À esquerda: Egito. O país estava emlockdown, muito antes que o coronavírus fizesse disso um lugar comum. 42 barreiras rodoviárias nos arredores do centro do Cairo, tropas de choque estacionadas em grande número em cada uma das praças mais importantes do país. Da minha janela eu podia ver que as ruas estavam vazias. O regime estava em alerta máximo após uma série de protestos de rua na semana anterior e tinha saído com força máxima.
À direita: a greve pelo clima de Greta Thunberg. Marchas enormes de pessoas fluindo livremente através dos centros urbanos de Turim, Helsinki, Roma e outras cidades afora. A polícia a postos, cartazes levantados clamando por um futuro sustentável para o planeta.
Lembro-me de ter registrado meu e-mail para receber notícias sobre a greve pelo clima. Após meu endereço ter sido registrado, uma segunda página apareceu com uma única questão:Você quer organizar uma ação em seu local de trabalho ou comunidade?
Escolhi Não.
Houve tentativas corajosas nas marchas naquele dia no Egito - não pelo clima, mas contra o regime. Elas foram rapidamente dispersados por meio de gás lacrimogêneo e espingardas.
Quando o sol se pôs, vi páginas e páginas - mas nada de novo viria através das linhas policiais. À direita de minha tela vinha marcha atrás de marcha da greve pelo clima: Budapeste, Nápoles, Barcelona. Fiquei online por horas e vi o sol nascer sobre novas cidades e novas marchas: Montreal, Vancouver, Santiago do Chile, Valparaíso.
Haveria ainda mais de 4.000 prisões naquela semana no Egito. Elas continuam até o dia de hoje, sempre as mesmas acusações. Em 28 de abril de 2020, Kholoud Amer, diretor de traduções na Biblioteca de Alexandria, acusado de espalharfake newse pertencer a uma organização terrorista.
Enquanto ficava sentado de noite, percorrendo de uma à outra estas duas linhas do tempo, um pensamento não parava de martelar: podem estes dois acontecimentos existir aparentemente em total independência um do outro? Claro, é impossível para nós trazer à cena uma greve pelo clima no Egito. Mas por que não havia o Egito na greve pelo clima?
Egito - lar de meio milhão de refugiados além de seu próprio milhão a mais - está nas linhas de frente do caos climático; temperaturas se elevam; cidades costeiras serão perdidas; os rendimentos se esvaem; as fazendas estão afundando e o aquífero de água doce está sendo infiltrado por sal; chuvas mais fortes, mais longas destroem continuamente cidades, enquanto estiagens de verão duram mais tempo. Há poucos lugares tão vulneráveis aos desequilíbrios do aquecimento global quanto o Egito.
Se estamos presos ao mesmo destino planetário, quanto tempo ainda poderemos existir nestes mundos separados?
***
Há muito se sabe que, embora tenham sido as nações industrializadas que gastaram a maior parte do estoque total de carbono da Terra, as consequências ecológicas mais imediatas serão pagas pelo Sul Global.
Pensamos em consequências ecológicas como marés altas, tempestades mais fortes e inundações mais velozes, mas o preço que se paga não é apenas ecológico, é também político. Para aqueles que vivem em colônias de extração, emissões de carbono são a garantia de miséria tanto atmosférica quanto administrativa.
O Egito nos oferece um exemplo perfeito: uma economia nacional nominalmente autodeterminada, mas na encruzilhada de uma série de disputas regionais. O país tem uma mistura diversificada de energia, com avanços em energia solar e eólica, vastas reservas de gás e energia hidráulica, e seria considerado, em sentido tradicional, uma nação independente pós-colonial.
Porém, uma consideração cuidadosa de sua posição dentro da economia global de hidrocarboneto complica o quadro. Veremos como o Egito está preso por múltiplos interesses no que eu chamaria “cadeia de carbono” - a rede de energia industrial global erigida por, e para, desenvolver o capitalismo industrial nos últimos 250 anos. Como uma cadeia alimentar, ela tem superpredadores (executivos do petróleo, Vladimir Putin), carnívoros intermediários (mandatários de petro-Estados, corretores da bolsa, banqueiros), um espectro de mamíferos privilegiados - e então todo o resto.
