Social Justice

Grevistas em penitenciárias no Alabama exigem liberdade

Com base em greves anteriores e movimentos organizados, os presos do Alabama se reagrupam para continuar a luta pela liberdade.
Em 26 de setembro, horas antes do amanhecer, os detentos responsáveis pelas cozinhas das prisões em todo o Alabama estavam programados para começar seus turnos quando se recusaram a assumir os postos, iniciando uma das maiores greves em penitenciárias na história dos Estados Unidos.

Essa matéria foi originalmente publicada em inglês no Prism Reports, em 11 de novembro de 2022 

‘Tudo ficou agitado a partir de então, [as pessoas] estavam atiçadas e ansiosas por ação’, disse Antoine Lipscomb, membro fundador do Free Alabama Movement (FAM, Movimento Alabama Livre), que falou com a Prism Reports da Limestone Correctional Facility, uma das maiores e mais mortais instituições penais do estado, que abriga quase 2.300 pessoas, atualmente.

O Alabama Department of Corrections (ADOC) classifica 14 penitenciárias no estado como ‘instituições fundamentais’, com quase 17 mil presos. Em um procedimento muito incomum, o ADOC confirmou publicamente a greve em ‘todas as principais instituições do estado’ no primeiro dia de paralisação. Reconhecer uma greve na prisão e sua abrangência vai contra o bom senso prevalecente na administração carcerária. Em 2018, as associações prisionais defenderam o uso de campanhas de desinformação para lidar com a resistência dos detentos, a fim de gerenciar a desordem e desencorajar novas participações – o que ocasionou a greve nacional dos presos.

Apesar de reconhecer a greve, um porta-voz do governador disse que as exigências dos presos grevistas eram ‘irracionais e nã oeram bem-vindas no Alabama’. As exigências incluíam: 

  • revogação da lei habitual do infrator;
  • permissão para tornar retroativa a sentença presumida;
  • revogação da lei de tiros disparados por veículo em movimento;
  • criação de uma unidade estadual de respeito à integridade dos presos;
  • criação de critérios consistentes para a liberdade condicional obrigatória;
  • agilização dos processos de licenças médicas e liberação de idosos;
  • redução de penas mínimas para delinquentes juvenis;
  • eliminação de prisão perpétua sem liberdade condicional. 

Apoiadores das ideias defendem que, longe de serem ‘irracionais’, essas mudanças constituiriam um programa de desencarceramento significativo. Elas também poderiam rever a superlotação inconstitucional das prisões do Alabama e aumentar as oportunidades para os detentos retornarem às suas comunidades.

A greve de trabalho continuou por três semanas em pelo menos cinco prisões, antes dos presos retornarem ao trabalho em todas as instituições. Enquanto as exigências dos grevistas não são atendidas, os envolvidos, dentro e fora das penitenciárias, continuam a ser estimulados pela organização da greve e pelo apoio em massa recebido. Ao contrário do divulgado pelo ADOC sobre o ‘término’ da greve, os organizadores encarcerados descrevem a paralisação como tendo sido apenas pausada.

‘Ela será retomada’, disse Lipscomb, acrescentando que os organizadores encarcerados e apoiadores estão descansando, reagrupando-se e discutindo estratégias. Para muitos participantes das greves, paralisações ou outros protestos futuros não são apenas caminhos para a liberdade, mas também para a sobrevivência e condições de vida após a soltura.

A LUTA CONTRA O DESESPERO

Bem antes da lei tripla (ou lei das três sentenças) se popularizarem durante a era Clinton nos anos 1990, a versão do Alabama, a Lei do Criminoso Habitual (Habitual Offender Law), de 1977, causou a ira de acadêmicos e funcionários de instituições correcionais em 1985, os quais argumentavam que a vida sem sentenças de liberdade condicional retira ‘todo incentivo para o bom comportamento’, e alimenta ‘a frustração e a raiva, o que, por sua vez, produz revoltas nas prisões e ameaças aos empregados’. Nesse momento, 75 por cento dos presos condenados à morte nas penitenciárias do Alabama sob a lei do Criminoso Habitual são negros, apesar de este segmento étnico representar menos de 27 por cento da população do estado.

Relacionado ao assunto, uma das principais motivações por trás da ampla participação na greve é o rigoroso Conselho de Liberdade Condicional do estado. Mais pessoas morreram dentro das prisões do Alabama em julho [de 2022] do que as favorecidas com liberdade condicional. Neste ano, o Conselho citado revogou a liberdade condicional em 67 por cento das audiências, uma taxa seis vezes maior do que a das liberdades concedidas. Segundo dados do ADOC, a taxa de concessão de liberdade condicional caiu de 54 por cento dos presos elegíveis em 2017 para 6 por cento em agosto passado. Em recente entrevista com o conselheiro de Montgomery, o organizador Diyawn Caldwell declarou: ‘Mais pessoas estão saindo em sacos para cadáver do que em liberdade condicional’.

