Não há dúvida de que a atual pandemia, produzida pelo aparecimento e disseminação do novo coronavírus SARS-CoV-2, o agente causador da doença conhecida como COVID-19, expôs dramaticamente as grandes contradições do modelo hegemônico da civilização capitalista moderna com sua carga estrutural de individualismo, racismo, patriarcalismo, colonialismo e destruição da natureza. A preocupação com as questões ambientais há muito deixou de ser restrita a pequenos grupos de ativistas ou acadêmicos isolados. O meio ambiente tornou-se agora um assunto em campanhas eleitorais, programas governamentais e reuniões internacionais onde são tomadas decisões de impacto global.
Embora a pandemia pareça ter ofuscado a questão, ela está na verdade se mostrando como uma das faces da crise ambiental global. A destruição dos ecossistemas naturais para impor um modelo agrícola baseado na monocultura e na criação intensiva de animais, quantidades extremas de agrotóxicos e antibióticos, e orientado pelo negócio dos alimentos e não pelo direito à alimentação e à tomada de decisões soberanas sobre o que comer, aumenta a probabilidade de pandemias como a que estamos vivendo atualmente.
É hora de rever paradigmas e decidir se escolhemos uma "nova normalidade" baseada em um capitalismo mais humano, seja lá o que isso signifique, com modificações que evidentemente não mudarão nada, em outras palavras, uma "pós-normalidade"; ou se implementamos mudanças reais que impactem as estruturas de um modelo que levou ao grau de destruição que estamos testemunhando atualmente.
Neste artigo vou apresentar brevemente a evolução do paradigma ambiental internacional, usando a mudança climática global como um dos sintomas da crise do modelo civilizatório de maior cobertura da mídia, assim como o papel da Venezuela nessa evolução. Em seguida, apresentarei a proposta venezuelana de princípios e ações para enfrentar a crise, em particular para enfrentar a mudança climática, culminando com uma proposta de abordagem para a "nova normalidade" pós-pandêmica.
A questão ambiental foi formalmente colocada na agenda global em 1972, quando as Nações Unidas organizaram a Primeira Conferência sobre o Meio Ambiente na cidade de Estocolmo, Suécia, que resultou na criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Em 1979, um grupo de membros da Academia liderado pelo meteorologista sueco Bert Bolin, com o apoio da Organização Meteorológica Mundial (WMO), estabeleceu o Programa Mundial de Pesquisa Climática (WCPR), que estabeleceu os objetivos de determinar (a) se o clima estava mudando, (b) se era possível prevê-lo, e (c) se os seres humanos eram de alguma forma responsáveis pelo que estava sendo observado.
Em 1987, foi lançado o Programa Internacional Geosfera-Biosfera. Este programa de pesquisa global e regional procurou ligar os processos biológicos, químicos e físicos e suas interações com os sistemas humanos. Estabeleceu as bases do que poderia ser chamado de ciência de sistemas planetários, o que deixou claro que existem processos em nível global que devem ser estudados em conjunto, interdisciplinarmente e não isoladamente. Em 1988, o PNUMA e a WMO criaram o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), considerado o principal organismo internacional para a avaliação das mudanças climáticas. Em 1992 (20 anos após a Conferência de Estocolmo), as Nações Unidas organizaram a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Rio-92, que lançou as bases para três tratados que se tornariam a espinha dorsal da política ambiental global: a) a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), b) a Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD) e c) a Convenção de Combate à Desertificação. Mais especificamente, a UNFCCC (daqui por diante referida como a convenção) é parcialmente implementada pelo Protocolo de Kyoto acordado em 1997 durante a Terceira Conferência das Partes (COP3), a Emenda de Doha em 2012 (COP18) e o mais recente Acordo de Paris em 2015 durante a COP21.
O regime climático atualmente em vigor é o produto de um processo que pode ser dividido em três fases. A primeira fase, de 1990 a 1995, envolveu a negociação, adoção e entrada em vigor da Convenção. A segunda fase, de 1995 a 2004, das negociações que levaram ao Protocolo de Kyoto e sua implementação, e a terceira e última fase, que se concentra no desenvolvimento de uma abordagem global para limitar as emissões de gases de efeito estufa (GEE) de todos os países e que culminou na COP21 com o Acordo de Paris.
Esta divisão em três fases é, sem dúvida, uma simplificação de um processo que tem sido muito mais complexo. Na verdade, por trás disso esteve a pressão constante dos chamados países desenvolvidos para diluir e fazer desaparecer os princípios da Convenção. Isto é sobretudo verdadeiro no que diz respeito ao princípio das responsabilidades históricas, bem como ao das responsabilidades comuns, mas diferenciadas. Por exemplo, na COP 15 em Copenhague, um pequeno grupo de países industrializados tentou desfocar os princípios da Convenção, provocando o fracasso da conferência.
