A partir de agora, dentro da norma legal de maior alcance, indicar-se-á que “Toda pessoa tem o direito humano básico e inalienável de acesso à água potável, como bem essencial para a vida. A água é um bem da Nação, indispensável para proteger tal direito humano. Seu uso, proteção, sustentabilidade, conservação e exploração serão regidos pelo que estabeleça a lei que se criará para esses efeitos, e o abastecimento de água potável terá prioridade para consumo das pessoas e das comunidades.”
Este parágrafo vem fortalecer o artigo 50 da Constituição que, seguindo a Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, estabeleceu a responsabilidade estatal de garantir um ambiente saudável e ecologicamente equilibrado, e impulsionou no país o prosseguimento com uma série de normas orientadas a fortalecer a proteção dos recursos naturais, sob um esquema de desenvolvimento democrático sustentável.
Perguntarão, então, por que em uma nação de reconhecida trajetória em matéria ambiental, uma discussão como a tutela superior do recurso hídrico demorou vinte anos. A resposta é simples e tem relação direta com o bloqueio constante que forças políticas de direita, representantes de um setor empresarial egoísta, ergueram durante anos para evitar a todo custo maiores regulações quanto à água.
Por anos legisladores de partidos políticos altamente comprometidos com setores interessados na privatização da água, ou na flexibilização de normas de exploração deste recurso, frearam a votação desta reforma legal sob pretextos dos mais absurdos. Não obstante, as eleições anteriores deixaram muitas dessas forças políticas fora de cena, e isto permitiu que finalmente pudéssemos concluir tal discussão.
A importância desta modificação constitucional é ampla. Não somente implica no reconhecimento de milhares de apelos das Nações Unidas à criação de políticas públicas que obriguem os Estados a uma melhor distribuição de água, mas também garante na prática uma ferramenta poderosa de justiça em matéria ambiental, não restrita apenas à distribuição do recurso, mas também para garantir a segurança de quem defende o acesso à água.
Mesmo em um país como a Costa Rica, que tem mais da metade de seu território coberto por matas e uma quarta parte do mesmo sob regime de proteção ambiental, os impiedosos efeitos das mudanças climáticas são cada vez maiores e põem fortemente o dedo na ferida da desigualdade social.
As crescentes mudanças climáticas colocam-nos diante de um panorama em que a competição por recursos naturais abrirá mais o fosso das desigualdades, tornando mais vulneráveis os que já são vulneráveis. É aqui que a intervenção dos governos se torna indispensável para propiciar a equitativa distribuição social e atenuar as consequências em comunidades sensíveis.
A água é um recurso estratégico nessa equação. Sem água não há vida nem dignidade humana. Sem água não se satisfazem as necessidades básicas das pessoas nem há produção que permita satisfazer as necessidades básicas de um país. Temos atualmente na América Latina, ou melhor, no mundo, um doloroso vínculo entre pobreza e falta de acesso ao recurso hídrico, que afeta com muito mais força comunidades rurais e mulheres.
Isto é de vital importância. Falar de acesso à água implica necessariamente uma abordagem a partir da desigualdade de gênero, sendo que, por exemplo, uma mulher na África caminha cerca de 6 quilômetros diários para levar água a seu lar, ou que a necessidade de água de uma mulher em período de lactância é de cerca de 7, 5 litros por dia. Não por acaso a “Declaração de Dublin sobre a água e o desenvolvimento sustentável” pôs como um de seus princípios elementares que a mulher desempenha um papel fundamental no abastecimento, na gestão e na proteção da água.
Dublin também fincou pé no valor econômico da água em todos seus diversos usos concorrentes. Longe de implicar em visualizar o recurso hídrico como mercadoria, isso tem a ver com a necessidade de estruturas tarifárias que permitam recuperar os custos econômicos e sancionar o desperdício. Mas, significa também assegurar que seja exequível, e portanto se coloque sobre a mesa dos debates fundamentais: impedir a privatização da água e a geração de tarifas diferenciadas que estejam de acordo com as lacunas sociais da população.
Hoje, em meio a uma pandemia global, mais do que nunca se fortalecem os discursos liberais que criam falsos antagonismos e propõem falsas soluções. Com mais força do que nunca estabelecem dilemas inexistentes como “crescimento econômico vs proteção ambiental” ou “direitos trabalhistas vc reativação da produção”. Eles terão em mira o Estado de bem-estar social e suas políticas redistributivas, e a água será um eixo central deste ataque.
Frente a isso não nos resta mais do que levantar a bandeira de um Novo Acordo Verde (Green New Deal). Um novo pacto social que custeie com tenacidade os elementos de governança progressista que temos hoje e entenda de uma vez por todas que somente em harmonia com o meio ambiente poderemos ter um crescimento sustentável e justo. O grande desafio é que não se dissociem ambos os elementos, que a conservação ecológica gere riqueza distribuída, empregos verdes e bem-estar social.
Na Costa Rica que hoje garante o direito humano à água, persistem vozes anacrônicas que tornam lento o avançar por este caminho. Enquanto algumas pessoas lutamos por reformas legais que orientem o país a uma economia verde e descarbonizada, não faltam aqueles vestidos com roupas de outro século que clamam pela exploração do petróleo. Porém, tanto aqui como no resto do mundo, seríamos bastante baixos se não aproveitássemos esta crise global para fazer, desta vez, as coisas bem feito.