Meredith Tax: Rumo a uma Política Externa Internacional

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Plano de três pontos destinados ao movimento internacional progressivo, enquanto este trabalha em questões de política externa.

A barragem está a romper-se

Chegámos a um ponto de viragem na história da humanidade. A emergência climática exige que passemos imediatamente de uma economia baseada nos combustíveis fósseis para uma economia que seja ambientalmente sustentável. Isto irá exigir mudanças radicais a nível económico e político. A crise climática não é a única crise que enfrentamos. A epidemia da COVID-19 já causou mais de 10 milhões de casos e ainda não temos consciência da crise que está para vir. É provável que a depressão económica resultante da epidemia venha a condenar milhões à fome, ao desemprego e a ficarem desalojados.

O coronavírus também revelou o racismo estrutural e o sexismo subjacente a tantas sociedades. Na Índia, o confinamento destruiu os sonhos de independência económica de toda uma geração de mulheres, que se mudaram do campo para a cidade para terem acesso a trabalho remunerado; agora foram reconduzidas de volta para as suas aldeias, onde enfrentarão a fome e serão forçadas a casar. Nos EUA e no Reino Unido, os/as "trabalhadore/a(s) essenciais" médico/a(s), enfermeiro/a(s), auxiliares, empregado/a(s) de limpeza, e trabalhadores de serviços alimentares revelaram ser sobretudo “negro/a(s)” e “mestiço/a(s)”, frequentemente imigrantes ou mulheres, muitos em empregos não sindicalizados a receberem salários abaixo da média. A taxa desmedida de doença e morte destes trabalhadores — sem condições para se confinarem em casa, por terem de trabalhar — veio revelar o racismo embutido na arquitectura das economias avançadas.

O policiamento brutal que impõe este racismo estrutural acarreta um custo terrível nas vidas humanas, como demonstraram as manifestações de Black Lives Matter em todos os continentes.

As alterações climáticas, a COVID, e o colapso económico estão a causar um stress tremendo num sistema que já tinha atingido o seu ponto de ruptura. No capitalismo tardio, a integração económica global baseada na ideologia do mercado livre levou a uma riqueza obscena para muito pouco/a(s) e a uma pobreza e incerteza desesperante para a maioria. Os políticos centristas, que aplaudiram as soluções de mercado e o crescimento económico desenfreado, não estavam preparados para a cascata de crises que agora enfrentamos. A principal solução para os problemas do capitalismo tardio tem sido a austeridade e a destruição das redes de segurança social; a sua resposta às alterações climáticas tem sido lenta e inadequada; e muitos não se opuseram fortemente à ascensão dos movimentos de direita.

As decisões que moldam o mundo de hoje são sistematicamente tomadas mais por empresas multinacionais do que por governos ou elites nacionais. Relutantes a renunciar ao poder, alguns membros destas antigas elites começaram a apoiar políticos de direita, cujo apelo se baseia numa mistura perigosa de racismo, fundamentalismo religioso, ódio às mulheres e às pessoas gays, e desconfiança sobre a diversidade cultural dos migrantes. Com o apoio destas elites e organizações de direita religiosa, um novo eixo de políticos de extrema-direita, que inclui Bolsonaro, Erdogan, Johnson, Modi, Netanyahu, Orban, Putin, e Trump, chegou ao poder.

A maioria destes políticos de extrema-direita não estão muito interessados em governar; o seu principal objetivo é deter o poder e arrecadar benefícios públicos. Para o fazer impunemente, desmantelam sistemas destinados a garantir prestação de contas; substituem os chefes dos órgãos administrativos do Estado pelos seus comparsas; e constroem regimes de compadrios, familiares e membros tendenciosos do partido que operam paralelamente ao Estado. Trump mobilizou guardas prisionais federais para policiar uma manifestação em frente à Casa Branca, transformando-os numa força policial privada, que ele poderia usar para contornar a polícia de segurança pública. Modi quer criar umaHindu rashtra / nação Hinducom o objectivo de substituir o estado secular pelo seu próprio sistema judicial independente, para melhor roubar bens e entregá-los a compadrios que poderão assim mantê-lo no poder. Tais regimes paralelos resultam em estados ocos e incapazes, sem legitimidade política e sem capacidade para lidar com crises graves.

