É impressionante observar o choque de muitas pessoas da comunidade de responsabilidade tecnológica em face do destaque que os donos e CEOs (diretores executivos) das empresas de tecnologia tiveram na posse do Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, acolhendo calorosamente a nova Administração e se alinhando aos valores MAGA (Make America Great Again – Tornar a América Grande Novamente), os quais um dia disseram rejeitar. Não está claro se isso é apenas ingenuidade ou falta de conexão com a realidade da ordem mundial do capitalismo de vigilância.
Essa súbita demonstração de simpatia a Trump por parte dos donos e CEOs das empresas de tecnologia não está necessariamente embasada em valores compartilhados ou alinhamento ideológico de longa data. Elon Musk é o braço direito e maior patrono do Presidente. O fundador e dono da Meta, Mark Zuckerberg, está claramente acuado. Enquanto isso, figuras como o CEO da Google, Sundar Pichai, e o CEO da Apple, Tim Cook, provavelmente estavam lá por motivações mais calculadas. No entanto, os gigantes do capitalismo de vigilância são todos movidos por uma agenda única: preservar e expandir seus impérios nos Estados Unidos e no mundo.
Durante anos, muitas pessoas no governo, na sociedade civil e na academia viam essas empresas como defensoras da liberdade de expressão, dos direitos humanos e da internet livre. Alguns até mesmo viam-nos como heróis dos valores progressistas. Muitos se associaram a eles e contaram com o financiamento deles, fazendo vista grossa aos excessos do modelo de negócio do capitalismo de vigilância construído sobre a coleta e a monetização irrestritas de dados. Ignoraram os laços estreitos dos bilionários com o poder político, as suas conexões com a Justiça e a Segurança Nacional, suas aventuras questionáveis na política e os vultuosos orçamentos com o lobby. E o pior de tudo é que eles dispensaram os que disseram que "o rei está nu".
As últimas semanas foram difíceis para os defensores das “Big Techs”. Eles — especialmente os chefes de Estado que assinaram acordos e posaram para fotos com executivos que, hoje, representam ameaças reais aos seus cidadãos, à democracia e à soberania digital — podem estar se sentindo iludidos e abandonados, e agora se questionam como chegamos aqui. Boas-vindas à dura realidade do dinheiro e da política!
A triste realidade é que muito do que aconteceu poderia ter sido evitado (pelo menos até certo ponto) se as lideranças de governos que sucumbiram à armadilha da transformação digital, juntamente à academia, os “think tanks” (instituições de pesquisa e análise de dados utilizados para formular soluções relacionadas às políticas públicas), os grupos de defesa e os políticos (particularmente democratas corporativos nos Estados Unidos e políticos neoliberais em outros países) tivessem reconhecido e admitido os riscos de empoderar as corporações que hoje criticam.
Houve muitas oportunidades perdidas de alcançar um progresso significativo frente ao poder reprimido das “Big Techs” e de abordarem desafios sociais essenciais, tais como privacidade, proteção online de crianças, direitos trabalhistas, regulação da inteligência artificial (IA) e a sobrevivência de pequenas editoras e da mídia local. O empenho legislativo e regulatório encontrou uma forte resistência de empresas de tecnologia e de seus lobistas, bem como da comunidade mais ampla de diretrizes tecnológicas, acadêmicos, “think tanks” e grupos de defesa. Boa parte dessa resistência foi orientada pelo interesse privado e pelas prioridades de financiamento — é muito difícil combater os impérios da tecnologia pegando dinheiro emprestado deles. Essas mesmas empresas de tecnologia, particularmente a Meta, já apoiaram e financiaram aquilo que o MAGA chama, hoje, de agenda "woke". Essas questões não servem mais aos interesses da Meta depois que o seu dono descobriu as vantagens da cultura bro e descartou as medidas de DEI (diversidade, equidade e inclusão). Mas não há motivo para preocupação, a Meta provavelmente continuará a financiar organizações para lidar com a “open washing” da IA, considerando as últimas prioridades corporativas de Zuckerberg.
