Environment

Indígenas mexicanos arriscam suas vidas em defesa do meio ambiente face ao crime organizado e à ‘ânsia predatória’ das corporações transnacionais

Numa nação onde grande parte da terra ainda é propriedade comunitária, as corporações estadunidenses, canadenses e europeias estão formando parcerias com cartéis de drogas para tomar terras e direitos aos recursos naturais mediante o terror e a violência contra comunidades indígenas e ativistas.
A violência é uma ferramenta eficiente dos privilegiados e poderosos para alcançar a reconfiguração social que desejam. A instrumentalização da violência contra as comunidades indígenas, os ativistas e as terras comunitárias mexicanas por parte das transnacionais e de grupos do crime organizado é um caso sombrio e mais comum do que se imagina.

Eles voltavam de uma reunião comunitária em Aquila, Michoacan, onde discutiram como conseguir fazer a mina Ternium naquela área suspender suas atividades. Deixaram alguém pelo caminho, e nunca mais foram vistos. Mais tarde, o seu carro foi encontrado vazio e metralhado.

Antonio Díaz, líder indígena nahua que se opunha à mina, e Ricardo Lagunes, advogado de direitos humanos que assumiu diversos casos chave no México, desapareceram no dia 15 de Janeiro deste ano.

"Tenho muita saudade do meu irmão", disse Ana Lucia Lagunes, irmã de Ricardo, à TRNN. "Mas embora isto [os desaparecimentos e assassinatos] afete diretamente a minha família, afeta também milhares de outras pessoas. E vai continuar  acontecendo se não reagirmos, se não questionarmos, se não estivermos alertas para... o que fazem as empresas", explicou.

Como informou o Sin Embargo um mês antes do desaparecimento de Díaz e Lagunes, os executivos da Ternium os tinham ameaçado. No dia em que os dois desapareceram, pessoas ligadas a organizações criminosas de Jalisco e Michoacan foram vistas do lado de fora da reunião. Quando Díaz e Lagunas partiram, eles os seguiram. 

As ligações entre o crime organizado e as transnacionais no México estão cada vez mais evidentes, à medida que os agentes e organizações de ambos os lados operam para tomar mais terras para o cultivo de drogas, de produtos da agricultura (O cartel Nova Geração de Jalisco (CJNG), por exemplo, lucra com o cultivo de abacate), para a mineração, parques industriais e mega empreendimentos. Ao fazê-lo, desmatam áreas protegidas e expulsam os habitantes originais e os proprietários de terras coletivas. Por isso comunidades indígenas, como a de Antonio Díaz, estão na vanguarda da luta para defenderem a si mesmas e o meio ambiente da aniquilação. 

OS NOVOS LUCROS ESTÃO NAS TERRAS COLETIVAS E NÃO EXPLORADAS 

No ano passado, mais da metade dos 72 ativistas assassinados no México eram indígenas. Outros tantos eram advogados ou ativistas dos direitos humanos que apoiavam as suas lutas.

Até o ano de 1910, a maior parte das terras do país pertencia a ricos mexicanos e estrangeiros. Com a Revolução Mexicana veio a reforma agrária, e a terra foi aos poucos devolvida às comunidades indígenas e rurais pobres. Sob o sistema ejido, consagrado na Constituição mexicana de 1917, a terra é propriedade comunal, e não pode ser dividida nem vendida. Contudo, em 1991, em preparação do Acordo de Comércio Livre Norte-Americano (NAFTA, na sigla em inglês), que abriu o México a todo o tipo de abusos econômicos por parte das multinacionais estadunidenses, a Constituição foi alterada para permitir a venda de terras dos ejidos. Estas mudanças contribuíram para criar uma situação volátil na qual a luta pela propriedade e o uso da terra no México se tornou cada vez mais intensa, lucrativa, e violenta nos últimos trinta anos.

Agora, em 2023, 51% das terras mexicanas são propriedade social - seja ejido ou comunitária. Cerca de 8.000 das 31.000 zonas agrárias são ocupadas por povos indígenas. Um total de 80% das florestas são propriedade social. 

Empresas como a Ternium ainda necessitam de permissão das comunidades dos ejidos para usar as suas terras, embora a empresa possua uma licença nacional. Para pressionar as comunidades, as empresas costumam operar com cartéis do crime organizado para semear a discórdia, ou fazem ofertas monetárias tentadoras a membros empobrecidos das comunidades, as quais terminam não pagando.