Em uma região conhecidamente conflituosa e competitiva, uma análise da cadeia de carbono pode oferecer-nos novas perspectivas políticas. Dentro das fronteiras nacionais, pode oferecer-nos novas ferramentas para incitação e organização políticas. Dentro de movimentos supranacionais, pode-nos abrir caminhos para novos modelos de coordenação. Em resumo, pode-nos ajudar a construir pontes sobre o golfo de nossos mundos divergentes.
O Egito ocupa três posições diferentes na cadeia do carbono. A primeira, menos surpreendente, é como colônia de extração. O Mar Mediterrâneo, os desertos e o Vale do Nilo são divididos em uma colcha de retalhos de centenas de concessões, cujos donos são dúzias de companhias estrangeiras de gás e petróleo, caçando e bombeado petróleo e gás.
Em 2015, a gigante italiana de energia, Eni, descobriu o maior campo de gás em todo o Mediterrâneo, o qual foi nomeado Zohr. Concessões egípcias de gás e petróleo oferecem uma partilha de 50/50 entre a corporação e a nação, e o Egito declarou que esta descoberta forneceria as reservas de gás necessárias para se tornar energeticamente independente.
O gás foi entregue pela primeira vez em dezembro de 2017, mas, no ano seguinte, o custa da eletricidade subiu cerca de 22,5% para uso doméstico.
Os lucros do Zohr não estão alcançando à população, mas têm sido usados para pagar a dívida externa. Em abril de 2020, 40% do orçamento do Estado foi gasto em pagamentos de juros. Desde que o regime de Sisi chegou ao poder, a dívida externa triplicou de 38 para 110 bilhões de dólares. Junto com uma sequência interminável de caças franceses, submarinos alemães e helicópteros russos adquiridos para comprar favores políticos, 8 bilhões de euros foram gastos para construir usinas de energia que convertam o gás de Zohr em eletricidade. Foi o maior contrato na história da Siemens e foi consignado por um consórcio de bancos alemães sobre margens de lucro não declaradas.
Independência energética, convertida em servidão por dívida.
Para as famílias de menor renda, o preço do gás subiu 51%. O regime de Sisi, em sintonia com a ideologia econômica do Fundo Monetário Internacional, removeu subsídios do gás, combustível e água, enquanto fazia flutuar - e assim desvalorizar - a concorrência nacional em 50%. Um choque econômico de capitalismo de austeridade, o qual requereu um Estado militar para impô-lo à população, as dívidas do regime são descarregadas sobre os ombros do povo - agora e para sempre, já que mesmo políticas futuras estão presas a dívidas impagáveis.
Na cadeia de carbono há, portanto, uma pirâmide clara de: vencedores sobre todos, Eni, Siemens, Alemanha e Itália; os vigaristas intermediários do regime de Sisi; e os perdedores da população egípcia e da atmosfera da terra, quer dizer, todos.
Todos os dias, o Zohr bombeia o equivalente de carbono de toda a produção diária da Áustria, queimando através do estoque de carbono do planeta, para que uma minúscula ditadura seja capaz de pagar dívidas odiosas, feitas para manter o nível de exportação industrial de armas do norte e tecnologias de combustível fóssil.
A cada dia, o gás sob os mares do Egito que é vendido retorna lentamente a nós através de marés cheias. Novas projeções para 2050 indicam que Alexandria ficará totalmente submersa.
O segundo campo de gás mais vasto no Mediterrâneo chama-se Leviatã e teve um caminho muito mais tortuoso para produção.
Desde a autorrealização de Israel no plano costeiro da Palestina, este campo tem tido um permanente calcanhar de Aquiles: energia. A única faixa de território entre Casablanca e Isfahan, aparentemente sem reservas de combustível fóssil, há tempos conta com importações de aliados.
Em 2008, um dos principais colaboradores de Mubarak, Hussein Salem, arranjou um acordo para construir um gasoduto do Egito a Israel. O povo egípcio ficou enfurecido, mas impotente para barrá-lo. Mubarak não apenas estava vendendo gás ao inimigo da nação: ele o vendia a um valor abaixo do mercado. Na época, a Turquia, a Grécia e a Itália pagavam entre 7 a 10 dólares por milhão de BTU; Israel - sem outra opção de gasoduto para importação - pagava 4.
