Social Justice

A água está ficando mais escassa, caminhões-tanque estão se multiplicando: Privatização da água e negligência do Estado em Kupang

A crise hídrica em Kupang evidencia as consequências devastadoras do acesso privatizado à água.
Quando começa a estação seca, entre maio e outubro, uma visão comum na cidade de Kupang, em Sonda Oriental (Nusa Tenggara Timur — NTT, em indonésio), é a longa fila de caminhões-tanque aguardando na estação de abastecimento de água potável. As frotas de caminhões compram água da estação, embora o proprietário da estação muitas vezes também opere seus próprios caminhões-tanque. O número de frotas tem aumentado constantemente a cada ano. A comercialização da água se tornou uma das principais atividades econômicas entre os mais abastados.

Examinando a crise hídrica na cidade de Kupang

Os serviços de abastecimento de água em Kupang são realizados por meio de perfurações subterrâneas em profundidades de 30 a 40 metros. O custo da perfuração varia de 25 a 30 milhões de rupias, incluindo a instalação de tubulações que conduzem ao reservatório. Por outro lado, uma única recarga para um caminhão-tanque com capacidade de 4.000 a 5.000 litros custa de 15 a 20 mil rupias. A água é então revendida a um preço de 100 a 200 mil rupias, dependendo da proximidade da casa do consumidor.

Essa dependência forçada da compra de água fez com que as despesas dos moradores disparassem. Em média, cada família gasta de 400 a 600 mil rupias por mês com água potável e saneamento, equivalendo a 6 por cento de sua renda, já que o salário mínimo local (Upah Minimum Provinsi ou UMP) em 2023 é de 2.123.994 rupias. A pergunta que fica é: como a população urbana das classes mais baixas, que não possui renda fixa, vai lidar com isso?

O fornecimento de água potável deveria ser responsabilidade do estado. Entretanto, em Kupang, a água é privatizada para fins lucrativos. Água, um recurso vital que deveria ser administrado para o bem comum, conforme determina a Constituição, ao invés disso, é controlada por comerciantes que a transformaram em uma mercadoria de alto valor de venda. Enquanto a água potável for tratada para fins de acumulação de capital, a crise da água continuará a ser um fardo para os moradores de Kupang ano após ano.

As estações do ano estão cada vez mais imprevisíveis e os desastres podem ocorrer facilmente. Enquanto os caminhões-tanque fazem seus percursos, os serviços de fornecimento de água do governo estão estagnados, com água encanada apenas uma vez por semana — quando muito. Enquanto isso, os hidrômetros continuam funcionando mesmo quando não há água chegando nas residências.

O clima de Kupang, caracterizado por secas prolongadas, agrava a crise hídrica durante a estação seca. As reservas de água subterrânea, reduzidas em razão da baixa quantidade de chuvas, e outros fatores como a pavimentação urbana, a redução das áreas verdes, o crescimento populacional e as mudanças climáticas, também agravam o problema.

Consumo de água dos moradores da cidade de Kupang

Kupang é composta por seis subdistritos e 51 vilarejos. Em 2022, a população da cidade chegou a 421.621, segundo a Agência Central de Estatísticas da NTT. Como é possível satisfazer as necessidades diárias de água destas centenas de milhares de pessoas?

Para aumentar a eficiência, a empresa estatal de água potável dividiu Kupang em oito zonas de distribuição de água, com base no tamanho e na distância da área. Ao comparar a capacidade de abastecimento de água com o número de consumidores, estima-se que a média de água potável distribuída pelo serviço do estado por consumidor seja de aproximadamente 3.654,25 m³/ano. Além dos serviços estatais, os moradores também utilizam 13 nascentes e poços, proporcionando uma capacidade de serviço de 296,26 litros por segundo.

No entanto, isso é insuficiente. Cerca de 35,8 por cento das famílias em Kupang enfrentam dificuldades para acessar água potável, especialmente durante a estação seca, com níveis de consumo que chegam a 50 litros por dia. Em média, os moradores da NTT esperam dois dias para receber 5 litros de água.