Dos 1.531 projetos mineiros em operação no país, 44% encontram-se em áreas florestais. As minas contaminam rios e solos próximos e obtêm acesso preferencial à água, mesmo em regiões que enfrentam secas. No centro-norte do México, o povo wixárika possui e cuida de 140.000 hectares de terra. No entanto, sem a sua permissão, atualmente há minas de cobre, ouro, prata e zinco em operação, e outras cinco minas estão em fase de prospecção.

"Os povos originários vivem há milhares de anos nestas terras", afirma Jorge Salinas Jardón, ativista sindical, amigo de Ricardo Lagunes, e membro da comunidade indígena Matlazinca, que agora praticamente desapareceu, à TRNN. 

"Por isso, quando a terra é ameaçada, eles a defendem com a própria vida". As pessoas não defendem o que não conhecem, e quando você vai até lá e vê como este lugar é bonito, isso faz sentido. Eles se vêem como defensores da Madre Tierra", conta.

O QUE É PRECISO PARA DEFENDER O AMBIENTE

O estado de Querètaro privatizou o seu sistema de água em maio do ano passado, essencialmente colocando empresas privadas a cargo da gestão da distribuição de água e permitindo-lhes dar prioridade a mega empreendimentos em detrimento das necessidades locais.

O povo otomi de Santiago Mexquititlán, Querétaro, organizado no Conselho Indígena Autônomo, tem feito passeatas e travado batalhas legais para deter — e agora reverter— a privatização.

"Nós nos organizamos para defender o que ainda temos, mas ao fazê-lo eles nos oprimem", explicou Sara Hernández Jiménez, líder do Conselho Indígena Mexicano, à TRNN.

Quando, em 2021, as empresas começaram a levar a água dos otomies em caminhões-pipa d’água gigantescos, deixando as famílias sem água durante meses e preocupadas com a morte dos seus animais, a comunidade organizou uma vigilância permanente no poço principal e confiscou um caminhão-pipa. 

Durante estes atos de resistência Hernandez descreve uma repressão contínua: ela própria foi atacada duas vezes, e pessoas da comunidade foram alvejadas, detidas arbitrariamente, assediadas em suas casas, ou receberam ofertas de suborno, "então ou é  prêmio ou castigo".

Com o assédio das empresas imobiliárias aos terrenos dos ejidos, os otomies precisaram defender seus terrenos comunitários, inclusive o local do seu centro cerimonial. "Um grupo violento foi enviado com pedras, paus e facas e removeu algumas bancas do mercado e brinquedos  da nossa celebração cultural para nos punir como comunidade indígena organizada. Quando plantamos árvores, eles as arrancaram. Quando nos organizamos para limpar uma área, eles vêm e espalham lixo para todo lado, inclusive animais mortos", disse Hernandez.

"Eles odeiam os povos indígenas porque nos sentimos parte da natureza", explicou ela à TRNN, e contou como, com o afluxo das empresas transnacionais, o crime organizado também aumentou. Pode vê-lo, disse ela, no aumento dos assassinatos, do consumo de drogas e da violência na região.

"O crime organizado está crescendo no México, principalmente nas regiões indígenas", advertiu Carlos Gonzalez, advogado de direitos de terra do Conselho Nacional Indígena, durante uma reunião nacional recente sobre água, realizada em Mexquititlán. Segundo ele, isto faz parte da "destruição sistêmica da propriedade coletiva da terra".

Enquanto isso, em Aquila, Lagunes e Díaz são apenas as vítimas mais recentes. Nos últimos 14 anos, 38 líderes comunitários foram mortos ali, e outros seis desapareceram. Também em janeiro, três defensores da terra, que eram membros da guarda comunitária de Aquila e da vizinha Santa María Ostula, foram mortos por cerca de vinte assassinos contratados, provavelmente membros do CJNG.

Após o desaparecimento de Lagunez e Díaz, os ativistas realizaram dezenas de mobilizações, duas ocupações, três conferências de imprensa e mais, porém o governo mexicano não fez nada em resposta.