Os defensores da causa acreditam que, embora no nível individual as mudanças exigidas pelos grevistas possam ter um impacto mínimo na taxa de encarceramento do estado, juntas elas proporcionariam a milhares de detentos mais alternativas de liberdade. Essencialmente, a greve é uma tentativa de combater o desespero proveniente da prisão por tempo indeterminado, sem um caminho previsível para a liberdade.

De acordo com os detentos, esse desespero é um ingrediente essencial da violência e o uso de drogas que tornam as prisões do Alabama as mais mortais do país. Em seis anos de avaliação, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ, na sigla em inglês) descreve o confinamento nas prisões do ADOC como ‘deficiências constitucionais’. Essa avaliação, no entanto, não produziu melhorias tangíveis. A taxa de mortalidade nas prisões do Alabama mais do que quintuplicou desde 2005, de 33 mortes neste ano para 173 em 2021.

Os métodos que os funcionários do estado do Alabama utilizaram para reprimir a persistência da greve ilustram ainda mais como os detentos sofrem com o arbítrio do sistema carcerário. A visitação familiar foi cancelada, as penitenciárias implementaram novas ‘medidas de segurança’, a Equipe de Resposta Emergencial das Unidades (conhecida internamente como esquadrões de choque ou esquadrões de capangas) foi enviada, o ativista preso Robert Earl Council, conhecido como Kinetik Justice, foi outra vez colocado na solitária e o ADOC usou a greve como pretexto para reduzir o número de refeições.

As autoridades alegaram que a mudança para duas refeições frias por dia nas principais instituições masculinas era logística, justificando que, sem a força de trabalho dos detentos, faltavam trabalhadores para cozinhar três refeições por dia para quase 23.500 pessoas. Os detentos chamaram a prática de ‘comida de passarinho’, uma tentativa de submetê-los pela fome. Eles explicaram que essas refeições não satisfaziam as necessidades médicas específicas, nem as restrições alimentares dos prisioneiros, colocando mais vidas em risco. O ADOC também emitiu declaração sobre a saúde de um detento chamado Kastello Demarcus Vaughan para refutar as alegações de negligência médica.

Devido a essas circunstâncias, os organizadores encarcerados dizem que não deveria ser nenhuma surpresa haver uma greve generalizada por suas exigências.

”’Finalmente você está vendo as pessoas [chegando] à conclusão, “Ei, eu vou morrer aqui'", disse K. Shaun Traywick, também conhecido como Swift Justice, naquele momento preso no Fountain Correctional Facility. ‘Uma vez que eles ouvem o suficiente, uma vez que vêem isso nas ações do ADOC, do Conselho de Liberdade Condicional e da sociedade, enfim percebem que pode ser melhor [lutar]. Talvez isso faça a diferença’”

INOVAÇÕES NA ERA DE GREVES EM PENITENCIÁRIAS

 As notícias do Alabama referiram-se à greve como ‘um movimento sem precedentes’ de pessoas encarceradas. Embora a duração, disciplina e proporção da paralisação representem grandes inovações nos movimentos dos detentos, a greve, na verdade, é uma extensão de muitas ações semelhantes nos últimos anos. A resistência dos presos, incluindo greves de trabalho e de fome, boicotes e outras formas de desobediência organizada como protestos sentados (‘sit-downs’), tem uma história tão longa quanto o encarceramento em si. Nos EUA, isso é mais bem narrado na cativante e trágica história da Rebelião de Attica e do massacre que a encerrou.

A greve de trabalho dos detentos da Geórgia, em 2010, é quase sempre citada pelos atuais organizadores encarcerados como origem e fonte de inspiração para a nova fase de resistência desses presos. Os grevistas anunciaram suas exigências aos funcionários da penitenciária estadual e à imprensa. Eles incluíram a exigência de salário digno para os trabalhadores, observando a ausência de pagamento de salário para os presos na Geórgia. Segundo eles, isso violava a proibição da 13ª Emenda sobre escravidão e servidão involuntária. A exigência seria mais tarde adaptada ao movimento para anular as cláusulas de exceção das leis antiescravistas. Essa pressão foi adotada por muitos apoiadores com atuação no Legislativo, mas ainda não levou a nenhuma libertação ou mudança nas práticas trabalhistas.

Como o The New York Times assinalou, os telefones celulares já existiam nas penitenciárias há algum tempo, mas esse foi o primeiro exemplo conhecido de pessoas encarceradas utilizando-os para coordenar a resistência em diversas instituições. Os aparelhos também se tornaram ferramenta fundamental para contornar a capacidade do sistema penitenciário de monitorar e impedir a comunicação, não apenas entre os presos, mas também com o público em geral e a imprensa, muitas vezes através de mídias sociais.

