Social Justice

Uma alternativa progressiva para o Líbano

Vozes progressistas no Líbano apelam à solidariedade na luta contra a desigualdade, a oligarquia e a degradação do meio-ambiente.
Desde o início de Maio, os habitantes do Líbano estão a sair à rua, desafiando o confinamento. O que começou em Outubro de 2019 como um movimento de protesto contra décadas de corrupção, clientelismo e má governação, transformou-se numa luta por necessidades básicas.

Hoje, no Líbano, a inacessibilidade dos preços dos alimentos é uma ameaça maior para a sobrevivência das pessoas do que o coronavírus.

Durante anos, o país sofreu graves deficiências nos serviços públicos mais básicos, incluindo educação pública adequada, cuidados de saúde, água potável, energia, saneamento e transportes. Mas a situação deteriorou-se drasticamente no Inverno passado. Em Setembro de 2019, cerca de um terço da população do Líbano vivia abaixo do limiar de pobreza. O número atual está mais próximo de metade, com 1% da população a auferir mais do dobro do rendimento dos 50% mais pobres.

O Líbano tem agora a terceira maior dívida em percentagem do PIB, cerca de 40% da qual é cotada em dólares americanos. Dada a opacidade e a irresponsabilidade do banco central libanês, os primeiros efeitos da escassez de dólares a afetar a sociedade em geral foram as perturbações nas importações de combustíveis e de farinha, em Setembro de 2019. Em meados de Outubro, estalou uma revolta popular quando o governo tentou impor um pacote de medidas de austeridade, incluindo um imposto agora infame sobre as chamadas Whatsapp.

Os bancos locais usaram a desculpa da revolta para impor limites aos levantamentos de depósitos. Em meados de março, o governo falhou no pagamento da sua dívida. Em meados de abril, o banco central anunciou que os depósitos em dólares só podiam ser levantados na moeda local à taxa de câmbio oficial, apesar de a moeda ter perdido mais de metade do seu valor no mercado. Estas medidas, que privaram os residentes do seu poder de compra e das suas poupanças, foram aprovadas em pleno confinamento provocado pela COVID-19.

Nós, abaixo-assinados, compreendemos que a crise no Líbano é parte integrante de uma dinâmica única que opera à escala global, com diferentes manifestações locais condicionadas pelas condições económicas e políticas locais. O que se designa por crise global da dívida é efectivamente uma crise de acumulação; pois a dívida poderia ser reembolsada se os excedentes paralisados nos bancos de todo o mundo pudessem ser investidos em actividades geradoras de rendimentos.

Na sequência da Guerra Fria, os governos de todo o mundo, pressionados pelo consenso de Washington, adotaram políticas tendenciosas para os interesses do capital financeiro. Estas políticas incluíam a desregulação dos movimentos de capitais e das atividades das empresas, mas também uma mudança no objetivo global da política económica, do pleno emprego para uma inflação baixa, em benefício do sector financeiro e à custa da sociedade em geral. No Líbano, as milícias beligerantes sentaram-se à mesa das negociações com corretores internacionais para partilhar os despojos da reconstrução financiada através da dívida soberana. Tal como muitos outros países do Sul global na altura, o Líbano indexou a sua moeda local ao dólar.

O regime de taxa de câmbio fixa e as elevadas taxas de juro daí resultantes permitiram que capital estrangeiro entrasse no país, beneficiasse de taxas de juro elevadas e saísse em segurança, em benefício tanto dos investidores estrangeiros como do setor financeiro nacional que atuava como seu intermediário. O custo destes lucros financeiros tem sido pago pela indústria e agricultura nacionais. Estes setores cruciais perderam o acesso ao crédito devido às elevadas taxas de juro, enfrentam rendas cada vez mais elevadas e a sua competitividade tem vindo a sofrer de erosão tanto nos mercados nacionais como estrangeiros, devido à sobrevalorização da moeda. Por outras palavras, as enormes entradas de capital apenas serviram para inflacionar os preços imobiliários e os lucros financeiros, em vez de financiar actividades produtivas que criam empregos estáveis.

Financiados por fortes fluxos de capitais vindos do estrangeiro, os bancos comerciais libaneses surgiram como poderosos agentes políticos. Banqueiros foram nomeados para muitos cargos-chave nas autoridades executivas, e o seu lobbying estabeleceu uma parceria com a liderança do banco central para manter uma política monetária e fiscal que servia os seus interesses. Atualmente, políticos que estão, ou estiveram, no governo desde o final da Guerra Civil possuem directamente cerca de 40% dos activos do sector bancário local. Como resultado, o Líbano apresenta uma das mais baixas taxas de imposto sobre o rendimento dos juros a nível mundial, enquanto os bancos têm cerca de três quartos dos seus ativos (direta ou indiretamente através do banco central) investidos numa dívida soberana injustificadamente cara, que por vezes rendia mais de 35% do seu rendimento anual.

Assim, o crescimento do sector bancário assemelhava-se mais a um ganho inesperado de rendas do que ao resultado da assunção e intermediação de riscos financeiros. O serviço da dívida constitui cerca de um terço das despesas públicas e absorve mais de metade das receitas públicas que consistem, na sua esmagadora maioria, em impostos fixos sobre o consumo que sobrecarregam desproporcionalmente os pobres e as classes médias - uma transferência perversa da riqueza dos muitos para os poucos.