O gasoduto tornou-se um dos símbolos do regime covarde de Mubarak. Quando ele foi posto em julgamento em 2011, o promotor teria alegado que a venda tinha custado à população 714 milhões de dólares - embora especialistas em energia tenham dito que os valores pudessem chegar a 11 bilhões de dólares.
Durante o período de liberdade entre 2011 e 2013 o gasoduto foi explodido doze vezes. Na décima terceira, o governo parou de repará-lo.
Então, o Leviatã foi descoberto na costa de Haifa. Uma horda de opiniões messiânicas anunciavam que Israel era realmente o povo escolhido por Deus.
Contudo, a charada era que, para tornar economicamente viável a exploração do poço, Israel teria que exportar gás. Apenas o uso doméstico não ofereceria uma margem suficientemente atrativa de rendimentos para investidores preocupados com a paisagem movediça de um mundo que caminha para a descarbonização.
Por anos o Leviatã ficou inexplorado. A Israel faltava a infraestrutura para liquefazer e exportar o gás em tanques ou por gasoduto para outro país. Até que a Jordânia apareceu com uma ordem de compra de 10 bilhões de dólares e a construção de um novo gasoduto começou. Em seguida, o Egito fez uma proposta de 15 bilhões para reverter o curso do gasoduto de Mubarak para o terminal de exportação de gás na costa norte onde o gás do Leviatã seria combinado com o do Zohr e poria o Egito em um eixo de exportação de energia.
O acordo foi firmado em 2018 por uma companhia chamada Dolphinus Holdings: uma companhia de fachada, controlada pelo General do Serviço de Inteligência do Egito, como foi revelado pelo jornal egípcio,Mada Masr.
Pelo Leviatã, três regimes vizinhos entremeiam-se agora através de uma infraestrutura física de gasodutos. O Egito, neste caso, está na posição mais alta da cadeia de carbono, onde não é apenas uma colônia de extração, mas um facilitador colonial - enriquecendo e estendendo as trincheiras da colônia energética na Palestina.
O Leviatã, graças à habilidade dos regimes egípcio, jordaniano e israelita para coordenar e interligar, queimará agora; o mundo árabe permanecerá fragmentado e incoerente enquanto a Palestina é apagada do mapa; as elites militares egípcias e jordanianas ficarão cada vez mais ricas; o equivalente de emissões de CO2 da Alemanha em um ano será gasto do estoque de carbono do planeta.
Não é possível considerar a política do petróleo sem a Arábia Saudita, o petro-Estado colonial que quer acabar com todos os outros. A vasta riqueza de petróleo da Arábia Saudita há tempos tem dado combustível para uma rede regional de ideólogos, pregadores eoutletsmidiáticos; de jihadistas e guerreiros sectários; e, mais recentemente, de governos tutelados. O país desvia parte de seu fluxo de riquezas para companhias americanas e britânicas de armamentos em troca de proteção regional e equipamentos complexos de informática com os quais ainda permanece difícil para ele derrotar vizinhos assimetricamente sub-equipados na guerra.
Desde a erupção da Primavera árabe, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes têm sido signatários cada vez mais ativos de reacionários locais: oferecendo refúgio a Ben Ali da Tunísia, empreendendo uma desastrosa guerra aérea no Iêmen, financiando o conselho militar transitório do Sudão, intervindo canhestramente na Líbia e na Síria, mantendo o Estado policial do Bahrain, sequestrando o Primeiro Ministro do Líbano e tentando agenciar o abandono final da Palestina como parte do Acordo do Século de Trump.
No Egito, o regime de Sisi tem ficado à deriva de uma corrente de empréstimos, presentes, investimentos, joint venturese compras de ilhas no valor de pelo menos 78 bilhões de dólares. Um montante vertiginoso de dinheiro que desapareceu no buraco negro do fisiologismo egípcio. Há razões ideológicas e logísticas para isso: a Arábia Saudita despreza a Irmandade Muçulmana quase tanto quanto o Irã, e sustentou seu golpe militar ao poder. Logisticamente, o Egito é um país de trânsito crucial para o petróleo saudita, o qual passa através do Canal de Suez e é o gasoduto chave que conecta o Mar Vermelho ao Mediterrâneo.
O Egito ocupa aqui a posição mais baixa na cadeia de carbono: Estado vassalo, país de trânsito.