Ternium, empresa siderúrgica sediada em Luxemburgo com uma receita de 16,4 bilhões de dólares em 2022, tem causado graves danos ambientais. Três minas a céu aberto extraem entre 12 e 15.000 toneladas de aço por dia. Díaz provavelmente teria sido eleito representante da comunidade nahua nos tribunais agrários, onde poderia ter negociado com a Ternium.

"O meu irmão começou a fornecer apoio jurídico [à comunidade de Aquila] em 2019", explicou Ana Lagunes. "Ele estava focado em regularizar a eleição dos representantes dos proprietários das terras comunitárias. Havia outro grupo que tentou acaparar as eleições, mas, com o apoio do meu irmão, os tribunais agrários o impediram. Finalmente foi convocada uma assembleia para escolher os representantes", disse ela à TRNN. No dia da assembleia o seu irmão desapareceu. 

Em 15 de fevereiro, Ana Lagunes e vários ativistas fizeram uma vigília de protesto. Acenderam velas às 18:50h, exatamente um mês desde que os dois tinham sido vistos pela última vez. 

Apesar de ter fechado uma estrada principal na zona, o protesto foi rotineiro. Os desaparecimentos e assassinatos são tão comuns, e a impunidade tão elevada (93% dos assassinatos no México nunca são punidos) que os membros da família que exigem justiça pela morte e desaparecimento dos seus entes queridos são uma visão  regular da vida cotidiana.

"Este sistema quer que nos habituemos aos desaparecimentos forçados. Há mais de 110.000 desaparecidos no México... Parece haver uma guerra contra o povo", lamentou Salinas.

No entanto, há resistência por toda parte. Os habitantes locais travam batalhas legais e impediram a construção de arranha-céus em Xoco, cidade indígena e ejido na Cidade do México que o governo vendeu a incorporadores imobiliários. Os residentes da cidade chamam aos projetos de construção de Mitikah, que agora gerem a área, de "cartéis imobiliários".

O povo maia de Sitilpech, Yucatán, tem defendido suas terras e água de uma fazenda industrial com 48.000 porcos. Há pouco eles criaram um protesto permanente e impediram a entrada de caminhões da empresa na fazenda.

Os proprietários de terras de ejidos no estado de Sonora têm brigado justiça contra Penmont, uma mina de ouro a céu aberto, desde 2011. A mina está esgotando a água local e contamina o solo com cianeto e arsênico. Os habitantes locais obtiveram 67 ordens do tribunal agrário, e protestaram diante do Palácio Nacional de governo em novembro do ano passado.

Forest in Michoacan, Mexico, which criminal groups want to log or control for tourism. Photo by Tamara Pearson.Floresta em Michoacan, México, que grupos criminosos querem explorar ou controlar para o turismo.

As comunidades purépechas em Michoacan criaram seus próprios conselhos comunitários de governo para se defenderem do crime organizado e proteger as florestas. Grupos criminosos na área estão derrubando árvores para madeira e para cultivar abacates. Nas proximidades, as comunidades de Zitácuaro criaram uma Guarda Indígena para defender as florestas e as borboletas monarca. Onze deles foram mortos tentando expulsar criminosos da floresta. No estado de Guerrero, 77 comunidades indígenas também criaram forças policiais comunitárias para se defenderem das indústrias extrativistas e do crime organizado.

A lista segue: por exemplo, o povo masue de Cuetzalan, Puebla, há pouco tempo deteve a construção de um cabo de alta tensão que teria servido ao setor mineiro, com passeatas e acampamentos na área durante nove meses. No final de fevereiro as comunidades nahua do ejido Ixtacamaxtitlán, Puebla, ganharam outro processo contra a empresa canadense Almaden Minerals, de ouro e prata. Eles passaram a última década  defendendo a floresta dos madeireiros ilegais - e, numa assembleia em janeiro, decidiram instalar um portão baixo para impedir a entrada de caminhões.

TRANSNACIONAIS E CRIME ORGANIZADO NÃO SÃO LÁ MUITO DIFERENTES

No México, os interesses econômicos e a ganância das empresas e do crime organizado se sobrepõem. Embora as transnacionais estadunidenses, canadenses e europeias que operam aqui não documentem suas relações corruptas com funcionários para obter licenças nem a colaboração com o crime organizado, às vezes dão com a língua nos dentes. 