A fim de construir uma base que os mantenha no poder enquanto constroem estes regimes paralelos, estes líderes de direita têm como alvo minorias, migrantes, mulheres e pessoas LGBT; invocam a religião; e vão minando direitos democráticos básicos como o voto, a assembleia, e a liberdade de expressão. Através do constante encorajamento do fanatismo e da perseguição, apoiados por apelos à religião, atacam a própria ideia de universalidade dos direitos humanos. Uma vez que lhes falta a legitimidade, que advém da liderança concedida para resolver problemas sociais reais, têm que governar pela força, medo e engano, dependendo dos militares, da polícia, do apoio dos fundamentalistas religiosos, e dos meios de comunicação dominados, para construir uma barreira suficientemente forte para conter a dissidência popular.

Mas a água está a subir em todo o mundo, e a represa não aguenta. Nos últimos dez anos, a barragem desenvolveu fissuras num local após outro: as revoltas da Primavera árabe, as greves dos coletes amarelos franceses, a revolta de Hong Kong, as revoluções em curso na Argélia e Sudão, as manifestações a nível nacional para defender a constituição secular e proteger a cidadania das mulheres muçulmanas na Índia, e por aí adiante. A enorme vaga de manifestantes da Black Lives Matter nos EUA chegou mesmo a pequenas cidades rurais onde quase todos são brancos. E estes protestos anti-racistas tornaram-se globais. Pelo menos por um momento, a barragem rebentou verdadeiramente.

O que acontece quando uma barragem rebenta? Podem as peças ser forçadas ou coladas de novo? Durante quanto tempo? Será que a água que transborda vai inundar as cidades e matar milhares? Ou a água pode ser organizada e canalizada para irrigar terra seca? A resposta depende de nós, os povos do mundo. Precisamos de nos organizar suficientemente bem para manter a água a fluir a um ritmo controlável, até chegarmos ao ponto em que, finalmente, como prometido pelo Dr. Martin Luther King Jr., a justiça corra como um rio e a integridade como uma poderosa corrente.

Rojava

Um dos locais onde a barragem se rompeu foi a Síria, quando em 2011 uma revolta civil contra a ditadura de Assad levou a uma guerra civil. À medida que a guerra deflagrava, a área maioritariamente curda no nordeste da Síria declarava-se uma região autónoma. O nome oficial desta região é Administração Autónoma do Norte e Leste da Síria (AANES), mas é usualmente chamada Rojava. É um lugar maravilhoso. Em 2014, na batalha de Kobane, os/as seus/suas combatentes cercados e mal equipados tornaram-se os/as primeiros/as no Médio Oriente capazes de impedir um ataque concertado do ISIS.

Como é que Rojava foi capaz de derrotar o ISIS? Uma das razões é por integrarem plenamente a liderança feminina a todos os níveis, desde a comunidade do bairro até ao comando militar de topo, e deste modo foram capazes de tirar partido da força de toda a sua sociedade. O povo de Rojava também tinha algo porque lutar: a sua própria democracia de base e um sistema a que chamam "confederalismo democrático", baseado na ecologia, pluralismo étnico, democracia directa, a separação da religião da política, e a plena participação das mulheres.

Embora a auto-administração da Rojava desempenhe muitas funções normalmente atribuídas ao Estado, é explicitamente um sistema não estatal, baseado na democracia directa e em assembleias locais, com estruturas paralelas para tudo o que diga respeito às mulheres, e inúmeros outros pesos e contrapesos. As décadas em que as elites políticas eleitas serviram principalmente os ricos, desgastaram as pretensões dos políticos de nos representarem a todos nós; como resultado, o Estado-nação deixou de ser visto como natural e inevitável, e um número crescente de pessoas começa a olhar para formas alternativas de organização social. Um dos lugares que está sob observação é Rojava.

Planeamento estratégico

Propomos um plano de três pontos para o movimento progressivo internacional enquanto trabalha nas questões de política externa: construção de assembleias e organizações populares democráticas, mantendo uma abordageminside-outside(de-dentro-para-fora) às políticas do Estado, e desenvolvendo uma parceria estratégica com o movimento feminista. Com esta abordagem combinada, acreditamos que a esquerda pode tornar-se suficientemente forte para eventualmente derrotar a direita.