***
Colônia de extração, facilitador colonial, Estado vassalo, país de trânsito. Todos os pontos que o Egito ocupa dentro da cadeia de carbono - uma rede global feita de centenas de pontos de contato entre infraestrutura, Estados, corporações, geografia, história, ligando o planeta inteiro com interseções de poder e repressão; e de vulnerabilidade e oportunidade.
A cadeia de carbono tem sido construída há 250 anos, estendendo-se através de navios de Southampton, Antuérpia, l’Orient e Kiel que aportam em Manila, Rio de Janeiro, Nova Orleans, Porto Príncipe, Calcutá, Hong Kong: um incessante desenrolar de navios de escravos, estradas de ferro, rodovias asfaltadas, canais portuários, fios de telégrafo, ondas de rádio, oleodutos, estações de satélite, containers e cabos de fibra-ótica, que ligou o mundo a vínculos cada vez mais estreitos no espaço e no tempo, colapsando diferenças entre continentes, criando uma hierarquia global de classe e castas.
Os vencedores, às vezes, fizeram guerras uns contra os outros. Mas, desde o colapso da União Soviética, vemos emergir claramente um agente classista supra-nacionalmente unido com uma língua compartilhada e um uniforme ideológico de: progresso, segurança e estabilidade.
Progresso: a remoção de condições regulatórias que busquem conter as movimentações internacionais de lucros.
Segurança: o desenvolvimento e implementação de técnicas de controle sobre os povos.
Estabilidade econômica: a manutenção de governos nacionais que sustentam as condições locais para que o capital tenha retornos.
De Davos a Wall Street a São Paulo a Beijing emergiu o 1% global que acumulou um nível de riqueza antes apenas perturbável por uma grande guerra.
Porém, o prospecto mais assustador para o nosso futuro não é a guerra, mas de que essa venha a ser nossa paz duradoura. As guerras de hoje são as guerras dos ricos contra os pobres, guerras contra-revolucionárias, guerras ao Terror, ao tráfico de drogas, ao crime. São guerras policiais. Elites do mundo todo constroem trincheiras ao seu redor com uniformes de sistemas de segurança: vigilância em massa, poderio militar legalizado, fronteiras mais guarnecidas, enquanto o capital móvel é mantido em segurança e sem taxações em bancosoffshore. Seja qual for o papel anestésico que a classe média tenha desempenhado entre a elite e os trabalhadores, ela está sendo substituída pelo aparato de segurança das elites.
No caso do Egito, gozamos das bênçãos combinadas de burocracia colossal de um Estado socialista estabelecido para intervir em quase todos os aspectos da vida, agora operando sobre o dogma da alta austeridade - uma fusão de Stalin e Reagan que reduz as funções do Estado a pouco mais do que proteção violenta dos recursos de riquezas de seus cúmplices, tanto domésticos quanto estrangeiros.
O Estado egípcio tornou-se uma vanguarda da fusão de elite de hoje e despende grande energia para manter seus cidadãos atomizados e incapazes de se organizar: ele controla e fragmenta o espaço público enquanto estrangula e silencia a vida política; desmantela a produção cultural independente enquanto “harmoniza” a mídia de massa; trabalha sem cessar para fazer a engenharia de uma esfera pública totalmente definida pela corrupção, garantindo oportunidades para divisões e conflitos entre as interações diárias.
Mas a cadeia de carbono pode oferecer-nos maneiras de enxergar mais longe - de veratravés- da vil corporalidade de nossos regimes correntes.
Vamos dar uma olhada mais uma vez nas três posições do Egito na cadeia de carbono. Em cada uma, podemos ver oportunidades de ação e reflexão políticas que não podem ser contidas nem pelos agentes repressivos do Estado nem por seus guarda-costas extrativistas.
O Zohr é propriedade da italiana Eni, com participações minoritárias detidas pela russa Rosneft (30%) e pela britânica BP (10%). Atualmente, não há como nós, que estamos fisicamente no Egito, impedirmos a Eni de bombear gás. Mas o carbono extraído do Egito queima em nossos céus compartilhados.
Em países com infra-estrutura democrática, corporações cúmplices podem ser alvo de ações e processos diretos, os apoiadores dos eleitos podem ser escrutinados, a legislação pode ser elaborada e combatida, eleições podem ser contestadas.
