De fato, o governo do Reino Unido insistiu o tempo todo em reconhecer Guaidó – e não Nicolás Maduro – como presidente venezuelano. Por sua vez, os advogados de Guaidó argumentaram que ele estava autorizado a representar e controlar os ativos do Banco Central da Venezuela mantidos em Londres.
Durante todo esse tempo, Guaidó pagou seus custos legais no Reino Unido sacando milhões de dólares de ativos de seu país, originalmente apreendidos pelo governo dos EUA. Em outras palavras, Guaidó tentou apreender ativos estatais venezuelanos com ativos estatais venezuelanos saqueados.
Ao mesmo tempo, parece correto afirmar que o Ministério das Relações Exteriores britânico também usou uma quantidade significativa de fundos públicos para manter seu apoio a Guaidó.
Agora que Guaidó foi deposto, o argumento legal para transferir o ouro para a oposição venezuelana se desintegrou. Apesar disso, o ouro continua congelado no Banco da Inglaterra, sem uma resolução clara à vista.
Aconteça o que acontecer a seguir, este caso estabelece um precedente que pode ter consequências de longo alcance: as armas para golpes do Reino Unido agora incluem a retenção dos ativos de um Estado estrangeiro e a transferência desses ativos para atores políticos engajados numa mudança de regime.
Isso certamente servirá de alerta para qualquer Estado que planeje armazenar o seu ouro no Banco da Inglaterra.
O reconhecimento de Guaidó foi um pré-requisito fundamental para que o Banco da Inglaterra se recusasse a liberar o ouro da Venezuela.
Guaidó nunca concorreu a um cargo presidencial. No entanto, em 23 de janeiro de 2019, ele se autodeclarou “presidente interino”, usando o artigo 233 da Constituição venezuelana para declarar que Maduro havia abandonado o cargo e, portanto, deixara um “vácuo absoluto de poder”.
Esse vácuo, afirmou Guaidó, teria que ser preenchido pelo presidente da Assembleia Nacional da Venezuela – cargo ocupado por Guaidó.
Sem o apoio do governo dos Estados Unidos, a ginástica legal de Guaidó provavelmente não o teria levado muito longe. No entanto, o governo de Donald Trump agiu rapidamente para reconhecê-lo e começou a pressionar a chamada “comunidade internacional” para que seguisse o exemplo.
No dia seguinte ao juramento de Guaidó, o então secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, Jeremy Hunt, visitou Washington e se reuniu com membros importantes do governo Trump, como o secretário de Estado Mike Pompeo, o vice-presidente Mike Pence e o conselheiro de Segurança Nacional John Bolton.
A crise política na Venezuela estava no topo da agenda. Antes de se encontrar com Pompeo, Hunt disse à imprensa que “o Reino Unido acredita que Juan Guaidó é a pessoa certa para levar a Venezuela adiante. Estamos apoiando os EUA, Canadá, Brasil e Argentina para que isso aconteça”. Foi uma declaração forte – mas ainda não era o reconhecimento.
Documentos obtidos pela Declassified mostram que Pompeo e Bolton agradeceram a Hunt por isso em particular. No entanto, a contribuição da Grã-Bretanha para derrubar Maduro iria além.
O Ministério das Relações Exteriores se recusa a dizer se seus funcionários ou ministros tiveram discussões com colegas nos Estados Unidos sobre o ouro venezuelano, armazenado no Banco da Inglaterra desde 2019.
Em resposta a um pedido de Liberdade de Informação, também alegou que “a divulgação de informações relativas a este caso poderia prejudicar nossas relações com os Estados Unidos da América e a Venezuela”.
No entanto, de acordo com Bolton, Hunt ficou “satisfeito” em ajudar na campanha de Washington para desestabilizar a Venezuela, “por exemplo, congelando os depósitos de ouro venezuelano no Banco da Inglaterra”.
Os diretores do Banco, no entanto, estavam preocupados com as implicações legais de congelar os ativos de um Estado estrangeiro. O Banco da Inglaterra já havia se recusado a liberar o ouro da Venezuela em 2018, citando dúvidas sobre a legitimidade do governo de Maduro, embora estivessem em um terreno legal instável.
O Ministério das Relações Exteriores trabalhou para acalmar os diretores. Em 25 de janeiro de 2019, Alan Duncan, ministro de Estado da Europa e das Américas, escreveu em seu diário que falou por telefone com Mark Carney, governador do Banco da Inglaterra, sobre o ouro da Venezuela. Ele escreveu:
“Digo a Carney que reconheço plenamente que, embora seja uma decisão do Banco, ele necessita de certa cobertura política da nossa parte. Digo a ele que vou escrever a carta mais robusta que conseguir por meio dos advogados do FCO, que vai delinear as dúvidas crescentes sobre a legitimidade de Maduro e explicar que muitos países não o consideram mais o presidente do país”.
Em outras palavras, o Banco da Inglaterra exigia uma justificativa legal robusta para manter o ouro da Venezuela congelado, e o Ministério das Relações Exteriores ficou feliz em fornecer uma.
