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David Wengrow: "As ‘civilizações’ históricas eram sistemas mantidos pela violência, coerção e opressão às mulheres”

O autor e pesquisador Saša Savanović entrevista David Wengrow sobre seu livro O despertar de tudo: uma nova história da humanidade.
Nesta entrevista, Wengrow examina e desmascara as noções eurocêntricas de "civilização", utilizando as descobertas de seu livro, e reflete sobre como a arqueologia e a antropologia podem atualmente ajudar a moldar as sociedades.
Nesta entrevista, Wengrow examina e desmascara as noções eurocêntricas de "civilização", utilizando as descobertas de seu livro, e reflete sobre como a arqueologia e a antropologia podem atualmente ajudar a moldar as sociedades.

Publicado inicialmente na edição 36 da The Internationalist.

Saša Savanović:  Você inicia sua argumentação com uma refutação abrangente do senso comum de que a humanidade, em seu caminho para a civilização, passou por várias etapas que correspondem aos seus modos de produção subjacentes (de caçador-coletor a agricultor e à civilização comercial). Em vez disso, você argumenta que essa periodização surgiu, na verdade, como uma reação e uma forma de "neutralizar" o poder de crítica dos povos originários que abalou as metrópoles coloniais no início do Iluminismo. Você poderia nos dizer, em sua opinião, como surgiu a visão da História como uma progressão quase mecânica em etapas? 

David Wengrow: Bom, esse é um processo bastante complexo, que tentamos desvendar no capítulo dois da obra O despertar de tudo. Ele envolve uma gama variada de protagonistas. Talvez o mais importante seja o economista e fisiocrata Anne-Robert Jacques Turgot, que viveu no século XVIII e cujos escritos, que ele chamou de "história universal", esboçaram uma teoria do progresso humano que, por sua vez, tornaram-se inspiração para os pensadores escoceses do Iluminismo, como Adam Smith e John Millar, cujos trabalhos estabeleceram as bases do pensamento econômico moderno e, de certa forma, das ciências sociais em geral. Sua principal proposta foi dividir os seres humanos de acordo com seus modos de subsistência ou produção e, em seguida, usar essa divisão como um mecanismo de enquadramento para praticamente todos os outros aspectos da experiência (política, religião, hábitos conjugais, leis de propriedade e assim por diante). Foi quando começamos a ter a noção da história mundial ou da evolução social como uma série de desenvolvimentos entre os estágios de caçador-coletor, pastor, agricultor e, por fim, o tipo de sociedade urbano-comercial que esses escritores estavam empenhados em promover.

Os cientistas sociais observaram muitas vezes que o uso dessas categorias poderia facilmente levar ao tipo de visão materialista "vulgar" do desenvolvimento humano rejeitada posteriormente por Marx, e que, apesar disso, continuam presentes em nossos dias. Mas por que elas foram inicialmente propostas? Isso tem tudo a ver com o que o antropólogo Johannes Fabian chamou de "a negação da contemporaneidade" (em sua obra O tempo e o outro). Acreditamos que o que aconteceu no século XVIII foi algo mais ou menos assim: a vida intelectual e moral europeia foi ao mesmo tempo profundamente inspirada e profundamente ameaçada por relatos da vida dos povos originários e das liberdades sociais em outros lugares, especialmente nas Américas e, mais especificamente, nas regiões dos Grandes Lagos e das Florestas Orientais; sabemos disso por meio dos relatos trazidos por missionários e outros viajantes, que se tornaram best-sellers nos salões da Europa iluminista. Em relação aos aspectos que os europeus progressistas admiravam e aos quais aspiravam - maior equidade geral, rejeição da monarquia e dos dogmas religiosos e liberdade das mulheres -, os povos das Nações Originárias simplesmente estavam muitíssimo à frente.