É importante mencionar o papel desempenhado pelos países agrupados na Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA) na oposição a um acordo que se pretendia impor sem o devido debate. Naquela época, o discurso de abertura do Comandante Hugo Chávez deu o golpe final às tentativas hegemônicas de impor uma agenda do norte global. A posição adotada e defendida pela ALBA abriu o caminho para o Acordo de Paris que conseguiu manter, embora debilitados, os princípios da Convenção.
Apesar do fracasso de Copenhague, isso marcou o início de uma mudança da abordagem " de cima para baixo" (as instruções são geradas da Cúpula para as Partes) para uma abordagem " de baixo para cima" (as Partes propõem seus próprios compromissos) refletida nas "Contribuições Nacionalmente Determinadas " (CNDs) apresentadas por cada país. Nessas CND, os países se comprometem voluntariamente a reduzir suas emissões e propõem uma série de medidas em nível nacional, tanto para mitigação quanto para adaptação. Esta última é considerada opcional dado que países como os EUA se recusam a incluir a adaptação como parte dos compromissos, já que isso envolveria a transferência de fundos para o sul global.
Vimos que as mudanças ambientais globais são sem precedentes na história da Terra e é um fato que há discussões no mais alto nível de várias propostas que permitiriam retardar essas mudanças e "suavizar" seus efeitos. É igualmente certo que quando falamos de mudanças ambientais globais, não estamos nos referindo apenas a mudanças no ambiente biofísico. Trata-se de mudanças que afetam profundamente a sociedade econômica, social, política e culturalmente.
Mas chegar a acordos entre países com diferentes graus de responsabilidade, com diferentes visões políticas, econômicas e até epistemológicas sobre a história e as causas das mudanças não é uma questão livre de tensão e conflito. Tais tensões vão além das que existem entre países e também ocorrem dentro de regiões, países e localidades. Existem tensões entre governos, mas também entre governos nacionais e locais, entre órgãos governamentais e movimentos sociais ou organizações locais. Todas refletem visões conflitantes sobre a sociedade.
A política ambiental da República Bolivariana da Venezuela tem antecedentes que remontam aos tempos do libertador Simón Bolívar, mas só no século XX foram sancionadas leis especiais para lidar com as questões ambientais. Os primeiros Parques Nacionais foram estabelecidos e uma estrutura institucional especial foi criada. Estas políticas não diferem das adotadas por outros países latino-americanos e basicamente internalizam os preceitos e orientações emanadas de organismos internacionais e multilaterais.
Em 1999, o Presidente Hugo Chávez iniciou um processo de transformação ao estabelecer a Assembleia Nacional Constituinte como um primeiro marco na refundação da República. A Constituição ali redigida e endossada pela consulta popular estabelece elementos cruciais como o conceito de democracia participativa e protagonista e o de corresponsabilidade. Na visão de Hugo Chávez, o objetivo é fortalecer o exercício da soberania sem procurar abolir a representação, mas sim articular a relação entre o poder constituído e o poder constituinte. Isto visa claramente resolver uma das tensões acima mencionadas entre órgãos estatais, movimentos sociais e organizações populares.
Em seguida, gostaria de destacar leis e artigos que mostram a orientação da política pública em matéria ambiental na República Bolivariana da Venezuela. Estes devem ser colocados no contexto dos conceitos acima mencionados de participação, protagonismo e corresponsabilidade das pessoas na gestão pública e na implementação de políticas públicas dentro de um processo de transformação social.
A Constituição da República Bolivariana da Venezuela (CRBV) está explícita nos artigos 127, 128 e 129 em relação aos direitos ambientais. Eles estabelecem que (i) é um direito e um dever de cada geração proteger e manter o meio ambiente para seu próprio benefício e para o mundo futuro, (ii) todos têm o direito individual e coletivo de desfrutar de uma vida e um meio ambiente seguros, saudáveis e ecologicamente equilibrados, (iii) é uma obrigação do Estado, com a participação ativa da sociedade, garantir que a população funcione em um meio ambiente equilibrado, (iv) o Estado desenvolverá uma política de planejamento territorial que leve em conta as realidades ecológicas, geográficas e culturais, (. (...) e (v) qualquer atividade que possa gerar danos aos ecossistemas deve ser acompanhada de avaliações de impacto ambiental. Estes artigos e outras seções da CRBV também estipulam que devem ser realizadas consultas populares a fim de tomar decisões que afetam os ecossistemas e impactam a população. Em outras palavras, a participação na tomada de decisões como um exercício pleno de soberania.