Estamos assistindo atualmente a uma onda internacional de ações judiciais potencialmente significativas. Há 15 grandes casos de responsabilidade climática atualmente nos tribunais americanos: a cidade de Baltimore está processando pelo custo das defesas contra enchentes, São Francisco pelo preço de seu muro marítimo, o estado de Rhode Island pela desvalorização da propriedade costeira. O caso histórico Juliana contra os Estados Unidos - trazido por 21 jovens reclamantes - agora se aproximando de seu sexto ano, é um de dezenas de casos em todo o mundo em que crianças estão processando por violações de seus direitos futuros.
Já houve vitórias notáveis, a mais significativa das quais, Urgenda contra a Holanda, ordenou ao governo holandês que reduzisse suas emissões para 25% abaixo dos níveis de 1990 este ano. A Urgenda é o precedente de cerca de 1.442 casos arquivados em todo o mundo, alegando - de várias formas - que os governos estão violando os direitos humanos de seus cidadãos ao não agirem para manter um ambiente limpo e habitável.
É bem provável que uma empresa como a Eni possa estar vulnerável em sua jurisdição de origem na Itália em várias frentes: do direito dos próprios italianos a um ambiente saudável e ao mar Mediterrâneo compartilhado, às acusações de trabalhar contra a própria política externa declarada da Itália (conforme estabelecido na recente Revisão Universal pelos Pares), às investigações sobre questões financeiras e contábeis, ou como cúmplice, cúmplice ou apoiadora material de um regime militar que se serve de seus abusos aos direitos humanos como um distintivo de honra, e assassinou pelo menos um cidadão italiano: Giulio Regeni.
Mas não é apenas Eni que está apoiando o regime de Sisi de Roma. Na linha de frente da violência estatal, vemos um logotipo italiano ostentando os faróis de um furgão: Iveco. Na manhã seguinte, pegamos as cápsulas das balas e lemos a palavra Fiocchi. Quando cobrimos as câmeras de nossos computadores com fitas e deixamos nossos telefones em microondas, é da Hacking Team de Milão e da Area S.p.A. que estamos tentando nos esconder.
O estado egípcio mantém, com hardware italiano, um "ambiente de negócios estável". A capital italiana, fugindo da regulamentação do norte, encontra um lar feliz nesta ditadura do sul, onde os sindicatos estão há muito tempo vazios e as ações industriais podem ser satisfeitas com enfrentamentos de grau militar a grevistas. A crise trabalhista italiana (33% dos jovens atualmente desempregados) está intimamente ligada à mão-de-obra barata em autocracias estrangeiras e à alta taxa de retorno que as elites combinadas desfrutam, mantendo seu capital supranacional.
Este ambiente de negócios deve ser desestabilizado, de Norte a Sul.
No dia 27 de setembro, assistindo a essas linhas-do-tempo gêmeas, vi as marchas da greve pelo clima em Munique, Milão, Paris e Waterloo, Ontário. Essas quatro cidades abrigam as sedes das empresas que desenvolvem e vendem as seis peças-chave da tecnologia que sabemos que compõem o "Electronic Grip" (Punho Eletrônico) de vigilância digital do regime egípcio. A Gamma International de Munique e a Trovicor, a Hacking Team de Milão e a Area SpA, a Nexa de Paris e a Sandvine de Waterloo.
Um mapa das concessões de petróleo e gás do Egito a partir de 2019 mostra o país dividido em 195 áreas geográficas distintas para exploração por empresas de energia estatais, locais e internacionais. Naquele ano, um total de 20 empresas internacionais de energia estavam operando no Egito. Elas têm sede em Londres (BP, Perenco, SDX, Pharos), Houston (Apache, Apex), Paris (Total, Perenco), Hamburgo (Dea), Haia (Shell), Roma (Eni), Dublin (Petroceltic), Moscou (Lukoil), Kiev (Nafto Gas), Zagreb (Ina-Nafte), Santiago do Chile (Sipetrol) e Calgary (TransGlobe).
Houve greves pelo clima em cada uma dessas cidades.
O ambiente de negócios deve ser desestabilizado. As oportunidades para uma nova solidariedade de substância inter-nacional nos cercam.
Estamos enredados nas redes de comunicação do capitalismo. Como podemos utilizá-las melhor para coordenar esforços entre espaços agora divididos por fronteiras rígidas e barreiras econômicas?