As implicações eram imensas, mas para pensadores relativamente conservadores como Turgot, eram também potencialmente muito perigosas (e, é claro, no contexto da sociedade francesa contemporânea, eles não estavam totalmente equivocados em pensar deste modo: lembre-se de que o Terror não estava tão distante assim no futuro). Então, eles criaram um contra-argumento muito inteligente, que deixou sua marca na forma como pensamos a história humana até os dias atuais. Sim, admitiu Turgot, esses chamados "selvagens" de fato possuem essas liberdades e essa igualdade, e isso deve ser comemorado, mas a única razão pela qual eles conseguem ter isso, não é por serem mais avançados do que os europeus, mas por serem mais simples ou primitivos: ou seja, simples em termos materiais e tecnológicos. A implicação era que, para recuperar essas liberdades, seria preciso voltar a uma ideia de vida em cabanas primitivas, abandonar o uso de roupas e não possuir nenhum patrimônio pessoal (é claro que esses eram estereótipos grosseiros da vida nativa que tinham pouca relação com a realidade, mas o efeito retórico foi enorme). Na verdade, isso remeteu os nativos americanos a outra esfera de existência, exatamente como Fabian descreve, ao falar sobre as percepções europeias das sociedades africanas modernas. Em vez de serem interlocutores de debates sobre como as nações contemporâneas deveriam se comportar, eles se tornaram pouco mais do que emblemáticos de um "estágio" anterior da existência humana, antes do surgimento da agricultura (a qual, na verdade, muitos deles tinham), das cidades (que, ao que parece, eles tinham uma longa história de criação) e assim por diante. É um tipo de estratégia intelectual para silenciar ou, como se diz, neutralizar as críticas que vêm de fora e, em grande parte, tem funcionado.

Saša Savanović: Em um breve parágrafo, quase de passagem, você menciona um tipo curioso de regime de propriedade encontrado entre os grupos de língua iroquesa nos Estados Unidos da América, em que a propriedade da terra e o trabalho eram individuais, mas os produtos eram coletivos. Parece uma combinação muito interessante que, até onde eu sei, não tem nenhuma correspondência moderna. Como esse sistema funcionava?

David Wengrow:Na verdade, como penso que deixamos claro, nesses casos a terra era propriedade das famílias (e não de indivíduos), era trabalhada por mulheres, e seus produtos eram distribuídos entre grupos de mulheres. A instituição fundamental era a casa grande da família. Há pouco mais de um ano, fui convidado para visitar Wendake, que é o centro administrativo moderno da nação Huron-Wendat (nos arredores de Quebec), onde eles reconstruíram uma dessas grandes estruturas de casca de árvore e madeira para fins educativos. Conheci uma arqueóloga chamada Jennifer Birch que tenta reproduzir como esses sistemas funcionavam desde o século XVI, ou até antes. Basicamente, a casa grande abrigava várias famílias, cada uma com seus próprios cômodos, e as mulheres - principalmente as mães ou matriarcas do clã - definitivamente davam as ordens ali, com os homens em um papel subordinado. (A propósito, a casa grande fornecia o modelo social sobre o qual a Liga ou Confederação dos Haudenosaunee, muito maior, foi construída, e há um forte argumento de que a Liga foi uma das fontes de inspiração para a Constituição dos Estados Unidos). Como afirmei, as mulheres dessas famílias extensas detinham os direitos sobre a terra agricultável, bem como as sementes e os equipamentos agrícolas. A agricultura era organizada por chefes femininas, que eram eleitas, e produzia o trio de culturas chamado de "três irmãs" (milho, feijão e abóbora), além de colher frutas nativas e silvestres. As mulheres também cuidavam da economia doméstica, inclusive preparando e distribuindo alimentos cozidos para várias famílias e, quando necessário, para estranhos. Assim, elas também controlavam a alimentação básica, que viabilizava as atividades tipicamente masculinas, como os conselhos intergrupais, a caça e a guerra, o que também dava às mulheres um poder efetivo de veto, institucionalizado no poder das mães do clã de nomear os representantes do conselho e influenciar suas decisões. É importante ressaltar que as mulheres também controlavam a distribuição de carne, peixe e outros alimentos obtidos principalmente pelos homens.