O objetivo da Lei Orgânica do Meio Ambiente é:
estabelecer disposições e princípios orientadores para a gestão ambiental no âmbito do desenvolvimento sustentável como parte do direito e dever fundamental do Estado e da sociedade de contribuir para a segurança e alcançar o maior bem-estar da população e a sustentabilidade do planeta, no interesse da humanidade.
Uma série de leis especiais subordinadas a esta lei regem assuntos específicos, tais como: Lei de Gestão da Biodiversidade, Lei de Florestas e Manejo Florestal, Lei de Sementes, Lei de Água, Lei de Manejo Integrado de Resíduos, Lei de Substâncias Perigosas, Materiais e Resíduos etc.
O objetivo aqui não é apresentar uma compilação exaustiva do corpo jurídico que rege as questões ambientais na República Bolivariana da Venezuela, mas mostrar que um compêndio jurídico foi desenvolvido e está em constante revisão, e que a participação corresponsável do povo está sempre presente neste corpo jurídico. Apesar disso, a mudança ambiental global só aparece indiretamente ou implicitamente em todas essas leis, e não foi até a aprovação do Plano Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico 2012-2019 (Plano Pátria) que o tema da "mudança climática" foi explicitamente mencionado. Desde então, o Plano Pátria foi convertido em lei da República e, em 2019, foi prorrogado até 2025.
O Plano Pátria estabelece cinco objetivos históricos, cada um com objetivos nacionais, estratégicos e gerais. Embora os cinco objetivos históricos se sobreponham, o quinto objetivo aqui destacado diz o seguinte:
Contribuir para a preservação da vida no planeta e para a salvação da espécie humana.
Dentro deste objetivo histórico estão incluídos, entre outros, os seguintes objetivos nacionais:
Objetivo Nacional 5.1. Contribuir e promover o modelo econômico produtivo ecossocialista baseado em uma relação harmoniosa entre o homem e a natureza que garanta o uso e a exploração racional, ótima e sustentável dos recursos naturais, respeitando os processos e ciclos da natureza
Objetivo Nacional 5.2. Proteger e defender a soberania permanente do Estado sobre os recursos naturais para o supremo benefício de nosso povo, que será seu principal garantidor.
E,
Objetivo Nacional 5.4. Contribuir para formar um grande movimento global para conter as causas e reparar os efeitos das mudanças climáticas que ocorrem como consequência do modelo capitalista predatório
Este último inclui a luta pela preservação, respeito e fortalecimento do regime climático formado pela Convenção e seu Protocolo de Kyoto, a oposição aos mecanismos de mercado, o desenho de um plano de mitigação como contribuição nacional voluntária e o desenho de um plano nacional de adaptação.
Este aparato jurídico e político lançará as bases para a posição que a Venezuela tem mantido na arena internacional, particularmente nas negociações sobre a mudança climática.
Os CNDs da Venezuela desenvolvem os princípios nos quais se baseia a posição do país em cenários internacionais. Eles estão enraizados no CRBV e em uma série de elementos políticos refletidos nas políticas públicas, não sem tensões e contradições. A contribuição começa reconhecendo as lutas passadas pela independência e deixando claro que os ideais de justiça, liberdade, democracia e inclusão guiam a política da nação, assim como sua posição anticolonial e anti-imperialista. O documento expressa a convicção de que valores capitalistas como o consumismo, o individualismo e o crescimento ilimitado são a base da atual crise ambiental, mas também política e social da civilização. O documento continua afirmando que:
Os valores capitalistas devem ser substituídos por valores baseados na justiça, solidariedade, vida comunitária, harmonia com a natureza e respeito a seus ciclos, respeito aos valores e conhecimentos indígenas e camponeses. Em outras palavras, eles devem ser substituídos por valores ecossocialistas
A luta contra a mudança climática é, portanto, uma luta entre dois modelos e visões de sociedade. Por um lado, a luta contra a mudança climática,
Os países desenvolvidos procuram perpetuar os sistemas hegemônicos que os favorecem, fortalecendo os padrões de consumo, produção, controle, dominação e mercados que enriquecem suas elites dominantes(... e por outro lado...) os países em desenvolvimento exigem o direito de erradicar a pobreza e escolher suas próprias formas de desenvolvimento sem sofrer as consequências e carregando o fardo gerado pelos níveis insustentáveis de consumo dos chamados países desenvolvidos.
