos países da África Oriental e do Chifre da África (disponível para download gratuito). Leia mais sobre seu histórico nesta entrevista de março de 2021.
Foto: Sheena Bageine, Twitter