Tenho chamado os exemplos acima de solidariedades inter-nacionais - elas acontecem entre pessoas existentes dentro de suas distintas nações. Devemos também considerar as oportunidades supranacionais que podemos discernir, seguindo os elos das cadeias de carbono que nos cercam.
Na área jurídica, Saúl Lliuya, agricultor peruano, está atualmente processando o maior produtor de eletricidade da Alemanha, RWE, em um tribunal alemão. Ele argumenta que a RWE deveria pagar por 0,47% das proteções contra enchentes de sua cidade: Estima-se que 0,47% seja a participação anual da empresa nas emissões globais de gases de efeito estufa. Embora inicialmente indeferido, o caso está agora avançando no tribunal regional de recursos de Essen.
Nas Filipinas, a Comissão de Direitos Humanos do país estabeleceu um precedente global com sua investigação sobre como as 50 " maiores emissoras de carbono " de capital aberto têm impactado os direitos humanos dos filipinos. A Comissão afirma que "procura determinar a questão da responsabilidade legal contra empresas que não estão domiciliadas nas Filipinas com base nos efeitos transfronteiriços de suas operações comerciais".
A Comissão Filipina de Direitos Humanos estima que a Eni é responsável por 0,41% do total de emissões de CO2 desde 1751. O que é 0,41% do custo das defesas costeiras necessárias para proteger Alexandria? O que é 0,41% do custo das terras agrícolas que estamos perdendo para uma salinificação que não pode ser retida com um muro? Quanto é 0,41% do custo do clareamento da maravilha natural do recife de corais do Sinai?
Quais novos casos podem ser construídos em coordenação supranacional entre os das cidades em que ocorreu a Greve pelo Clima e os das colônias de recursos?
O movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções pelos Direitos Palestinos (Boycott, Divestment and Sanctions movement for Palestinian rights) nos dá o melhor exemplo a seguir. Um comitê central palestino, o BNC, emite diretrizes e sugestões de princípios de ação e alvos legítimos: multinacionais cujas obras de infra-estrutura violam a lei internacional, bancos com participações em empresas de armamento, marcas de consumo girando lucros com instituições estatais israelenses, eventos culturais recebendo financiamento de ministérios do governo israelense, e assim por diante. Esta estrutura aberta, na qual são emitidas diretrizes que permitem a qualquer membro do público se envolver, tem permitido ao movimento BDS ganhar impulso ano após ano ao longo desses quinze anos, elevando uma consciência política econômica global sobre as escolhas do consumidor, permitindo um ponto de partida fácil para o engajamento político das pessoas ao redor do mundo, já que reivindica vitórias econômicas e culturais significativas.
Este modelo deve ser construído e talvez um corpo como o da Internacional Progressista tenha a estrutura certa para ele. Tal modelo poderia criar um comitê supranacional para boicotes de carbono com um corpo rotativo de membros dos países do Sul Global designando empresas sediadas no Norte para serem adicionadas a uma lista. A cada ano, vinte empresas poderiam ser adicionadas à lista, juntamente com diretrizes de como elas podem ser direcionadas. Estas incluiriam empresas de energia, é claro, mas também deveriam ser estendidas a empresas que ocupam posições obscuras e estratégicas na Cadeia do Carbono.
Tal comitê, se bem dotado, poderia então desenvolver um portfólio de informações para oferecer anualmente ao público, incluindo a análise das 20 empresas:
Tal comitê poderia se tornar um fórum vital para um novo capítulo de coordenação supranacional necessário para enfrentar a exploração supranacional de que desfrutam os principais atores do topo da cadeia do carbono e seus beneficiários de nível médio. Também poderia ser uma arena útil para a coordenação Sul-Sul: nós, no Egito, temos muito a aprender, por exemplo, com a Nigéria e com as múltiplas ações judiciais movidas contra supermaiores - inclusive Eni - nos últimos anos.