A crise hídrica atingiu seu pico em 2017, quando 48 dos 51 distritos enfrentaram escassez de água. O governo acabou distribuindo 100 tanques de água para resolver o problema.

O acesso à água potável na NTT varia a cada ano. O consumo baixo de água reflete o acesso inadequado, agravado pelo mau gerenciamento dos direitos à água. A província de Nusa Cendana ocupa a primeira colocação em baixa utilização de água potável na Indonésia. Além disso, a pesquisa de Theodolfi e Waangsir,“Analysis of Clean Water Needs in Kupang City based on Available Sources and Service Jones” revelou que algumas fontes contêm um nível médio de coliformes e E.coli de 45/100 mililitros. O problema, portanto, vai além do controle inadequado até a qualidade da água, levando a doenças entre os moradores, sendo agravado pela falta de saneamento.

Os recursos hídricos são insuficientes para o crescimento projetado da população de Kupang, que deve chegar a 601.263 pessoas até 2030, demandando 695,9 litros de água tratada por segundo. É pouco provável que a quantidade de água tratada produzida até 2030 atenda a essa necessidade. Se Kupang, como capital e centro socioeconômico da NTT, continua com dificuldades de acesso, governança, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), número de cidadãos instruídos, distribuição de riqueza e força de trabalho, o que acontecerá?

O direito do cidadão à água

A Constituição, especialmente o Artigo 33, determina que todos os recursos hídricos sejam controlados pelo Estado e usados para o benefício da população. Este princípio é reforçado pelo Artigo 7 da Lei de Recursos Hídricos, que afirma que os recursos hídricos não podem ser de propriedade ou controlados por indivíduos, comunidades ou empresas. Essas leis têm o objetivo de impedir o controle sobre recursos estratégicos para reduzir a desigualdade.

O controle absoluto dos recursos hídricos pelo Estado está alinhado com os princípios democráticos da Indonésia sob a Pancasila, adotada no sistema governamental. A soberania do Estado sobre os recursos naturais, garante que os interesses comunitários sejam protegidos da exploração. A tendência de se apropriar e explorar as fontes de produção é prevista pelo fato de haver uma norma padrão regulamentada, que também serve como orientação do estado.

Essa regulamentação progressista foi de fato anulada pelo estado, permitindo que indivíduos e grupos empresariais explorem os recursos hídricos. Desde que o fluxo de investimento foi aberto e apoiado pela lógica do livre mercado, que mina a soberania do Estado, as regulamentações se tornaram letra-morta, incapazes de se manifestar na vida dos cidadãos. Desde o início, as regulamentações foram desenvolvidas para evitar possíveis desigualdades que poderiam ocorrer se as fontes de produção ligadas aos meios de subsistência públicos não fossem distribuídas justamente. No entanto, a realidade é que os regulamentos existentes contrastam fortemente com a vida cotidiana.

Desafiando a desigualdade nos direitos à água

Em Kupang, a desigualdade no acesso à água resulta da negligência do Estado no cumprimento dos seus deveres e na privatização da água para fins comerciais. Embora alguns libertários possam argumentar que a responsabilidade do Estado é simplesmente fornecer sistemas e serviços, os comunitaristas afirmam que o estado, enquanto guardião da soberania do povo, é obrigado a garantir o cumprimento dos direitos fundamentais dos cidadãos, especialmente para os grupos marginalizados.

A contestação da desigualdade hídrica deve começar com um discurso sobre a obrigação do Estado de satisfazer as necessidades básicas dos cidadãos. Precisamos acabar com a exploração em curso que temos diante de nós para que o direito à água se torne uma realidade. 

Infelizmente, as discussões sobre o direito à água raramente entram em debates políticos e muito menos resultam em políticas públicas. Grupos comunitários críticos, que deveriam criar contra-narrativas e aumentar a conscientização, permanecem vítimas da exclusão do estado. Os cidadãos não reconhecem os direitos à água. Como resultado, a crise hídrica continua.

