Em setembro de 2006, na Assembleia Geral da ONU, os ministros de Relações Exteriores do Brasil, China, Rússia e Índia começaram a delinear o que seria um grande acordo de apoio comercial e monetário. Em 2010, durante uma reunião dos presidentes desses países em Brasília e, um ano depois, na China, o que hoje se conhece como BRICS foi ratificado e começou a tomar forma, com a África do Sul juntando-se ao grupo. Embora no início tenham demonstrado disposição para produzir maior diálogo entre os países membros, com o passar dos anos a agenda passou a contemplar uma cooperação internacional mais ampla e, principalmente, parcerias econômicas e financeiras em setores estratégicos como energia, agricultura e desenvolvimento científico e tecnológico.
A visita recente do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva à China, onde se encontrou com seu colega Xi Jinping, foi mais que um simples passo nesse processo de integração. Além dos importantes acordos comerciais e financeiros que assinaram, foi anunciado o abandono do dólar como moeda de troca e o comércio com moedas nacionais (yuan chinês e real brasileiro), o que constitui um grande salto para a desdolarização do planeta.
“Eu toda noite me pergunto, porque todos os países estão obrigados a fazer seu comércio lastreado no dólar?", comentou Lula. "Por que é que não podemos fazer o nosso comércio baseado na nossa própria moeda? Por que é que não temos o compromisso de inovar? Quem é que decidiu que era o dólar a moeda, depois que desapareceu o ouro como paridade?”
Elvin Calcaño, cientista político do Polititank, disse ao El Ciudadano: "desde 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos têm sido a grande potência. Portanto, foi com base em seus interesses específicos que o atual esquema de governança mundial da política e da economia foi projetado. Daí resultam instituições como o FMI e o Banco Mundial que, em última análise, respondem a esse projeto. Nessa estrutura, o dólar sempre foi um instrumento do poder dos EUA na esfera mundial. Ele é usado, como temos visto muito ultimamente, como um elemento coercitivo para disciplinar e oprimir, por meio de sanções econômicas unilaterais, os países que agem à margem dos seus interesses geoeconômicos. Países como China, Rússia, Brasil, Índia e outros na órbita do BRICS estão agora tentando sair desse modelo, a partir dos seus próprios interesses. Na esfera geopolítica, o que move é o poder e os interesses concretos entre as partes. Outra questão são os discursos de justificativa.
Calcaño acrescentou que "a viagem de Lula à China deve ser vista no contexto da vocação geopolítica do atual presidente brasileiro, que ele demonstrou amplamente em seus dois mandatos anteriores. Partindo de uma perspectiva de esquerda, Lula tem uma visão soberana das relações exteriores. Tendo em vista que o Brasil é uma potência econômica regional e mundial com peso significativo, geram-se fortes repercussões quando pessoas como ele chegam ao poder. Por outro lado, é preciso encarar isto no contexto da luta geopolítica entre os EUA e a China. O Brasil busca um espaço próprio no âmbito dessa disputa com base em seus interesses, os quais, em muitos setores, tendem a convergir com os da China, e divergir dos interesses estadunidenses. Por fim, a visita de Lula à China, por seus motivos e pelo cenário mundial que a enquadra, faz parte do processo de transição para uma multipolaridade que já existe no mundo".
No estado da Bahia, uma antiga fábrica de carros da Ford, recentemente fechada, será reaberta com capital chinês sob a marca BYD, empresa que produzirá carros elétricos e híbridos. A nova fábrica chinesa reflete uma mudança no poder econômico internacional, antes restrito aos países do Norte Global.
Os acordos assinados entre o Brasil e a China dizem respeito principalmente a energias renováveis, indústria automotiva, agronegócio, tecnologia da informação, saúde e infraestrutura. De fato, Lula visitou a fábrica da Huawei Technologies, que opera no Brasil há 20 anos e atualmente fornece tecnologia 5G. A empresa chinesa vem sofrendo uma série de boicotes e sanções nos Estados Unidos desde a era de Donald Trump.
Atualmente, a China é o maior parceiro comercial do Brasil. Apesar da distância entre o ex-presidente Jair Bolsonaro e o governo chinês, o comércio bilateral em 2022 foi de 170 bilhões de dólares, o dobro dos valores trocados entre os Estados Unidos e o Brasil. A balança comercial China-Brasil deixou um superávit de 30 bilhões de dólares (R$ 157 bilhões). De um lado, o país latino-americano exporta soja, milho, açúcar, café, carne e ferro, entre outros produtos; do outro, o gigante asiático exporta produtos manufaturados para o Brasil e investe em projetos de infraestrutura.
Brasil e China também estão trabalhando juntos no lançamento de satélites, como o programa Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres (Cbers), que colocou em órbita seis satélites entre 1999 e 2009.
O fim do dólar como moeda nas transações comerciais e a possível criação de uma nova moeda para os países do BRICS foram contestados pelo ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Thomas Shannon, segundo o qual a ideia poderia incomodar o governo estadunidense.