Rob McEwan, CEO da McEwen Mining, admitiu em 2015 numa entrevista que os cartéis estavam ativos perto da sua mina em Sinaloa. Embora estes cartéis tivessem roubado ouro no valor de 8,5 milhões de dólares, McEwan disse aos repórteres: "em geral, tínhamos uma boa relação com eles. Se queremos ir explorar em outra parte falamos com eles, que podem dizer não, mas depois dirão para voltarmos dentro de algumas semanas quando tiverem terminado o que estiverem fazendo".

Frequentemente os cartéis e as minas operam no mesmo território, e podem ter uma relação mutuamente benéfica, em que o crime organizado expulsa de uma área comunidades ou indivíduos que se opõem à extração e cobrar dos trabalhadores uma taxa para que possam trabalhar na mina local. Los Zetas, por exemplo, são conhecidos por controlar minas de carvão.

Em Aquila, os habitantes locais acusam a Ternium, o CJNG, e Carteles Unidos, que extraem ilegalmente na área, pelo desaparecimento de Díaz e Lagunes.

"Suspeitamos de todos... há muitos interesses envolvidos". A mina quer prolongar o seu período de exploração... e o crime organizado tem aumentado o controle da região", disse Ana Lagunes. 

As empresas transnacionais "vêem apenas os números que indicam quanto dinheiro vão ganhar", disse Salinas, ao mencionar a facilidade com que assassinam ativistas que se interpõem no seu caminho. "Eles são insaciáveis, predadores". 

Os esforços para reprimir quem atravessa o caminho desta pilhagem ambiental cada vez mais visam comunidades inteiras. A comunidade indígena de Pitayal, Oaxaca, tem enfrentado assédio, intimidação, violência física, criminalização (mediante acusações falsas) e violência política (como a  recusa de recursos para serviços públicos), já que se opõem à utilização das suas terras comuns para um projeto de mega-construção. 

Sara Hernandez Jimenez (right), a leader of the Mexquititlán Indigenous Council. Photo by Tamara Pearson.Sara Hernandez Jimenez (à direita), líder do Conselho Indígena Mexquititlán.

Ao Norte, 20 yaquis foram alegadamente mortos ou desapareceram em 2021. Alguns líderes foram presos, e há ameaças constantes contra outros. Guadalupe Flores, porta-voz yaqui, disse ao Mongabay que a violência é como as empresas "geram psicose para que os habitantes abandonem suas terras". 

Poucas comunidades indígenas não enfrentaram a violência do crime organizado. Há algumas semanas, em 21 de fevereiro, Alfredo Cisneros, vereador indígena e defensor da floresta purépecha que havia denunciado a tala ilegal de árvores em Sicuicho, Michoacan, foi morto a tiros.

A CONTINUAÇÃO VIOLENTA DA COLONIZAÇÃO MODERNA 

Ao invadir e usar a terra de um modo destrutivo, os interesses privados - legais e ilegais - perpetuam o que o escritor mexicano Luis Hernandez Navarro denominou um "novo tipo de colonização". 

A violência, como escrevem os acadêmicos mexicanos Ana Esther Ceceña e David Barrios, é a ferramenta eficiente dos privilegiados e poderosos para obter uma reconfiguração social. A instrumentalização da violência contra as comunidades indígenas, os ativistas e as terras comunitárias por parte das transnacionais e do crime organizado no México é um caso sombrio e persistente.

"O que pode ser feito... tem a ver com o modo como cuidamos das nossas próprias vidas, com o que valorizamos, como garantimos que não seremos divididos, como seguimos crescendo e como valorizamos a solidariedade, que tem sido um farol radiante nisso tudo. Isso nos traz esperança. Um poço profundo de desesperança não nos ajuda. Cuidamos das nossas vidas defendendo-as", concluiu Ana Lagunes.

Tamara Pearson é uma jornalista mexicana-australiana, ativista e escritora. Ela passou os últimos 22 anos contando o lado oculto da história, escreve o boletim Excluded Headlines, tem o blog Resistance Words e está disponível em @pajaritaroja.

Fotos: Tamara Pearson

Available in
EnglishGermanPortuguese (Brazil)
Author
Tamara Pearson
Translators
Cristina Cavalcanti and Rodolfo Vaz
Date
20.04.2023
Source
The Real News NetworkOriginal article🔗
Privacy PolicyManage CookiesContribution SettingsJobs
Site and identity: Common Knowledge & Robbie Blundell