No ano seguinte, pessoas detidas na Penitenciária Estadual de Pelican Bay  (de segurança máxima), na Califórnia, fizeram inúmeras greves de fome, que acabaram por atingir mais de 30 mil presos no estado, em várias fases, ao longo de três anos. Os organizadores encarcerados contribuíram para um acordo com o objetivo de pôr fim às hostilidades dentro das prisões e mobilizaram um grande grupo externo de familiares e apoiadores solidários. Os grevistas levantaram várias questões, mas as principais foram a prática de confinamento solitário sem limites exatos da Califórnia, em especial para aqueles classificados como ‘membros de gangues’, e o processo de ‘interrogatório’ desse grupo, no qual os presos tinham que informar sobre ‘atividades de gangues’ para garantir a saída da cela solitária. A ONU descreveu o confinamento solitário por 15 dias ou mais como tortura e os presos alegaram que esta prática equivalia à tortura com pretexto inadequado para o devido processo ou os meios de reparação.

Embora os resultados dessas greves e do relacionado e bem-sucedido processo judicial tenham sido variados, complexos e parciais, as greves fornecem exemplo poderoso de como uma ação dinâmica de dentro pra fora pode mudar a política e a prática, potencialmente revelando novas contradições e arenas de luta contra o sistema carcerário. Por exemplo, o FAM incorporou em suas ações muitas táticas e lições aprendidas com as greves de trabalho na Geórgia. Em 2014, os organizadores encarcerados mobilizaram duas greves no Alabama, a maior das quais levou ao fechamento de duas instituições - St. Clair e Holman – que, na época, detinham cerca de 2.400 pessoas.

Além disso, o FAM lançou o manifesto ‘Deixem as Colheitas Apodrecerem nos Campos’ (Let The Crops Rot In The Fields), que inspiraria a coordenação das greves nacionais dos presos, a primeira das quais foi liderada pelo FAM, em 2016 e apoiada pela embrionária organização interna de solidariedade, o Comitê de Organização dos Trabalhadores Encarcerados, vinculado ao Trabalhadores Industriais do Mundo (Incarcerated Workers Organizing Committee of the Industrial Workers of the World - IWOC-IWW, na sigla em inglês).

A greve nacional dos presos de 2016 viu ‘confinamentos, suspensões e greves em unidades lotadas, com duração mínima de 24 horas, em 31 instituições’, as quais abrigavam cerca de 57 mil pessoas em 24 estados, segundo Brian Nam-Sonenstein, da mídia Shadowproof. A repressão contra a greve foi generalizada. No ano seguinte, o Jailhouse Lawyers Speak, um coletivo de detentos paralegais e defensores de direitos humanos, organizados em nível nacional, lançou uma marcha de milhões pelos direitos humanos dos presos (Millions for Prisoners Human Rights March) com o apoio de organizações externas. Funcionários de penitenciárias na Flórida ficaram tão preocupados com a ação de solidariedade interna que trancaram os quase 100 mil presos de todo o estado. A marcha foi seguida pela Operação PUSH, em 2018.

Desde esse ano, as organizações externas tomaram rumos diferentes, algumas mais focadas na politização e na construção de infraestrutura. Os atos de resistência mais frequentes por pessoas encarceradas ocorreram prioritariamente nos níveis local e regional, contra situações que as autoridades locais podem tratar de forma direta. Embora esses esforços tenham acarretado algumas vitórias, não houve uma campanha generalizada, estadual ou nacional, liderada por detentos, nos últimos quatro anos.

TÁTICAS DE REPRESSÃO DE GREVE

Na sequência da greve nacional de 2016, organizações de detentos como a Jailhouse Lawyers Speak levantaram preocupações sobre a eficácia das greves de trabalho como única tática para incentivar ações coletivas entre os presos. Ter emprego pode afetar de maneira significativa a situação de alguém durante o encarceramento. Os acordos trabalhistas nas prisões variam de estado para estado e, em alguns, é raro os detentos terem empregos. Os organizadores encarcerados observaram casos nos quais os administradores penitenciários trocam certos privilégios por empregos, tais como melhores condições de moradia, maior liberdade de movimentação, maior acesso à loja interna com produtos, a telefones e talvez mais tempo fora da penitenciária. Stevie Wilson, hoje em dia preso na Pensilvânia, assim como o ex-preso político James Kilgore apontam que a precariedade dos empregos internos e a tentação dos privilégios especiais tornam ainda mais difícil convencer os presos a sacrificar esses empregos e agir em solidariedade aos esforços de greve.