"Quando vou falar com os Estados Unidos não me preocupo com o que a China possa pensar. Estou conversando sobre os interesses soberanos do meu país. Quando falo com a China tampouco me preocupo com o que os Estados Unidos pensam. Assim como os Estados Unidos, assim como a China e assim como todos os países", foi a resposta do presidente brasileiro.
Outro passo importante para o Brasil foi assumir a presidência rotativa do banco dos BRICS, o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), cargo que a economista e ex-presidente Dilma Rousseff assumiu em um evento realizado na sede da organização, em Xangai, e que contou com a presença de Lula.
O NDB, criado em 2014, já aprovou financiamentos no valor de 32,8 bilhões de dólares para 96 projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável em nove países, incluindo Bangladesh, Egito, Emirados Árabes Unidos, Uruguai e os países do BRICS.
A promoção de Dilma Rousseff pela diplomacia brasileira destaca o interesse em estabelecer uma relação sólida que permita ao Brasil e a outros países da região explorar alternativas sem a imposição de reformas neoliberais na economia, que são frequentemente condicionadas pelos empréstimos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI).
O cientista político e professor de relações internacionais Bruno Lima Rocha acredita que por meio do NDB o Brasil terá a América Latina como o seu lar geopolítico e econômico. “As relações do país com a China e os BRICS serão muito importantes na política externa no terceiro mandato de Lula, disse ele ao El Ciudadano. Dilma não foi indicada por acaso à presidência do banco dos BRICS. Se o Brasil adota a posição de liderar os BRICS na criação de um sistema de garantias colaterais para a moeda integrada aduaneira entre o Brasil e a Argentina, como um experimento para impulsionar o comércio internacional em um nível intra-latino-americano, independentemente do dólar, acredito que os BRICS operarão como o alicerce fundamental dessa ideia de desenvolvimento, assegurando ao menos a soberania. Outra situação dos BRICS é a escala mundial em que Brasil e África do Sul entram como parceiros menores numa triangulação ampliada da Rússia, Índia e China, onde o eixo econômico eurasiático está muito mais desenvolvido do que economias ocidentais como Austrália, Nova Zelândia e Japão".
A aposta de Lula tem relação tanto com sua experiência política, tendo sido preso num julgamento sem provas impulsionado pelos Estados Unidos e promovido pelo ex-juiz Sergio Moro, quanto com as possibilidades do seu governo, condicionadas internamente por um parlamento onde não tem maioria e pelas políticas neoliberais do Banco Central, tornado autônomo por Bolsonaro.
Lima Rocha comenta que "é preciso entender que esse potencial dos BRICS foi um dos mais importantes fatores externos de impulsionamento para o Projeto Pontes do governo Obama, que resultou no lawfare da Lava Jato e derrubou Dilma no início de seu segundo governo. Pode-se dizer, portanto, que o tamanho do desafio dos BRICS foi alimentado por Washington".
Lima Rocha comenta: “é preciso entender que a possibilidade dos BRICS foi um dos fatores externos mais importantes do impulsionamento do Projeto Pontes do governo Obama, que resultou no lawfare da Lava Jato que derrubou Dilma Rousseff no início do seu segundo mandato. Pode-se dizer que o tamanho do desafio enfrentado pelos BRICS foi alimentado por Washington.”
Ele acrescenta que o papel de Dilma será crucial. "A presença de Dilma no NDB será fundamental para impulsionar a indústria de semicondutores, e para operar cadeias internacionais em que o Brasil não entre apenas como vendedor de grãos ou minérios. Isso no nível macro. Por outro lado, o banco dos BRICS e o eixo econômico eurasiático se complementam, sem precisar dos demais. China, Índia, Rússia e até mesmo o Paquistão podem produzir tudo aquilo de que a sociedade moderna do século XXI precisa. E isso deve ser um aspecto importante na política do BRICS, para criar uma indústria de ponta e competir com o eixo econômico e financeiro que administra o SWIFT, por exemplo".
Por sua vez, Pierre Lebret, cientista político e mestre em Relações Internacionais pela Sorbonne, enfatizou que China e Brasil são grandes parceiros comerciais. Ele considera importante "que os países do Sul se organizem, recuperem a voz e se tornem atores chave no cenário global. A guerra na Ucrânia está reordenando o mapa geopolítico mundial. Por isso a visita é importante, o retorno de Lula abre uma nova etapa e, claramente, isso deve permitir o estabelecimento de bases para a integração e a promoção de um mundo multipolar".
Lebret acrescenta que "a cooperação Sul-Sul será fortalecida, particularmente no âmbito do BRICS. O Sul também deve agir para evitar cenários de confronto entre potências. O passado nos mostra que tais cenários têm consequências econômicas, sociais e políticas muito graves para os povos do Sul. Também acho importante que o Brasil atue no cenário global sem perder de vista a América Latina, para que a própria integração latino-americana tenha uma chance de prosperar.”
Para Elvin Calcaño, a nomeação de Dilma Rousseff como presidente do banco dos BRICS "é um passo claro na direção de uma geoeconomia mundial fora da hegemonia do dólar. Fundamentalmente, a partir da convergência entre potências emergentes e consolidadas que, fora da órbita ocidental dominada pelo eixo anglo-saxão do Atlântico Norte, caminham para outros desenhos da economia mundial".