Em seus CND´s, a Venezuela insiste que a luta contra a mudança climática deve ser baseada em estratégias eficazes, mas também justas e equitativas, que devem considerar as responsabilidades históricas e contribuir para reduzir (não aprofundar) as iniquidades que afetam muitos países e setores sociais. A ênfase é dada aos compromissos e princípios adquiridos pelas partes signatárias da Convenção, em particular aqueles referentes às responsabilidades comuns, mas diferenciadas. É dada maior ênfase à prioridade da erradicação da pobreza para os países em desenvolvimento e - conforme ratificado na Rio + 20 - ao direito de cada país de decidir suas próprias formas e maneiras de alcançar o desenvolvimento sustentável. O direito à autodeterminação está sempre presente na posição do país.
Outro elemento importante estabelecido nestes CND é que as pessoas, representadas em seus governos, são reconhecidas como entidades legítimas para mediar e equilibrar os diferentes setores e interesses dentro de seus países, e não as empresas privadas. Este foi um elemento de debate acalorado durante a COP21 e continua a ser uma fonte de controvérsia nas negociações atuais. É também neste contexto que a Venezuela se opõe a transformar as discussões em rodadas de negócios para discutir mecanismos de mercado que eventualmente se tornarão espaços para o enriquecimento das empresas privadas e contribuirão pouco ou nada para neutralizar os efeitos da mudança climática.
Assim, podemos resumir a posição da Venezuela nas negociações sobre a mudança climática nos seguintes pontos:
Neste contexto, a Venezuela realizou uma série de ações que estão estabelecidas em seus CNDs. Algumas dessas ações não haviam sido apresentadas formalmente no contexto da luta contra a mudança climática antes, embora tenham um impacto direto ou indireto sobre ela e sejam apresentadas nos CNDs.
Embora a Venezuela seja responsável por apenas 0,49% das emissões globais de gases de efeito estufa (0,18 Gton CO2/ ano) até 2010, ela se comprometeu com um Plano Nacional de Mitigação (estabelecido no Plano Pátria) que envolve a redução das emissões em 20% até 2030, em comparação com o "cenário inercial" no qual nenhuma ação de mitigação é tomada. É importante observar que os valores de emissões produzidos pela Venezuela são tão baixos que se enquadram na margem de erro dos valores estimados para os Estados Unidos, a União Europeia ou a China. No entanto, isto não fez com que a Venezuela não tomasse medidas contra a mudança climática. Algumas ações já em andamento no contexto das políticas de mitigação são:
Com relação aos planos de redução de risco e adaptação, os seguintes poderiam ser mencionados como exemplos:
Estes são exemplos de leis e ações específicas resultantes de compromissos adquiridos em cenários internacionais combinados com as diretrizes que têm direcionado as mudanças em curso no país por quase 20 anos. Um processo que, apesar do cerco imperial e do bloqueio ilegal a que fomos submetidos pelos Estados Unidos, está sendo mantido por esforços gigantescos. É por isso que a Venezuela está tomando medidas para proteger suas florestas, decretando Parques Nacionais (uma diretriz da Convenção sobre Diversidade Biológica), mas também promovendo um desenvolvimento florestal alternativo que respeite as culturas locais. Fazemos isso fora da estrutura de programas com uma visão neoliberal como REDD+, e usamos meios que estão mais alinhados com a transição para uma sociedade ecossocialista como ditado pelo Plano de Desenvolvimento Econômico e Social. É uma mistura de ações que não escapam das tensões internas e que, no caso da Venezuela, poderíamos atribuir àquele momento em que - parafraseando Gramsci - o velho está morrendo e o novo não pode nascer.
Temos testemunhado intensas negociações para estabelecer mecanismos para a implementação da Convenção CC através do Acordo de Paris, onde até mesmo os princípios da Convenção têm sido questionados e onde "oportunidades de negócios" parecem se impor aos interesses da Mãe Terra e, portanto, da própria Humanidade. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos afirmou que não se pode resolver um problema moderno aplicando soluções modernas.
Esta breve história que contei mostra como, a partir de espaços multilaterais, estão sendo feitas tentativas para mitigar a mudança climática sem questionar suas causas estruturais, resultando em uma situação que só está piorando. Da Venezuela, em meio às inevitáveis contradições e sob o cerco internacional liderado pelo imperialismo norte-americano, estão sendo feitas tentativas de agir localmente com uma visão ecossocialista alternativa, ao mesmo tempo em que se levam essas posições para os espaços multilaterais. Em uma situação de cerco imposta por medidas coercitivas unilaterais dos EUA e seus aliados, que claramente violam o direito internacional e minam os fundamentos do multilateralismo, a luta da Venezuela é ainda maior e merece os enormes esforços para manter o trabalho que nos permitirá alcançar os objetivos propostos, ainda mais quando a pandemia produzida pela COVID19 afetou de tal forma a dinâmica de países e povos inteiros em escala global.