Finalmente, poderia facilitar a coordenação necessária para a realização de campanhas plurianuais, de vários países. Vejamos, por exemplo, a Siemens. Como mencionado acima, eles ganharam recentemente o maior contrato da história da empresa para construir três usinas de ciclo combinado no Egito. Estes fatos, considerados isoladamente, não apresentam um alvo realista para uma campanha de boicote. Mas considere que, em 2019, a Siemens retirou a licitação para construir uma extensão do Jerusalem Light Rail: um controverso projeto de infra-estrutura para cimentar ainda mais a colonização de Jerusalém por Israel. A retirada da Siemens foi o resultado de vários anos de campanha dos ativistas da BDS. Foi, porém, fundamental na construção da infra-estrutura de hidrocarbonetos no Egito que permitiu a Israel exportar o gás do campo Leviatã. Havia uma oportunidade para um esforço supranacional lá, não podemos perder as oportunidades futuras.
O fim do capitalismo industrial fará ruir o regime saudita e evaporará sua rede regional de procuradores reacionários apoiados por seus petrodólares, antes ilimitados.
A Saudi Aramco - a empresa mais "valiosa" do mundo, ativo central do regime saudita e fonte singular da maior poluição da história - subiu para a venda. Por quê? Por que vender a espinha dorsal do seu país a investidores orientados apenas pela extração de lucros? Porque o tempo está acabando.
O custo das energias renováveis cai ano após ano. Estamos agora a uma distância próxima de ser mais barato construir novas centrais eólicas e solares do que manter as térmicas existentes. 79% dos geradores de carvão europeus - prejudicados pelos concorrentes renováveis - já estão funcionando com prejuízo. As energias renováveis, mesmo por estimativas conservadoras da Agência Internacional de Energia (AIE), irão igualar a produção de carvão dentro de cinco anos. As emissões da Índia ainda cresceram 2% no ano passado, mas foi o menor aumento em 20 anos, já que o vento e a energia solar têm aumentado. A cada mês é estabelecido um novo recorde de energia fotovoltaica de baixo custo. Um novo recorde (novamente, da conservadora IEA), declarou que a energia eólica em alto mar tem a capacidade de atender a toda a demanda mundial de energia mais de 11 vezes.
Tudo isso foi antes da força maior do coronavírus. A guerra de preços desencadeada por Mohammed Bin Salman em março, combinada com o colapso global da demanda, viu os preços do petróleo mergulharem brevemente em território negativo à medida que o armazenamento dos EUA aumentava; os oceanos estão atualmente pontilhados de Very Large Crude Carriers (navios transportadores muito grandes de petróleo) operando como depositários flutuantes de petróleo sem nenhum lugar para onde ir; Warren Buffet descarregou todas as suas ações de companhias aéreas americanas, dizendo que a indústria provavelmente nunca se recuperaria totalmente; os trabalhadores das indústrias pesadas exigiram que suas fábricas fossem reformadas para produção de equipamentos médicos; os prefeitos de 40 grandes cidades publicaram uma declaração conjunta comprometendo seus planos de recuperação com maior igualdade e resiliência climática, trabalhando rapidamente para incentivar o ciclismo e aumentar o espaço público; um importante paper de política pública que pesquisou 200 banqueiros centrais e ministros das finanças de todo o mundo encontrou um acordo comum de que os esforços de recuperação econômica devem reduzir as emissões de carbono.
Há uma oportunidade de fazer de 2019 o ano em que o petróleo atingiu o auge.
Por outro lado, tanto a China quanto os Estados Unidos suspenderam as proteções ambientais, isentaram poluidores e concederam incentivos fiscais às empresas aéreas; as grandes corporações estão preparadas para engolir inúmeros concorrentes menores; o petróleo barato incentivará o consumo, as preocupações com a saúde impulsionarão o uso de automóveis; as importações de carvão aumentaram 35% na China; o aprofundamento da vigilância e dos controles fronteiriços serão abraçados com entusiasmo por alguns segmentos das sociedades e, em todos os países, sem falta, são os mais pobres os que mais sofrem.
O momento em que nos encontramos está repleta de perigos e possibilidades.
O fim da era do petróleo vai alterar radicalmente o status quo político em todo o mundo, mais particularmente no norte da África e no oeste da Ásia, onde o controle dos recursos de hidrocarbonetos é uma característica determinante, seja do regime militar argelino; da fragmentação da Líbia; da hostilidade intra-sudanesa; da guerra turca no Mediterrâneo; da repressão territorial curda; da guerra fria saudita/iraniana; da política de Trump de "tomar o petróleo" da Síria; do proto-imperialismo dos Emirados e do Qatar; da destruição do Iraque; e das ditaduras azeri, cazaque, turcomena e usbeque.
