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As notáveis semelhanças entre Guantánamo e os Tribunais Militares Israelenses

Os tribunais militares de Guantánamo e de Israel têm o mesmo objetivo: criar sistemas legais de violação de julgamentos justos, tortura e detenções arbitrárias e indefinidas.
Os dois tribunais militares defendem e rejeitam a lei ao mesmo tempo, sob o pretexto da excepcionalidade. O que devemos sempre lembrar é que esses sistemas são baseados no poder, não na adesão ao estado de direito. Regimes jurídicos temporários e excepcionais tornam-se os produtores de crimes de guerra e contra a humanidade.

Cercas altas unidas por correntes com arame farpado enrolado no alto cercam um complexo de escritórios temporários e unidades móveis para outros fins que formam os tribunais de guerra de Guantánamo. O público não tem uma imagem completa da base militar: o exterior simples e o interior com alta tecnologia são secretos. É oficialmente conhecido como "Complexo Expedicionário Jurídico" e chamado de "Campo Justiça" sem ironia. Autoridades governamentais dos EUA construíram a instalação para levar a julgamento indivíduos capturados, torturados e detidos sem prazo definido na Guerra contra o Terrorismo dos Estados Unidos. 

A advogada de defesa Annie Morgan explicou que “em qualquer tribunal estadunidense” ela teria acesso às informações básicas sobre o cliente, como registros médicos. Mas o tribunal especial de Guantánamo permite que o governo omita dos advogados de defesa qualquer informação considerada confidencial. Os responsáveis pelos interrogatórios da CIA torturaram seu cliente, Abd al-Rahim al-Nashiri, em locais desconhecidos por quase quatro anos, até sua transferência para Guantánamo, em 2006. Al-Nashiri foi sodomizado, além de sofrer simulações de afogamentos e execuções. Os trâmites anteriores ao julgamento, agora em seu 12º ano, persistem neste caso por estarem relacionados ao bombardeio do contratorpedeiro USS Cole, no qual os supostos crimes de guerra ocorreram um ano antes do presidente George W. Bush lançar sua Guerra contra o Terrorismo.

No Campo Justiça, o juiz militar, vestido com trajes civis, sentou-se indiferente na câmara improvisada. Soldados se alinhavam no perímetro da sala, nós à frente de alguns deles, enquanto assistíamos aos procedimentos de um tribunal por trás de três painéis de vidro à prova de som e um atraso de 40 segundos no áudio. Estive presente na semana de diligências como observadora da mídia, sujeita a regras rigorosas e protocolos em constante mudança.

Quando entrei pela primeira vez na base militar, caminhei por um labirinto de arame farpado, postos de controle e escritórios temporários, com a sensação de déjà vu. A cena em Guantánamo foi quase uma réplica de uma visita dois anos antes ao Tribunal Militar de Ofer, em Israel, na Cisjordânia ocupada. Lá, altas paredes de concreto cercam o local e os escritórios temporários, que são construídos com o mesmo material não permanente de Guantánamo, porém menores - como barracos. Em 2021, participei de uma sessão no julgamento do ativista de Direitos Humanos palestino Shatha Odeh, diretor do Comitê de Trabalhadores da Saúde.

Em Guantánamo, o fingimento sobressai. Eles têm tribunais de exceção, de fachada, mas com interior de alta tecnologia, trajes civis e longas batalhas entre defesa e acusação. Já os tribunais militares israelenses não dissimulam. Os julgamentos acontecem em trailers apertados e, no geral, duram apenas alguns minutos. A taxa de condenação é superior a 99 por cento.

Tanto os tribunais militares dos Estados Unidos quanto os de Israel são invenções de sistemas judiciais militares ad hoc, ou seja, com finalidade e prazos específicos. Eles têm diferentes lógicas de guerra – uma guerra global contra o terrorismo em oposição à ocupação militar estrangeira – mas os objetivos são os mesmos: criar sistemas legais a partir de violações de julgamentos justos, tortura, assim como detenção arbitrária e indefinida.

O paradoxo da legalidade e da ilegalidade é determinante. Os Estados Unidos e o Estado Judeu baseiam seu direito de criar esses tribunais em diferentes subconjuntos do direito internacional – as leis de conflito armado e ocupação, respectivamente – que permitem o uso de tribunais militares sob instruções limitadas. Pelo mesmo jogo de linguagem do Direito, eles são mantidos como sistemas “temporários” e “excepcionais”, daí os tribunais de fachada não permanentes. Mas nem um, nem outro sistema judicial tem prazo de validade. O sistema jurídico militar israelense, vinculado à ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza de 1967, tem mais de 50 anos, e as comissões militares de Guantánamo, uma criação pós 11 de setembro de 2001, ultrapassam os 20 anos. São inovações justificadas por fundamentos legais muito estruturados. Elas pervertem a lei nacional e internacional, criam novas categorias de exceção e, às vezes, até negam a lei por completo. Além disso, encontram inspiração uma na outra.