Uma semana depois, em 4 de fevereiro, Hunt deu um passo adiante ao emitir uma declaração oficial reconhecendo Guaidó “como o presidente interino constitucional da Venezuela, até que eleições presidenciais confiáveis possam ser realizadas”.
Com isso, o governo do Reino Unido se comprometeu com o esforço de golpe apoiado por Washington. Hunt aparentemente declarou: “A Venezuela está no quintal deles e é provavelmente a única aventura estrangeira que eles podem buscar”.
O Ministério das Relações Exteriores foi questionado no Parlamento neste mês sobre se recebeu assessoria jurídica para reconhecer Guaidó como presidente, e respondeu: “Nós não comentamos quando há assessoria jurídica”.
O reconhecimento de Guaidó pelo Reino Unido desencadeou uma longa batalha legal sobre o ouro.
Em maio de 2020, o governo Maduro processou o Banco da Inglaterra por se recusar a liberar o ouro. A questão foi para os tribunais, centrada em saber se o governo do Reino Unido reconhecera Guaidó e se o Banco da Inglaterra poderia, portanto, agir de acordo com as instruções do seu “conselho ad hoc” do Banco Central da Venezuela.
Durante todo esse tempo, o governo do Reino Unido apoiou consistentemente o caso de Guaidó, enfatizando seu reconhecimento a ele.
Em 2020, por exemplo, o Ministério das Relações Exteriores forneceu um certificado por escrito aos tribunais para confirmar que o Reino Unido ainda “reconhece Juan Guaidó como presidente constitucional interino da Venezuela”.
Em 2021, o Foreign Office chegou a contratar os serviços de Sir James Eadie QC e Jason Pobjoy (do escritório Blackstone Chambers) e Sir Michael Wood e Belinda McRae (do Twenty Essex) – alguns dos principais advogados do país – para apresentar o seu caso sobre o reconhecimento de Guaidó à Suprema Corte.
Portanto, parece certo que o governo do Reino Unido gastou uma quantia significativa de fundos públicos neste caso. Isso lança dúvidas óbvias sobre a alegação do governo do Reino Unido de que este é apenas um assunto do Banco da Inglaterra ou dos tribunais: o Reino Unido investiu capital político, e aparentemente financeiro, neste caso, com a intenção explícita de derrubar o governo de Maduro.
Declassified perguntou ao Departamento Jurídico do Governo quanto foi gasto nos custos legais deste caso. Um porta-voz do Departamento disse: “Não faremos comentários adicionais sobre processos legais em andamento”.
A cada audiência, Guaidó e seus representantes também incorriam em custos substanciais. Contas publicadas recentemente sugerem que a equipe de Guaidó gastou mais de US$ 8,5 milhões em honorários advocatícios – cerca de £7 milhões.
Chama a atenção que os honorários advocatícios de Guaidó no Reino Unido tenham sido pagos com dinheiro originalmente apropriado do Estado venezuelano nos EUA.
Guaidó e seus representantes nunca conseguiram colocar as mãos no ouro.
Na audiência mais recente, em outubro de 2022, o juiz Cockerill concedeu ao conselho de Maduro permissão para apelar, declarando que as questões em jogo eram “efetivamente inéditas” e que “as consequências da decisão têm o potencial de afetar todos os cidadãos da Venezuela".
De fato, o congelamento do ouro da Venezuela serviu como uma forma de punição coletiva.
Em 2021, a relatora especial das Nações Unidas sobre sanções, Alena Douhan, instou o Reino Unido “e os bancos correspondentes a descongelar os ativos do Banco Central da Venezuela para comprar remédios, vacinas, alimentos, equipamentos médicos e outros, peças de reposição e outros bens essenciais para garantir as necessidades do povo da Venezuela”.
Com a questão ainda na Justiça, os principais partidos de oposição da Venezuela votaram, em dezembro de 2022, para retirar Guaidó do cargo de “presidente interino” e dissolver o seu governo paralelo.
O governo do Reino Unido anunciou que “respeitaria o resultado desta votação”, acrescentando que: “O Reino Unido continua a não aceitar a legitimidade da administração instaurada por Nicolás Maduro”.
A base legal para congelar o ouro da Venezuela e transferi-lo para a oposição venezuelana, portanto, desmoronou em grande parte. Outras audiências são esperadas ainda este ano.
Ainda não está claro se o ouro permanecerá congelado até que a Venezuela realize eleições que satisfaçam o governo do Reino Unido, ou se os tribunais descobrirão que o caso para congelar o ouro agora entrou em colapso,.
A questão seria imediatamente resolvida se o Reino Unido normalizasse as relações com o governo de Maduro – embora isso implicasse uma recuada embaraçosa e tivesse que ser trabalhado junto com Washington.
O que está claro é que o regime de sanções contra a Venezuela não conseguiu remover Maduro, mas prejudicou os venezuelanos comuns.
John McEvoy é um jornalista independente e colaborou com International History Review, The Canary, Tribune Magazine, Jacobin e Brasil Wire.
Foto: Bank of England