Essas empresas alteraram estrategicamente as discussões sobre essas diretrizes, enquanto financiam organizações que conduzem pesquisa e defesa desde questões relativas à confiança e segurança até as questões éticas da IA. Enquanto o dinheiro escoava das ditas iniciativas "woke", da confiança e da segurança, e da ética da IA, o cerco fechava para discussões substanciais sobre o quadro regulatório ou para regulações obrigatórias e aplicáveis à tecnologia. É assim que essas empresas e seus executivos brilhantes e bem-vestidos — muitos dos quais foram atraídos diretamente de organizações da sociedade civil, dos governos ou de instituições acadêmicas de elite — moldaram o cenário regulatório por muitos anos.
Para muitos, este é precisamente um momento de dizer "eu avisei". Ativistas que se recusaram a fazer negócios com as “Big Techs” — muitos de comunidades marginalizadas ou geograficamente fora dos Estados Unidos e da União Europeia (UE) — sempre foram excluídos ou dispensados de discussões sobre diretrizes tecnológicas. Esperamos que este seja um momento de reflexão e autocrítica para que, em alguns anos, ao invés de falarmos "eu avisei", possamos dizer "nós vimos o que estava por vir e nos preparamos em conjunto."
Sem dúvida, os magnatas da tecnologia serão mais acolhidos do que nunca na administração Trump, pelo menos desde a era Obama. Essa coalizão trará pressões novas e imprevisíveis sobre os esforços nacionais de transformação digital, particularmente no Sul Global.
Tendo em vista o estilo transacional de Trump e a abordagem do "America First" (slogan político amplamente utilizado na campanha presidencial de Trump, que representa a priorização dos interesses econômicos nacionais dos Estados Unidos), as medidas externas e a agenda digital da sua administração provavelmente serão moldadas por coerção e tarifas econômicas. Não há muita dúvida de que os gigantes do Vale do Silício irão explorar à exaustão essa abordagem. Trump já criticou o tratamento "muito injusto" das empresas estadunidenses no mercado europeu, citando as dificuldades em trazer produtos para dentro da UE. As empresas de tecnologia provavelmente irão tirar vantagem das medidas comerciais para fortalecerem sua dominância em mercados emergentes, pressionando por desregulamentação e incitando a adoção generalizada de seus produtos e serviços no setor público. A dominância das empresas estadunidenses na inteligência artificial e sua estrutura no mercado global depende muito do seu controle oligopolista de extração de dados em larga escala, que se traduz como o controle global sobre a produção e o consumo de conhecimento.
Com essas mudanças radicais na agenda de desenvolvimento e comércio, os gigantes da tecnologia dos Estados Unidos estão bem colocados para solidificarem suas posições como fornecedores exclusivos da infraestrutura digital, gerindo economias inteiras de forma digitalizada e se tornando o fornecedor padrão de países ainda em processo de digitalização. As ambições deles não acabam aí. Eles pressionarão ainda mais pela integração vertical de seus serviços, o que possibilitará sua dominância regional e seu controle sobre economias digitais inteiras com o mínimo de regulação e obrigação fiscal, fazendo com que os governos destinatários arquem com os custos. Essa trajetória ameaça comprometer a segurança e a soberania tecnológica de forma local e nacional, deixando os países mais vulneráveis do que nunca às pressões políticas ou militares ligadas às infraestruturas digitais cruciais.
Este não pode ser um momento de passividade, mas, sim, de ação política ousada. Aqueles que se prepararem terão mais recursos para enfrentar os desafios que virão adiante.
Países que não têm uma diretriz industrial digital clara, no entanto, estarão mais vulneráveis à emergente "broligarquia" (uma nova ordem mundial dominada pelos "tech bros", os “bros” da tecnologia). Sem uma agenda proativa e objetivos bem definidos, esses países se arriscam a aceitar de forma impassível as diretrizes digitais, as imposições comerciais e as demandas por desregulação, sujeitando-se a obrigações comerciais de longo prazo e dependência tecnológica que dificultam esforços sustentáveis de desenvolvimento. Isso deixará os seus trabalhadores e consumidores vulneráveis, seus governos enfraquecidos e a sua soberania fragilizada. A janela de oportunidade para desenvolvermos medidas industriais independentes e estratégicas para a transformação digital está se fechando rapidamente.