No momento, muito se fala sobre o pós-pandemia e o mundo que está por vir. No início, vídeos de animais vagando pelas ruas vazias, golfinhos se aproximando das costas e entrando nos canais de Veneza, pumas nas ruas de Santiago do Chile, javalis vagando pelos subúrbios de várias cidades espanholas se espalharam pelas redes sociais e se falou de uma redução nas emissões de gases de efeito estufa em nível global. Então, apareceram aqueles que, com ingênuo otimismo, disseram que é realmente possível deter a poluição, mitigar a mudança climática, diminuir o ritmo e alcançar um mundo mais harmonioso.
Esta visão "ingênua" apresenta a possibilidade de mudar o mundo sem mudar nada. Discursos disfarçados de progressistas aplaudem as medidas do Fundo Monetário Internacional ou as declarações de líderes que promovem abertamente o neoliberalismo quando falam em aumentar os impostos sobre as pessoas mais ricas ou melhorar o acesso aos cuidados de saúde. A verdade é que a paralisação das atividades industriais em nível global só atingiu uma redução fugaz de 17% nas emissões diárias durante o mês de abril e muitos indicadores relacionados à mudança climática estão atingindo valores sem volta, como a elevação do nível do mar ou o grau de derretimento do permafrost na Sibéria. E este é apenas um aspecto da crise socioambiental que se manifesta de muitas outras formas, como a perda acelerada da biodiversidade, a ameaça aos sistemas de conhecimento indígenas e a projeção de que os mares terão mais plástico do que peixes até 2030.
O capitalismo, como sistema e modelo, não chegou a um impasse. A mudança que temos que fazer deve ser estrutural se quisermos salvar a humanidade, e as medidas tomadas devem ser abrangentes e verdadeiramente transformadoras. Vijay Prashad, em nome do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, propôs recentemente 10 pontos ou linhas de ação para construir um mundo pós-COVID-19. Esta proposta foi feita no âmbito da Conferência de Alto Nível sobre Economia Pós-Pandêmica organizada pela Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América, moderada desde Caracas pelo presidente venezuelano Nicolás Maduro. A proposta inclui: 1. atacar a pandemia, 2. expandir a solidariedade médica, 3. criar patrimônio intelectual comum, 4. cancelar dívidas externas, 5. expandir a solidariedade alimentar, 6. melhorar o setor público, 7. implementar impostos sobre fortunas, 8. estabelecer controles sobre o capital, 9. comércio regional não baseado no dólar, e 10. centralizar o planejamento através da descentralização da ação pública.
Assim como não se acabará com o racismo colocando alguns poucos policiais racistas na prisão, não se controlará a mudança climática ou a(s) pandemia(s) com medidas pontuais que buscam apenas amenizar as causas estruturais do problema. A proposta do Instituto Tricontinental é merecedora de debate. São propostas nascidas do Sul global, baseadas em experiências geradas no Sul global. Tanto a mudança climática quanto a pandemia são problemas globais e exigem ações abrangentes, solidariedade, trocas justas e relações internacionais que são mantidas dentro do marco da legalidade internacional e do respeito à livre autodeterminação dos povos. A proposta da Tricontinental vai nessa direção e é isso que os movimentos progressistas do mundo devem visar.
Devemos estar atentos às propostas geradas pelo Norte global que negam as experiências do Sul e tentam disfarçar como progressistas as posições daqueles que são parte do problema e realmente representam as estruturas do poder neoliberal. Isto inclui propostas feitas por aqueles do Sul global que, de um ponto de vista supostamente neutro, estão tentando promover reformas que acabarão favorecendo o poder capitalista neoliberal. A pandemia nos colocou em uma situação que pode muito bem levar o mundo ao fascismo e ao nacionalismo extremo ou a um mundo melhor de igualdade e relações respeitosas entre os povos. É uma época de definições e o movimento progressista tem uma grande oportunidade de promover e possibilitar as transformações necessárias que nos conduzirão àquele outro mundo melhor com o qual todos sonhamos.
Guillermo R Barreto é um biólogo venezuelano. É professor da Universidade Simón Bolívar envolvido em questões ambientais, gestão da biodiversidade, gestão da ciência e tecnologia e pensamento descolonial.
Foto: Gosia Malochleb / Flickr