1) Num período em que a democracia está a ser atacada, devemos reforçá-la através da construção de estruturas políticas alternativas baseadas na participação directa da comunidade. Estas poderiam começar com assembleias populares baseadas em políticas transformadoras radicais, como as de Rojava e a de Chiapas. O ideal seria que tais assembleias crescessem organicamente a partir das lutas comunitárias e desenvolvessem os seus próprios métodos de governação e autodefesa. Trabalhando em conjunto com movimentos populares e organizações da sociedade civil, as assembleias populares podem responsabilizar o Estado tanto a nível local como nacional, e insistir para que os seus delegados sejam eleitos democraticamente e respondam às necessidades do povo. Na plenitude do tempo, as assembleias unidas podem eventualmente tornar-se um contraponto, talvez mesmo um sucessor, para o Estado-nação. Tal como em Rojava, as assembleias deveriam ser espaços comunitários diversos, pluralistas e seculares, com um muro entre religião e política para assegurar que as mulheres e os LGBT possam participar como iguais, e que os direitos dos agnósticos e das pessoas de religiões minoritárias sejam protegidas. As assembleias populares e as organizações da sociedade civil podem desenvolver as suas próprias relações externas interpessoais. Estas devem implicar ajudar movimentos democráticos a prevalecer contra regimes autocráticos, e dar apoio prático e político suficiente para permitir que lugares como Rojava se tornem santuários dos direitos humanos para dissidentes de outros lugares.

Ao trabalhar para uma Política Externa Popular, os/as progressistas devem enfatizar a necessidade de colaboração multilateral para lidar com as alterações climáticas e as epidemias. Devemos proceder com base em princípios comuns de solidariedade, direitos humanos para todas as pessoas, e igualdade entre nações, independentemente da sua dimensão, riqueza, força militar, ou região. Podemos concordar sobre a necessidade de construir uma economia mundial sustentável que não esgote ainda mais os recursos limitados da Terra, e desenvolver programas para assegurar que as nações e corporações não tenham igual responsabilidade pela crise climática, e que aquele/a(s) que mais lucraram tenham que reparar os danos que causaram.

2) Em relação ao Estado-nação e à política eleitoral, devemos seguir uma estratégia de dentro para fora. Isso significa tirar partido de quaisquer “pontas de lança” que os nossos membros consigam conquistar, no governo local e nacional e, ao mesmo tempo, construir assembleias, organizações da sociedade civil e movimentos suficientemente fortes para manter os/as representantes eleito/a(s) responsáveis, e suficientemente ágeis para se moverem em novas direcções. Como os Estados nunca foram dirigidos em benefício da maioria do seu povo, tivemos de lutar arduamente para ganhar programas como por exemplo a segurança social nos EUA e o Serviço Nacional de Saúde no Reino Unido. Temos de nos agarrar aos ganhos que conquistamos, resistir aos programas de austeridade e privatização, e combater a cleptocracia. Podemos ser mais eficazes se tivermos os nossos próprios representantes dentro do governo, enquanto o resto de nós faz pressão de fora, com tácticas que incluem protestos, processos judiciais, e a construção dos nossos próprios governos-sombra. Uma dessas iniciativas é o programa "audiências populares" organizado pela Aruna Roy na Índia, que reivindica o controlo local sobre os fundos públicos, criando contas oficiais para os seus orçamentos para que todos possam ver se o dinheiro foi gasto como deveria ter sido.

Trabalhando tanto dentro como fora do Estado, podemos desenvolver iniciativas ambiciosas de política externa. Os nossos objectivos devem incluir uma maior cooperação internacional; uma pegada militar reduzida por parte de todas as grandes potências, especialmente os EUA; o fim das armas nucleares; uma transição imediata dos combustíveis fósseis; um pacto internacional sobre o tratamento de migrantes; o fim da resolução de disputas através de guerras e invasões; uma maior cooperação sanitária e médica; e programas de limpeza do planeta, de reparar danos ambientais, proteger a biodiversidade, e reforçar a cooperação em matéria de alterações climáticas. A ajuda mútua que damos às nossas próprias comunidades deve ser alargada às lutas pela democracia no Médio Oriente e noutros lugares. Devemos encontrar formas de apoiar estas lutas de libertação, negociar uma paz justa e duradoura em conflitos civis de longa data, e aplicar a Resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas e a Declaração de Nairobi, a qual mandata não só a participação das mulheres em negociações de paz, mas também a reparação dos danos causados.