Saša Savanović: Ao longo do livro você argumenta, e reforça seu argumento com vários exemplos, que as sociedades humanas têm alternado entre formas hierárquicas e igualitárias de organização há milênios, e que até mesmo os nossos ancestrais pré-históricos construíram e destruíram conscientemente suas organizações sociais. Em outras palavras, você mostra que a história humana está repleta de diversidade e complexidade na vida política. No entanto, em um determinado momento, todas essas várias configurações se transformaram em uma única, ou, como você diz, ficamos emperrados. Você poderia resumir seu raciocínio sobre como ficamos emperrados (e com o quê, exatamente)? 

David Wengrow: Ficar emperrado significa chegar a um estágio nos sistemas globais em que, como espécie, somos aparentemente incapazes de mudar, mesmo diante de um perigo fatal (corrosão da democracia, espiral de guerras, colapso climático iminente etc.). Outra forma de explicar isso pode ser o "realismo capitalista", como Mark Fisher o chamou, e a ideia de que basicamente não há alternativa para o sistema atual, apesar do fato de que, se simplesmente continuarmos do jeito que estamos, o próprio futuro da nossa espécie estará em perigo. Acho que poderíamos ter explicado mais sobre isso, mas achamos que era bastante óbvio. O que é muito menos óbvio é o processo pelo qual chegamos a esse ponto, em que achamos tão difícil até mesmo imaginar alternativas factíveis. A história padrão, que espero que tenhamos eliminado, sempre foi sobre coisas que supostamente aconteceram há milhares de anos: a queda do igualitarismo dos caçadores-coletores, a invenção da agricultura e da propriedade privada, as origens das cidades, que levaram ao surgimento do Estado etc. É uma história que transforma o presente em uma nota de rodapé do passado. Todos os limiares importantes foram supostamente cruzados há milênios, de modo que não há muito mais a ser decidido. Nada em nosso conhecimento contemporâneo do passado da humanidade sustenta essa narrativa, que se deve mais às especulações dos filósofos do Iluminismo do que a qualquer tipo concreto de evidência. Se tudo o que fizemos em O despertar servisse para esclarecer os motivos pelos quais ninguém mais deveria, mesmo com um conhecimento básico das provas científicas modernas, contar essa história, acho que seria o suficiente. Mas tentamos também formular algumas indagações mais pertinentes. Essencialmente, sugerimos que "ficar emperrado" se resume à perda do que chamamos de três formas elementares de liberdade humana: afastar-se, desobedecer e desmontar e redesenhar mundos sociais nas formas fundamentais a que você se refere. Essas são as ideias com as quais continuarei a trabalhar e, como eu disse, O despertar  foi basicamente uma tentativa de limpar um monte de lixo filosófico antigo relacionado às "origens da desigualdade", para que possamos fazer perguntas melhores sobre o curso da história humana. Foi mais ou menos até onde chegamos e, como expliquei no prefácio do livro, a nossa intenção sempre foi abordar essas novas questões em uma série de livros futuros.

Saša Savanović: Ao comparar as concepções europeias e norte-americanas de liberdade individual, você afirma que as primeiras, herdadas do direito romano, estão necessariamente ligadas a noções de propriedade privada. Na Roma antiga, a liberdade implicava no poder do indivíduo (ou seja, do chefe de família do sexo masculino) de dispor de sua propriedade - incluindo seus escravos, sua esposa e filhos - como bem entendesse. Além disso, como a verdadeira liberdade significava estar livre da dependência de outros seres humanos (exceto daqueles sob o seu controle), isso também implicava que as famílias deveriam ser mais ou menos completamente autossuficientes. Para mim, isso combina fortemente com o relato de Melinda Cooper sobre a família como o ponto de convergência entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo: com o neoliberalismo, a família nuclear (novamente) tornou-se o local preferencial de contração de dívidas, transferência de riqueza e cuidados, uma espécie de mecanismo de seguro natural e um imperativo econômico absoluto. Em outras palavras, Cooper argumenta que, embora o neoliberalismo queira estender as relações contratuais a todas as esferas da vida, ele precisa da família como seu alicerce não contratual. Como você vê o enraizamento das relações familiares como relações de propriedade que ocorre atualmente? 