Além disso, as pessoas em alguma forma de confinamento solitário não têm empregos, ou seja, não podem participar presencialmente de uma greve de trabalho. A paralisação nacional de 2018 abordou essa questão, ao expandir o repertório tático de resistência para incluir boicotes em lojas internas com produtos, atos de protesto sentado, greves de fome e de trabalho. Embora isso possa ter permitido a participação de mais presos, também pode tornar essa participação na greve menos clara para a mídia e ser, assim, mais fácil para os funcionários públicos negar [as ações] e reprimir os grevistas.

Desde 2018, os organizadores discutem a possibilidade de novas greves nas principais penitenciárias, mas em meio à preocupação de que pode não haver apoio suficiente para se transformar em ação coletiva, elas não se concretizaram. Swift Justice declarou ter se afastado da organização da greve mais recente do Alabama no início e citou a definição de insensatez muitas vezes mal atribuída a Albert Einstein: ‘fazer a mesma coisa repetidas vezes e esperar resultados diferentes’.

Apesar do pessimismo em torno da participação e do apoio à paralisação, a greve dos trabalhadores encarcerados do Alabama superou as expectativas e foi amplamente reproduzida nas mídias sociais e notícias locais durante o mês passado, muitas vezes com a hashtag #ShutdownADOC2022.

Swift Justice atua no conhecido ‘dormitório de honra’ no ADOC, espaço penitenciário caracterizado por alguns como inóspito para a organização de protestos coletivos. Ele ficou surpreso com o nível de solidariedade e comprometimento dos outros detentos, a maioria dos quais, disse, ‘não faria isso na população, em geral’. Desafiando a cultura convencional, esclareceu que foram exatamente aqueles trabalhadores com maior potencial de perda na participação da greve os que tiveram expressivo impacto. Muitos desses trabalhadores controlavam as principais tarefas sociais na prisão (na cozinha, limpeza, remoção de lixo e lavanderia), o que lhes permitiu fechar todo o sistema penitenciário do Alabama.

‘O elo mais fraco se tornou, na verdade, o mais forte’, afirmou Swift Justice.

A EDUCAÇÃO POLÍTICA COMPENSA A LONGO PRAZO

O The New York Times e o ADOC insinuaram em suas reportagens que os organizadores externos tiveram influência significativa na atividade de greve dentro das prisões do Alabama, mas tanto o tamanho da greve quanto as respostas dos detentos desmentiram essa ideia. Um detento que deu declarações para o Prism Reports e quis manter suas críticas anônimas reconheceu que os presos apreciam o apoio externo e a organização de protestos de solidariedade, mas zombou da noção de as pessoas de fora liderarem as ações ou coordenarem as atividades internas dos detentos.

‘Você sabe que as coisas não funcionam assim’, garantiu ele.

Lipscomb atribui o compromisso prolongado da recente greve às frustrações dos presos com o sistema de liberdade condicional e aos temores sobre a probabilidade de morrerem antes de serem soltos. Mais relevante ainda, ele acredita que o investimento de longo prazo dos organizadores está rendendo dividendos, como os do FAM, ao se engajarem em educação política de massa com seus pares encarcerados. Os detentos no Alabama estudaram a organização do Partido dos Panteras Negras e o pensamento de figuras como Kwame Ture, anteriormente conhecido como Stokely Carmichael.

Segundo Lipscomb, o apoio das organizações de rua, que exercem influência considerável nas penitenciárias, tem sido fundamental.

‘Elas nos permitem ensinar e trabalhar em rede com solidariedade e uma paz como nunca vi antes’, disse Lipscomb. ‘Dou os parabéns aos jovens por sua coragem e respeito pelo pensamento revolucionário e pela mudança’.

À medida que os organizadores encarcerados se reagrupam e discutem quando e como convocar novamente uma greve, fica evidente a comprovada capacidade de provocar grandes e generalizadas paralisações contra as operações prisionais no Alabama.

‘Sou estudante de história e a luta sempre fez parte da vida’, disse Lipscomb. ‘Por isso, estou estudando a partir dos que vieram antes de mim, como um guia para [nos levar] onde estamos tentando chegar; e isso sem pagar nada’.

O Prism Reports é uma mídia independente e sem fins lucrativos liderada por jornalistas negros. Escrevemos matérias da base para o topo e nas interseções da injustiça.

Jared Ware é jornalista freelance e escreve, principalmente, sobre movimentos sociais e de organização de presos. Ele é coapresentador e produtor do podcast Millennials Are Killing Capitalism (A Geração do Milênio está Matando o Capitalismo).

Available in
EnglishFrenchPortuguese (Brazil)
Author
Jared Ware
Translators
Valeria Gauz and Cristina Cavalcanti
Date
06.02.2023
Source
Original article🔗
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