Economy

Indústria alimentícia pagou US$ 53,5 bilhões a acionistas enquanto milhões passam fome

Sem soberania alimentar, empresas privadas continuarão a lucrar às custas de pessoas vulneráveis
Imagine ser capaz de fornecer alimentos, abrigo, medicamentos e água potável para as 230 milhões de pessoas mais vulneráveis da Terra — e ainda ter US$ 2 bilhões de sobra. Você teria o equivalente a toda a produção econômica da Gâmbia no bolso.

Este cenário improvável ilustra um novo estudo que mostra como 20 das maiores corporações de alimentos do mundo — as maiores nos setores de grãos, fertilizantes, carne e laticínios — devolveram um total de US$ 53,5 bilhões a seus acionistas nos últimos dois anos financeiros.

Para colocar a situação em perspectiva, a ONU estima que precisa de US$ 51,5 bilhões para fornecer suporte para as 230 milhões de pessoas consideradas de maior risco em todo o mundo.

Além disso, as corporações “ganharam” esses lucros durante um período de turbulência sem precedentes — uma pandemia global e uma guerra em larga escala na Ucrânia — quando as cadeias de abastecimento globais foram interrompidas e milhões de pessoas se encontraram em situação de fome.

Embora cidadãos de países mais ricos possam ter notado preços mais altos nas gôndola dos supermercados, sua experiência não passa nem perto do impacto devastador nos países em desenvolvimento. Os preços dos alimentos aumentaram entre 3% e 4,5% no Reino Unido, Canadá e EUA nos primeiros meses da pandemia — mas em 47% na Venezuela, por exemplo.

O Programa Mundial de Alimentos estima que o número de pessoas enfrentando insegurança alimentar aguda mais que dobrou, passando de 135 milhões de pessoas antes da pandemia para 245 milhões. Países no nordeste da África, bem como o Afeganistão e o Iêmen, foram particularmente atingidos.

Donos do mercado

Então, como 20 empresas conseguiram essa quantia de dinheiro em meio a duas grandes crises?

Sendo donos, literalmente, do mercado. O novo relatório da Greenpeace International mostra como este pequeno grupo de empresas é capaz de exercer um controle extremamente desproporcional, não apenas sobre as cadeias de fornecimento de alimentos em si, mas sobre as informações sobre esses fornecimentos.

Quando as cadeias de abastecimento foram interrompidas e os preços dos alimentos subiram, os lucros se acumularam. Os dividendos em dinheiro e os programas de recompra permitiram transferir uma quantia astronômica de dinheiro para seus acionistas, enquanto ampliavam ainda mais seu poder sobre a indústria e os governos do setor.

Um fracasso sistêmico da política pública permitiu que um grupo seleto registrasse lucros enormes, enriquecendo os indivíduos que os possuem e operam e transferindo riqueza para os acionistas, a maioria dos quais está no Norte Global.

Vamos pegar um exemplo do relatório: A invasão da Ucrânia pela Rússia, no ano passado, também resultou em aumentos acentuados de preços de commodities agrícolas como trigo, milho, óleo de girassol e alguns fertilizantes, dos quais a Ucrânia e a Rússia são grandes exportadores.

Apenas quatro empresas — Archer-Daniels Midland, Bunge, Cargill e Dreyfus — controlam cerca de 90% do comércio mundial de grãos. Elas não são obrigadas a revelar o que sabem sobre os mercados globais, incluindo seus próprios estoques de grãos. Essa falta de transparência significa que estas empresas retêm informações que podem moldar os preços dos grãos de acordo com suas necessidades — nem mesmo fundos de cobertura podem obter informações, exceto diretamente deles.

Nosso relatório conclui que, após a invasão da Ucrânia, a opacidade em torno das verdadeiras quantidades de grãos armazenados foi um fator no desenvolvimento de uma bolha especulativa que levou ao aumento dos preços dos grãos em todo o mundo. Nos últimos dois exercícios financeiros, essas quatro empresas pagaram um total de US$ 2,7 bilhões em dividendos em dinheiro e pelo menos US$ 3,3 milhões em recompras de ações, embora o número real seja provavelmente muito maior porque nem todas relatam suas finanças em detalhes.

Se queremos ver um mundo sem fome, a mudança estrutural mais impactante que podemos fazer no sistema alimentar global é trazer a soberania alimentar. Isso significa que os formuladores de políticas públicas capacitam os consumidores e produtores de alimentos por meio de políticas que beneficiam a produção local de alimentos, o meio ambiente e os direitos dos trabalhadores.

Há anos, os movimentos de soberania alimentar buscam devolver a autonomia aos produtores de alimentos, encurtando e fortalecendo as cadeias de abastecimento para reverter os danos causados pela agricultura insustentável. Não é apenas uma ilusão: de Papua Nova Guiné e Brasil ao México e muitos outros países, existem movimentos estruturais profundos trabalhando para levar comida ao prato de todos.

Mas também deve haver políticas para afrouxar o controle corporativo sobre o sistema global de alimentos – medidas como regulamentos para garantir maior transparência, um imposto ambicioso e setorial e uma tributação significativa sobre o pagamento de dividendos, bem como sobre a receita de dividendos.

Alcançar a fome zero é o segundo dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que os Estados membros da ONU se comprometeram a atingir até 2030. Conferências recentes da ONU, como a COP27 e a COP15, destacaram a agricultura industrial como um importante fator de emissão de gases de efeito estufa e perda de biodiversidade.

É hora de a comida ser vista pelo que ela é: uma necessidade humana básica que deve estar disponível para todos nós, e não mais uma mercadoria a ser explorada e comercializada para o lucro de poucos.

Available in
EnglishSpanishPortuguese (Brazil)
Author
Davi Martins
Date
26.04.2023
Source
openDemocracyOriginal article🔗
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