David Wengrow: Na verdade, isso decorre perfeitamente do ponto anterior. Também percebemos que algo importante e muito difícil de reverter acontece quando as estruturas de cuidados - como lares, famílias ou instituições de caridade, como os templos - fundem-se com estruturas organizadas de violência e dominação: algo que frequentemente encontramos na própria base dos reinos, impérios e estados-nação. Caso contrário, ações de dano transitório transformam-se nos tipos de violência estrutural profunda, que geralmente são menos visíveis, mas que, na verdade, definem por que tantas pessoas hoje em dia são levadas a sentir que suas vidas e necessidades simplesmente não importam. Isso deve ter relação, de maneiras que estamos apenas começando a entender, com a perda dessas liberdades sociais básicas (afastar-se, desobedecer e assim por diante). Se você se pergunta como isso acontece hoje em dia, acho que um dos indícios mais claros é o nosso completo fracasso como sociedade em criar estruturas adequadas de cuidados para os idosos ou em valorizar adequadamente os profissionais que fazem esse tipo de trabalho, ou a maneira como se espera que os avós cuidem intensamente dos netos enquanto seus pais estão fora de casa tentando desesperadamente pagar as contas. É como se vivêssemos em um mundo imaginário em que envelhecer é algo que só acontece aos outros, o que eu acho que pode ser visto como um sintoma do tipo de processo que Melinda Cooper descreve. A falta de espaço para os idosos  na família nuclear, quando eles deixam de desempenhar funções "úteis”, e a remoção das pessoas vulneráveis em geral para instituições lamentavelmente precárias, se encaixam nessa ideia de que o lar está se tornando um reduto cada vez mais cruel para gerar valor econômico e a proteção da propriedade privada.

Saša Savanović: O livro também oferece uma comparação entre duas concepções de individualismo, a europeia, que trata de obter vantagem sobre os outros, e a americana, em que os indivíduos garantem uns aos outros os meios para uma vida autônoma. Você pode explicar melhor o que significa vida autônoma?

David Wengrow: Veja, as possibilidades são infinitas, mas o ponto principal aqui é que as pessoas no segundo tipo de sociedade permitem que as outras vivam sem medo de ficar desassistidas pelo caminho: sem medo de passar fome ou ficar sem teto. É o que David Graeber chamou de "comunismo de base", que existe em algum grau em todas as sociedades, mas que geralmente está reduzido a um mínimo absoluto na nossa realidade. É o tipo de coisa que os observadores nativos norte-americanos acharam tão escandalosa na forma como os europeus se comportavam nas primeiras cidades coloniais e, é claro, muitas sociedades indígenas enviaram representantes à Europa (há um livro novo muito bom sobre isso, de Caroline Dodds Pennock, chamado On Savage Shores). Como se pode aceitar que isso aconteça com o seu próprio povo?

Saša Savanović: Em seu relato sobre as culturas originárias norte-americanas vocês identificam três tipos de liberdade que serviram de base para a sua ordem social: liberdade para se afastar, liberdade para desobedecer e liberdade para criar ou transformar as ordens sociais. A condição mínima para que esta última seja possível é a liberdade de prometer algo. Qual é o grau de liberdade para se fazer promessas que temos hoje?