O povo não é incapaz de raciocinar ou de organizar protestos para exigir os seus direitos fundamentais. O que aconteceu foi que o Estado fomentou uma atitude de aceitação e resignação. Direitos básicos que deveriam ser mantidos pelo governo foram manipulados para se tornarem responsabilidade das pessoas. A prática de camuflar a responsabilidade reduziu o entendimento dos cidadãos a ponto de eles aceitarem que o direito à água não é da responsabilidade do Estado, mas um ônus individual. “Não proteste, apenas siga o que as autoridades dizem!” Isso se tornou a marca registrada de um bom cidadão.

Quando o princípio da acumulação na exploração dos recursos hídricos dá origem à competição pelo lucro, anulando os valores de uma justiça fundamental, o princípio da democracia — que garante que os direitos humanos sejam cumpridos para todos os cidadãos sem exceção — naturalmente entra em colapso. O processo de acumulação de recursos hídricos ocorre por meio da tomada de áreas estratégicas para a obtenção de água. Essa acumulação por meio da desapropriação é um processo contínuo, já que sua perpetuação garante a circulação regular dos lucros (Harvey, 2005).

No nível de políticas públicas, a água não é entendida como res commune ou um bem comum, mas no paradigma da economia de mercado como res individualis, ou seja, um bem privado que pode ser comercializado para obter o máximo de lucro. O que é ainda mais desanimador é que a acumulação de capital ocorre em tempos de crise. Não há consideração pelas consequências permanentes e futuras da exploração no processo de acumulação de lucros das fontes de água.

Ao iniciar um discurso que desencadeia um movimento crítico para exigir direitos, a construção do movimento enfrenta vários processos, tanto como produção quanto como expressão do capitalismo em curso (Petrus, 2015: 6). No caso de Kupang, alguns desses processos incluem o aumento de empresas de abastecimento de água, um regime que prioriza a infraestrutura em detrimento do desenvolvimento da superestrutura, e a banalidade do crime estatal ao negligenciar os direitos dos cidadãos por meio de apreensões desenfreadas de terras para fins de investimento.

Após reconhecer os vários fatores da desapropriação que levaram às crises prolongadas — por exemplo, crianças pequenas falecendo devido à falta de água e saneamento — torna-se urgente um novo movimento que critique e, em última instância, cumpra o direito à água na NTT. Se continuarmos parados, observando passivamente a exploração prevalecer sem nos envolvermos para esclarecer os outros, isso em si já é um crime. Até quando a população de Nusa Cendana continuará perecendo em meio a fontes de água abundantes que permanecem longe de seus assentamentos?


Bibliografia

Batubara, Bosman. 2017. Ekologi Politis Air: Akses, Eksklusi dan Inklusi. INSIST Press; Yogyakarta.

Harvey, David. 2015. Imperialism. Oxford: Oxford University Press.

Talan, John Petrus Talan. 2015. Masa Depan Tata Kelola Air, Tantangan dan Keberlanjutan. IRGSC: Kupang.

Theodolfi, Ragu dan Ferry WF Waangsir, “Analisis Kebutuhan Air Bersih Kota Kupang Menurut Ketersediaan Sumber Air Bersih dan Zona Pelayanan”, Media Kesehatan Masyarakat Indonesia, Vol. 10, No. 2, 2014.

Waishanti, Dewa Ayu Putu. “Mengapa Krisis Air dan Sanitasi selalu Terjadi di Nusa Tenggara Timur, juga di Pulau Jawa?” The Conversation, 2023 (accessed on 15 August 2023, at 19.00 WITA).

Foto: IndoProgress

Available in
IndonesianEnglishSpanishFrenchItalian (Standard)Portuguese (Brazil)German
Author
Ardy Milik
Translators
Lorena Nogueira, Clara Telles dos Santos and ProZ Pro Bono
Date
18.10.2024
Source
IndoPROGRESSOriginal article🔗
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