As elites locais, ligadas ao setor financeiro, apoiaram tais políticas em todo o Sul global, intermediando uma aliança política entre o Estado e os interesses financeiros transnacionais. Uma vez concretizada a liberalização financeira, a autonomia política foi restringida, uma vez que os países que não cumpriam os interesses dos investidores seriam punidos pela fuga de capitais. As elites financeiras ganharam maior influência sobre as políticas. Em seguida, pressionaram para políticas que transferissem ainda mais rendimentos da agricultura e da indústria para o sector financeiro, aumentando a desigualdade de rendimentos e contribuindo para o desemprego e a estagnação salarial.

O Líbano tem um dos casos mais graves de financeirização, tendo arruinado completamente a sua economia em nome dos interesses financeiros. 80% do consumo local é importado, enquanto metade da população vive abaixo do limiar de pobreza. Os países em desenvolvimento anunciam frequentemente uma paridade, mas poucos aderem tão firmemente a ela como o Líbano. Permitir que a moeda deslize ajudaria as exportações, criando assim emprego e aliviando a pressão a nível local. A paridade extraordinariamente estável em

O Líbano é um testemunho do vasto poder da oligarquia local, que é mantido pelas clivagens confessionais que dividem a sociedade no Líbano e dificultam a resistência social. Para serem transformadores, os movimentos sociais em todo o mundo devem trabalhar para uma visão partilhada e uma solidariedade global entre os devedores. O problema que se coloca é evidentemente político. A solução não deve ser deixada à aliança de políticos e banqueiros cujos interesses trabalham contra os imperativos da prosperidade partilhada, nem aos economistas das instituições internacionais que servem de oficiais de justiça em nome dos credores.

No início de Julho de 2019, um relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) elogiava a paridade cambial sobrevalorizada do Líbano, elogiava o sector bancário local e apelava a um "ajustamento fiscal" que o próprio relatório descrevia como contracionista. As medidas incluíam o congelamento das contratações no setor público, o aumento dos impostos sobre os combustíveis e o gasóleo, o aumento do imposto sobre o valor acrescentado e um imposto sobre as matrículas dos táxis, tendo em conta que a condução de táxis é a fonte de rendimento da maioria das pessoas desempregadas ou subempregadas do país.

Entretanto, um plano económico publicado pelo atual governo, na primeira semana de Maio de 2020, propôs medidas para atrair um pacote de ajuda do FMI que incluía uma maior austeridade fiscal e o abandono da indexação, sem abordar os problemas estruturais com que o Líbano se defronta nem oferecer uma proposta concreta para a segurança social. Nesta mesma semana, registaram-se mais casos de brutalidade crescente na repressão de manifestações, incluindo a tortura de manifestantes detidos.

A única solução viável para esta crise é uma reestruturação da dívida pública que inclua uma redução significativa do capital, a par de um programa de reformas para garantir a proteção social. Uma distribuição objectiva, justa e razoável das perdas pode ser conseguida através de um imposto progressivo excecional sobre a fortuna, ou, em suma, de um imposto progressivo excecional sobre as enormes fortunas depositadas nos bancos, a fim de poupar os pequenos depositantes. Deve absolutamente ser impedida uma fiança (ou uma caução) aos bancos e aos/às maiores depositantes, que mais beneficiaram das políticas económicas que o Líbano tem vindo a seguir desde há três décadas. O povo libanês não deve ser obrigado a suportar os custos, nem através de uma tributação injusta, nem através da hiperinflação, nem através da venda a descoberto de ativos públicos.

Os abaixo-assinados, habilitados pela urgência de uma mudança sistémica no Líbano, reúnem vozes progressivas de todo o país para construir uma verdadeira alternativa ao sistema político que está a paralisar e a levar o país à falência. Só uma alternativa verdadeiramente progressiva pode construir uma economia produtiva, caracterizada pela justiça social. Isto exige novas políticas fiscais, monetárias e sociais, incluindo um sistema fiscal justo, proteções sociais fiáveis e universais e uma redução da dimensão dos setores bancário e imobiliário, como parte da mudança na principal esfera de acumulação de atividades baseadas no aluguer para setores produtivos que criam emprego digno.

Esta visão está cristalizada na revolta popular no país, mas acreditamos que a luta contra as oligarquias financeiras e os seus parceiros políticos é global e, por isso, exige uma acção colectiva global. Apelamos às forças progressivas de todo o mundo para que nos apoiem na nossa luta comum contra a desigualdade, a degradação ambiental e o desvio da democracia por parte do/a(s) banqueiros/a(s) e dos ultra-rico/a(s).

Signatários:

Lihaqqi

Qantari Collective

Youth Movement for Change

Mada Youth Network

AUB Secular Club

NDU Secular Club

Housing Monitor at Public Works Studio

Workers in Art and Culture

Lebanese Coalition of Health Professionals

Lebanese Assembly of Engineers and Architects (LAEA)

Available in
EnglishGermanFrenchPortuguese (Brazil)Portuguese (Portugal)RussianArabicSpanish
Translator
Pedro Mendes
Date
02.06.2020
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