David Wengrow: Na verdade, como mencionei antes, aplicamos essas concepções de uma forma muito mais ampla. De fato, ousamos dizer que as três liberdades podem estar presentes - em vários graus e em várias configurações - em quase todos os lugares da história para além da sombra do Estado-nação moderno. Por outro lado, as Nações Originárias fornecem alguns exemplos muito impressionantes. Na história do meio-oeste dos Estados Unidos, por exemplo, a migração era frequentemente concebida como a reestruturação de toda uma ordem social, fundindo as três liberdades em um único projeto de emancipação: afastar-se, desobedecer e construir novos mundos sociais. O que hoje chamaríamos de "movimentos sociais" geralmente assumia a forma de movimentos bastante literais ao longo de uma região. Se essas liberdades existiram até relativamente pouco tempo entre os povos forçados a sobreviver aos efeitos da colonização e do genocídio, como poderíamos imaginar a maior parte da história humana antes da expansão do capitalismo racial e dos sistemas imperiais de dominação? Qual é a liberdade que temos para fazer promessas hoje? Bom, como David escreveu na conclusão do seu brilhante livro Dívida, a maioria das pessoas hoje em dia é prejudicada nesse aspecto pelo acúmulo de dívidas com entidades impessoais, às quais dificilmente poderão pagar de volta, e pela assimilação de um sentimento de culpa de que, de certo modo, são responsáveis por essa situação. É claro que isso tem enormes repercussões políticas, das quais aqueles que são amplamente favoráveis ao status quo devem estar bem cientes. Por que então forçar os jovens a trabalhar em tempo integral e assumir níveis absurdos de dívidas financeiras assim que saem da faculdade? Que tipo de promessas ou compromissos eles assumiriam entre si acerca do tipo de sociedade em que realmente querem viver? Concordo com David: simplesmente não sabemos ainda, e não saberemos até criarmos as condições para que essas liberdades possam existir. 

Saša Savanović: Em um dos capítulos finais, você apresenta uma proposta interessante sobre como reconceituar a noção de civilização. Como as mulheres se encaixam nesse quadro?

David Wengrow: Sim, eu tive a percepção de que o que normalmente chamamos de civilização é basicamente a apropriação do conhecimento das mulheres por homens que se engrandecem, que gostam de gravar seus feitos em pedra para a posteridade. É isso que compõe a maior parte das coleções dos museus. A questão, na verdade, vem diretamente do meu próprio ramo da arqueologia, que o torna muito sensível à questão do que deixamos para trás, do que sobrevive e do que não sobrevive nos registros das atividades humanas. Em geral, associamos o termo civilização a grandes descobertas e inovações, e também a ser, de certa forma, civilizado, entendendo-se como tal a bondade ou a hospitalidade mútua. No entanto, se observarmos os tipos de sociedades mais frequentemente mencionadas pelos historiadores como "civilizações", veremos que são exemplos como o da Roma Imperial, dos impérios Asteca ou Inca, ou o Egito Antigo: basicamente sistemas mantidos pela violência, a coerção e, quase invariavelmente, também pela opressão das mulheres. Na verdade, essas sociedades inventaram muito menos do que pensamos, porque tendemos a nos deixar iludir pelas pirâmides e outros grandes monumentos. De fato, como exploramos no livro, a maioria das importantes conquistas científicas em áreas como navegação marítima, matemática, metalurgia, uso de plantas medicinais e assim por diante antecedem os reinos e impérios em milhares de anos. Além disso, elas se espalharam por áreas enormes sem nenhum mecanismo central de organização ou governança vertical, basicamente por meio de práticas rituais e de hospitalidade compartilhadas. E acontece que muitas delas foram pioneiras no uso de materiais perecíveis - como fibras vegetais e têxteis - que são simplesmente muito menos visíveis nos registros arqueológicos, e que provavelmente foram preservados pela ciência feminina. Então: por que não chamamos isso de "civilização"?

Saša Savanović: De que forma a abordagem arqueológica, antropológica e histórica podem abrir espaço para pensarmos em nossos problemas e lutas contemporâneos? De onde pode vir algum tipo de "crítica originária", poderosa o suficiente para abalar os imaginários existentes e nos permitir criar novos?