Jamil Dakwar, diretor do Programa de Direitos Humanos da American Civil Liberties Union (União Americana pelas Liberdades Civis, ACLU) e ex-advogado sênior do grupo de direitos palestinos Adalah, visitou a base militar Ofer pela primeira vez como representante do Adalah há mais de duas décadas. “O lugar parecia, tal e qual, com as primeiras tendas de Guantánamo”, disse ele, “sem as vendas, algemas e apetrechos de privação sensorial, mas eram imagens semelhantes às da criação de um campo de detenção construído do nada”.

A base de Ofer abriu em 2002, após a nova ocupação israelense das principais cidades palestinas na Cisjordânia durante a Segunda Intifada. Entre 2002 e 2005, as forças de ocupação prenderam dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças palestinas. Os oficiais construíram a base militar para abrigar os detentos palestinos, que agora eram tão numerosos que não mais cabiam nas prisões existentes. Com outros grupos de direitos humanos, o Adalah fez uma eficaz petição à Suprema Corte de Israel para permitir que observadores externos entrassem em Ofer. Eles contestaram a legalidade e as condições das bases militares, que Dakwar descreveu como "tratamento cruel e desumano, chegando à tortura em alguns casos".

Os tribunais recém-chegados estavam próximos ao campo de detenção, relatou Sahar Francis, diretora da Addameer Prisoner Support and Human Rights Association. A ocupação israelense alojou um grande número de detentos em jaulas ao ar livre e os levou para as sessões do tribunal realizadas em tendas. Os advogados dedicaram-se com firmeza para acompanhar o volume de casos. Por mais de 20 anos, Francis representou milhares de palestinos julgados pelos tribunais militares de Israel. Ela descreveu o aumento de ordens que criminalizaram quase todos os aspectos da vida dos palestinos. As forças de ocupação processam judicialmente tudo nos tribunais militares, de incidentes no trânsito à filiação a sindicatos estudantis e "incitação" nas mídias sociais. A jurisdição extraterritorial dos tribunais está associada ao povo palestino, não à terra: colonos israelenses ilegais na Cisjordânia são processados em tribunais civis israelenses. Francis viu Ofer se transformar em uma base permanente, prisão e o maior dos dois tribunais que, juntos, julgam milhares de palestinos todos os anos.

Em Guantánamo, as primeiras comissões militares ocorreram em 2004, no prédio de um antigo consultório odontológico. Os julgamentos foram uma "experiência fracassada desde o início", disse Dakwar, como representante da ACLU. Os Estados Unidos criaram as comissões para garantir condenações. Favoreciam a acusação ao criar novas categorias de denúncia, recorrendo a confissões extraídas por meio de tortura. O governo Bush argumentou que nem a Constituição, nem as Convenções de Genebra se aplicavam a Guantánamo, mas a Suprema Corte derrubou a primeira ordem oficial das comissões, levando o Congresso a legislar para o tribunal por meio da Lei de Comissões Militares, de 2006. Esta lei foi alterada em 2009, depois que outra decisão da Suprema Corte também a derrubou em parte. Cada mudança foi uma tentativa de reconfigurar um sistema que pudesse acomodar informações sigilosas e testemunhos coagidos. “Todos os casos apresentados às comissões têm por base a tortura”, relatou Morgan. Mais de uma década depois, sua equipe continua a defender um caso no qual as autoridades usam de maneira nítida, evidências de tortura.

Antes da invenção das comissões militares, os Estados Unidos tentaram mudar as definições de tortura de modo a adequá-las à lei. Em seu livro The War in Court: Inside the Long Fight Against Torture, Lisa Hajjar explica como a administração Bush recorreu a Israel para desenvolver justificativas legais para a prática da tortura. Segundo Hajjar, esse foi "o primeiro governo a reivindicar publicamente o direito de usar técnicas de interrogatório violentas como prerrogativa legítima para a proteção da segurança nacional".

Várias vezes o sistema jurídico israelense tem defendido e legitimado a tortura ao povo palestino. Práticas rotineiras empregadas por interrogadores – posições corporais de extremo estresse, espancamentos, privação de sono e condições desumanas – não foram mais consideradas como tortura; métodos mais violentos foram permitidos sob um cenário de “bomba-relógio” cada vez maior. Ao redigir os memorandos sobre tortura dos EUA, John Yoo tomou emprestada a linguagem da Comissão Landau de Israel, de 1987, que definia práticas de “pressão física moderada” que não constituíam tortura. Um memorando de agosto de 2002, do Departamento de Justiça, cita uma decisão da Suprema Corte do Estado Judeu de 1999, que criou uma “defesa de necessidade” que permitia métodos de interrogatório violentos. Estados Unidos e Israel elaboraram princípios duplos de proporcionalidade e necessidade para violar a proibição absoluta de tortura do direito internacional e imunizar os oficiais contra processos legais. A própria tortura transforma-se, então, em “informação sigilosa” em ambos os sistemas militares, consolidando a impunidade de todos os envolvidos.