Infelizmente, a passividade e o caos prevalecem na maioria dos países. Enquanto o espaço para pensar em diretrizes se esvai, muitos esforços existentes de reação da maioria global permanecem desorientadas. Os governos continuam confundindo diretrizes industriais digitais com a digitalização, o que leva à privatização desnecessária de espaços e serviços públicos, ao compartilhamento de dados públicos e à intensificação da dependência tecnológica e de infraestrutura de empresas de tecnologia do capitalismo de vigilância.
A sociedade civil permanece distraída com processos multilaterais e multissetoriais que não são vinculativos, os quais terminam em declarações que jamais serão lidas em Washington. Organizações que operam na órbita das Nações Unidas e de outros órgãos multilaterais parecem estar completamente alheias às mudanças das regras no jogo. Diferentemente do primeiro mandato de Trump, agora, as empresas de tecnologia têm uma carta na manga para potencializar o poder do lobby. Elas estão se posicionando estrategicamente mais próximas ao centro do poder. Para elas, não há muito valor no engajamento com discussões sobre diretrizes globais ou iniciativas das Nações Unidas para a IA, a governança digital e questões relacionadas. Elas podem, simplesmente, se desviar dessas discussões e focarem na imposição das suas exigências diretamente nas negociações comerciais.
Os anos seguintes serão cruciais para os países com baixo e médio rendimento. Eles têm uma escolha a fazer: podem aderir ao status quo, recorrendo à infraestrutura das “Big Techs” e intensificando a sua dependência (enquanto tomam pretensiosos passos em prol da governança digital ou da IA, o que não os levará a lugar algum); ou tomam ações ousadas para transformar suas diretrizes industriais nacionais para a construção de uma infraestrutura digital autônoma, bem como de ecossistemas de IA em prol das pessoas e do planeta.
Essa transformação não é fácil. Ela requer ação coordenada de diretrizes, uma abordagem governamental integrada, intervenções de diretrizes abrangentes, recursos financeiros substanciais, estratégias bem montadas e forte vontade política. Ao invés de se submeterem a estratégias globais uniformizadas e desconectadas, especialistas locais e acadêmicos devem trabalhar em conjunto com os governos para desenvolverem estratégias criativas e concretas para abordarem os próximos desafios, desde a redução da dependência da infraestrutura estrangeira até o fomento de uma integração vertical de diferentes tecnologias – além daquelas impostas pelo Vale do Silício.
Quanto mais cedo forem implementados esses esforços, melhor — visto que o espaço para a proposição de diretrizes está rapidamente diminuindo. No entanto, com medidas bem montadas e proativas, embasadas e apoiadas por forte motivação política, os países poderão se proteger de pressões externas e de futuras imposições comerciais. Quanto mais participativos e bem-informados são esses processos, é mais provável que seus resultados se tornem resilientes e sustentáveis.
Não há tempo a se perder. Os governos devem resistir à estagnação em face da incerteza desse novo panorama político, e devem agir decisivamente em resposta às mudanças das dinâmicas globais. Há uma janela crucial de oportunidade para tomar controle das próprias agendas industriais, a fim de se livrar dos atuais modelos econômicos extrativistas promovidos por agentes da política neoliberal e empresas de tecnologia do capitalismo de vigilância. Ao invés disso, os países devem buscar alternativas para uma verdadeira transformação digital — uma que coloque as pessoas e o planeta no centro do progresso econômico sustentável.
Enquanto o mundo encara uma incerteza sem precedentes, volatilidade e uma crescente ansiedade com relação ao futuro, a escolha é nossa: permanecermos parados enquanto observamos tudo acontecer e nos arrependamos depois; ou começarmos a nos preparar e, de maneira proativa, montamos boas estratégias para o que vem adiante.
Na Internacional Progressista, nós mobilizamos nossos membros ao redor do mundo para vencer a luta pela soberania tecnológica na era dos novos oligarcas da tecnologia.