  1. O movimento internacional progressivo deve construir uma parceria estratégica, a longo prazo, com o movimento feminista mundial, baseado em programas comuns, ideologia partilhada, e ligações organizacionais. Os movimentos feministas dão grande valor à colaboração, à escuta, à responsabilidade pelos detalhes, à ajuda aos indivíduos na resolução de problemas pessoais, e à formação de membros mais jovens. O movimento pela liberdade Curda tirou partido destas qualidades ao integrar grupos feministas autónomos nas suas redes e estruturas. Uma breve análise da história mostra que o mesmo não acontece com a maioria dos grupos e movimentos progressisvo. Mesmo organizações com um grande número de membros femininos e mulheres fortes na liderança, permanecem frequentemente patriarcais de uma forma pouco analisada. Hoje em dia, grupos progressivos podem ter formação anti-racista ou discutir questões de sexo, género e sexualidade, mas é provável que demasiados ainda ignorem as ideias e comportamentos sexistas no seu seio, até que um dos seus líderes seja subitamente acusado de violação.

Os progressistas podem aprender com a forma como as mulheres se organizaram no movimento pela liberdade Curda. O principal é que as preocupações feministas não sejam marginalizadas nas comissões ou reuniões feministas, ou segregadas num programa ou lista de exigências separada, mas integradas em todas as áreas de trabalho: autodefesa, ideologia, programa e organização. As mulheres podem juntar-se às unidades mistas de género do YPG (Unidades de Proteção Popular), ou podem aderir às YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres), só de mulheres. O feminismo—palavra que usam muito—é uma parte central da formação ideológica do movimento a todos os níveis, incluindo a formação básica em unidades militares. Os programas de desenvolvimento económico, agricultura, cooperativas, etc., devem abordar as necessidades das mulheres e atrair mulheres de zonas rurais isoladas para a vida social e política. Em termos organizacionais, cada grupo tem de ter um co-presidente masculino e feminino e uma quota de membros de pelo menos 40% de mulheres. Cada organização, a começar pela freguesia— a unidade básica da comunidade—deverá ter uma organização paralela de mulheres, onde as pessoas colocam questões relativas às mulheres; estas funcionam também como tribunais de recurso contra decisões que podem ser prejudiciais para as mulheres. Ao integrar o feminismo em todas estas áreas de trabalho, Rojava alcançou um nível extraordinário de liderança e participação das mulheres.

Alguns progressistas podem opor-se à ideia de parceria com organizações feministas com base em alegações de que o movimento feminista é dominado por mulheres de classe média ou que depende de ONGs comprometidas. É verdade que o movimento feminista—tal como outros movimentos sociais—tende a ser mais ousado durante os períodos de ascensão social, e a recuar e a tornar-se rígido durante os períodos de reacção. Mas uma vez que o controlo do corpo das mulheres é uma questão tão central no fundamentalismo religioso, as feministas têm vindo a tentar alertar os progressistas, há décadas, para o perigo da direita. E agora o movimento de mulheres está novamente em ascensão, como o demonstram as maciças marchas latino-americanas contra a violência e pelos direitos ao aborto; a liderança das mulheres nas revoltas do Médio Oriente; e o enorme e diversificado movimento de resistência das mulheres dos EUA, exemplificado pelo trabalho do movimento Rising Majority ~(Maioria em Ascensão) e as marchas de mulheres. Estes desenvolvimentos indicam que uma parceria estratégica entre as feministas e o movimento internacional progressivo é alcançável, se ambas estiverem dispostas a procurar formas de, na prática, trabalharem em conjunto.

Em união devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para organizar e manter a água a fluir através de cada brecha da barragem.

Este documento contou com o grande estímulo das contribuições de Debbie Bookchin, Ariane Brunet, e Gita Sahgal.

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Authors
Meredith Tax
Translators
Sara Branco and Ana Borralho
Published
13.07.2020
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