Houve outras ocasiões em que a influência da defesa do judiciário passou dos Estados Unidos para Israel. Após o 11 de setembro, os EUA inventaram uma nova categoria de pessoa: o “combatente inimigo criminoso”, que não era nem civil, nem combatente e, portanto, podia ser excluído da proteção dos presos de guerra pelas Convenções de Genebra. O termo apareceu pela primeira vez numa ordem militar de novembro de 2001, autorizando a detenção permanente sem julgamento e estabelecendo as bases para as comissões. Dois meses depois, os EUA abriram Guantánamo. Cada nova lei das comissões renovou o estatuto único de “combatente criminoso” para permitir a detenção contínua e indefinida dos presos restantes.

Durante esse período, autoridades israelenses lutaram para justificar o encarcerameno ilegal de dois cidadãos libaneses por mais de 10 anos, como moeda de troca, depois de uma decisão da Suprema Corte do país contra a detenção. Assim que os EUA sistematizaram um novo estatuto especial, o Knesset de Israel aprovou a sua Lei dos Combatentes Criminosos com rapidez, em 2002, aplicando-a retroativamente ao caso dos reféns libaneses. Francis observou que a lei é “ainda mais draconiana” do que as leis de detenção administrativa que permitem a prisão de  indivíduos, quase todos palestinos, sem denúncia ou julgamento. Depois de 2005, a mesma lei tornou-se a base para a reclusão sem-fim de palestinos da Faixa de Gaza, os quais agora se enquadravam num estatuto jurídico distinto, ampliando o mosaico de regimes jurídicos que sustentam o sistema judicial militar do Estado Judeu.

Os regimes judiciais militares ad hoc, em princípio “temporários”, tornaram-se atípicos – muitas vezes denominados sui generis – no sistema jurídico internacional. Francesca Albanese, relatora especial da ONU para direitos humanos no Território Palestino ocupado desde 1967, considera a classificação enganosa. “Ao dar [à ocupação e aos tribunais] um rótulo sui generis excepcional, normalizamos o que deveria ser uma manifestação de ilegalidade”, disse. Uma ocupação de Israel com raízes profundas é ilegal, assim como um sistema judicial militar que serve como instrumento executivo para a subjugação do povo palestino.

Mesmo assim, ambos os tribunais defendem e rejeitam ao mesmo tempo a lei sob o pretexto da excepcionalidade. O que devemos sempre lembrar é que esses sistemas são baseados no poder, não na adesão ao estado de direito. Regimes legais temporários e excepcionais tornam-se os propagadores de crimes de guerra e também contra a humanidade. O Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária da ONU publicou, há pouco tempo, um apelo à libertação de Abu Zubaydah, um dos “eternos presos” torturados pela CIA. O grupo identificou violações sistemáticas em Guantánamo que “podem constituir crimes contra a humanidade”. Atualmente, a Addameer representa os processos de três crianças palestinas presas pelo Tribunal Penal Internacional.

Cinco mil palestinos ainda se encontram presos, entre eles mais de 1.000 por tempo indeterminado, sem acusação ou julgamento - o número mais alto desde 2003 -, em meio a uma repressão generalizada pelas forças de ocupação, que mataram pelo menos 156 palestinos nos primeiros cinco meses de 2023. As novas ordens militares proíbem até mesmo organizações de direitos humanos – incluindo a Addameer – que representam pessoas encarceradas. Numa ironia inesperada, são agora designadas “organizações terroristas”, sujeitas a detenção e acusação de seus membros pelos mesmos tribunais.

O judiciário tóxico da Guerra contra o Terrorismo dos EUA, do colonialismo e do apartheid em assentamentos israelenses continua a ser produzido, com implicações transnacionais. A administração Biden divulga intenção de fechar Guantánamo, mesmo enquanto as comissões militares avançam enfraquecidas por um legado de tortura e segredos oficiais. Restam 30  detidos, incluindo 16 elegíveis para transferência e três com pena de prisão perpétua. Quando saí de Guantánamo, uma nova sala de audiência num trailer de US$ 4 milhões estava em construção. A arquitetura física e jurídica de Guantánamo permanece como um aviso - ou, em mãos erradas, um modelo - para futuros governos dos EUA e do mundo.

Ayah Kutmah é escritora e pesquisadora, com enfoque em pessoas encarceradas e direitos humanos no Oriente Médio. Anteriormente, ela trabalhou  na Addameer Prisoner Support and Human Rights Association (Associação Addameer de Direitos Humanos e Apoio ao Detento).

Foto: Department of Defense / Wikimedia Commons

Available in
EnglishSpanishPortuguese (Brazil)
Author
Ayah Kutmah
Translators
Valeria Gauz and Yasmim Reis
Date
15.08.2023
Source
The NationOriginal article🔗
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