David Wengrow: Falamos sobre a crítica dos povos originários no contexto dos encontros dos europeus com as Nações Originárias das Florestas Orientais dos Estados Unidos, porque elas são mais pertinentes às perguntas que estávamos formulando sobre por que os filósofos do Iluminismo se fixaram na questão  das “origens da desigualdade". Mas a crítica dos povos originários é, obviamente, uma crítica múltipla, que remonta aos primeiros encontros coloniais (o famoso ensaio de Montaigne sobre os canibais, por exemplo, escrito em 1580, envolve um comentário mordaz sobre as injustiças e os absurdos da sociedade europeia, vistos pelos olhos dos povos tupinambás, na região que hoje é o leste do Brasil). E ela avança no tempo até os dias atuais. Mas a crítica indígena também é a "arma de preferência". O alvo ou inimigo não é sempre o mesmo. É claro que há continuidades e relações históricas, mas não há razão para pensar que algo como, por exemplo, a crítica xamanística de Davi Kopenawa ao materialismo capitalista seja idêntica a uma crítica Yanomami do século XVIII. Imagine quanto mudou o papel da religião na justificação da hegemonia europeia, por exemplo. Sugerir o contrário é negar a inteligência dos críticos e sua capacidade de formar estratégias retóricas poderosas para os problemas e desafios de sua própria época. Isso não torna essa crítica menos autêntica, a menos que seu critério de autenticidade esteja tão completamente preso a outra visão de mundo que nenhuma forma séria de diálogo intercultural seja possível, o que, na verdade, é apenas outra maneira de desviar os não-europeus para o que Michel-Rolph Trouillot chamou de "o compartimento selvagem". Ao levar a sério essas críticas contemporâneas, ficamos atentos a como nossa própria intransigência está enraizada em estruturas de pensamento essencialmente míticas sobre as possibilidades humanas, com as quais todos nós crescemos, e sobre as quais comecei falando. A arqueologia e a história têm um papel fundamental a desempenhar na exposição dessas estruturas pelo que elas são, além de permitirem que alcancemos novos entendimentos das possibilidades humanas com base nas evidências do que as pessoas realmente foram e fizeram - incluindo as muitas outras maneiras pelas quais estabeleceram relacionamentos com o mundo não humano. Mas todas essas novas evidências científicas são de pouca utilidade, a menos que cultivemos a capacidade de entendê-las, o que significa ser capaz de sairmos das nossas estruturas conceituais mais conhecidas e nos permitirmos imaginar a vida social humana em estruturas diferentes daquelas nas quais fomos educados. Não estou falando aqui de algum tipo de exercício utópico ou especulação desvairada. Estou falando da antropologia que, apesar de toda a sua história problemática e das preocupações atuais, ainda pode contribuir de maneira singular para os projetos contemporâneos de emancipação. Acho que, em sua vida e obra, David Graeber demonstrou exatamente isso, e há um livro de ensaios que será lançado no final deste ano, com excelentes contribuições de vários antropólogos que tentam seguir o seu exemplo. O livro foi editado por Holly High e Joshua Reno e se chamará As If Already Free: Anthropology and Activism After David Graeber (tive o grande prazer de escrever a sinopse para a sobrecapa).

David Wengrow é um arqueólogo britânico e professor de Arqueologia Comparada no Institute of Archaeology, University College de Londres. Ele é coautor do texto fundamental The Dawn of Everything: A New History of Humanity (O despertar  de tudo: uma nova história da humanidade), finalista do Prêmio Orwell em 2022. Wengrow escreveu extensamente sobre desigualdade social e mudanças climáticas para o The Guardian e o The New York Times.

Image: The Indian in Transition by Daphne Odjig reflects the history of Indigenous people from before contact with Europeans, through centuries of colonization.

Available in
EnglishPortuguese (Brazil)Spanish
Authors
David Wengrow and Saša Savanović
Translators
Fábio Meneses Santos and Cristina Cavalcanti
Date
25.07.2023
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