Havia um momentum político e tecnológico em todo o mundo que está sendo acelerado agora pela COVID-19. Trabalhando para findar a Era do Petróleo, estamos também trabalhando para findar a política de governo desta época.
A descarbonização e a descolonização não são projetos políticos separados, são aceleradores mútuos.
***
O momento em que nos encontramos está repleta de perigos e possibilidades.
O fim da era do petróleo vai alterar radicalmente o status quo político em todo o mundo, mais particularmente no norte da África e no oeste da Ásia, onde o controle dos recursos de hidrocarbonetos é uma característica determinante, seja do regime militar argelino; da fragmentação da Líbia; da hostilidade intra-sudanesa; da guerra turca no Mediterrâneo; da repressão territorial curda; da guerra fria saudita/iraniana; da política de Trump de "tomar o petróleo" da Síria; do proto-imperialismo dos Emirados e do Qatar; da destruição do Iraque; e das ditaduras azeri, cazaque, turcomena e usbeque.
Havia um momentum político e tecnológico em todo o mundo que está sendo acelerado agora pela COVID-19. Trabalhando para findar a Era do Petróleo, estamos também trabalhando para findar a política de governo desta época.
A descarbonização e a descolonização não são projetos políticos separados, são aceleradores mútuos.
***
Tanto Bernie Sanders quanto Jeremy Corbyn colocaram o Green New Deal no centro de seu programa eleitoral, e ambos foram derrotados - em grande parte pelas maquinações interiores de seus próprios partidos. Hoje, os Green Stimuluses (estímulos verdes) e os Programas de Recuperação Verde são oferecidos desde a esquerda radical até o centro neoliberal. A própria idéia do que é 'verde' deve ser contestada.
Seria verde subsidiar a implantação de carros elétricos para propriedade individual? Tecnicamente, sim: menos motores de combustão significa menos emissões de carbono. Mas a bateria para cada carro elétrico requer uma quantidade significativa de cobalto, 75%, o qual é extraído na República Democrática do Congo, a maior parte sob condições terríveis, "artesanais". Empresas com baterias no centro de seus produtos como a Apple e Tesla fizeram promessas ao longo de anos para "melhorar a visibilidade da cadeia de abastecimento" ou remover o cobalto de suas baterias por completo, mas isso não aconteceu.
O cobalto é um exemplo entre as dezenas de futuras complexidades da descarbonização. Um estudo recente da Comissão Européia concluiu que para que a Europa se descarbonize totalmente até 2050 será necessário um aumento maciço no atual fornecimento mundial de matéria-prima. Para construir a infra-estrutura eólica e solar necessária para alimentar a União Européia, serão necessários 300% de todo o germânio atualmente produzido no mundo; 40 vezes o atual fornecimento de índio, gálio, telúrio, cádmio e selênio; a atual produção global de cobre, vidro, aço, concreto, alumínio e plástico precisará aumentar em 20 vezes. E isso é só para descarbonizar a UE.
As corridas por recursos que impulsionaram a colonização das Américas e da África ainda não terminaram. Os programas de Recuperação Verde do Norte podem ser muito ruins para aqueles que vivem nas colônias de recursos. Se não forem geminados com uma política séria de descolonização, é fácil ver como os ditadores do Sul serão permanentemente acomodados, desde que garantam linhas de suprimento de minerais chave; como até mesmo os estados semifuncionais entrarão em colapso em repúblicas de tântalo de pedreiras artesanais governadas por senhores da guerra menores; como, uma vez que a UE tenha atingido a emissão líquida zero, as velhas "Nações Selvagens" serão retransformadas em poluidoras primitivas e as enormes dívidas de carbono e coloniais que lhes são devidas serão simplesmente esquecidas.
Porções da África, Ásia e América Latina serão sacrificadas para "salvar" o planeta. É um futuro, em outras palavras, não muito diferente do nosso presente.
O que nos traz de volta ao presente e à necessidade vital de um Green New Deal Global.
É impossível prever o que os próximos meses trarão. Uma grande reorganização do nosso mundo já está em andamento: uma depressão sem precedentes começou, o petróleo está em crise, os Estados-nação ressurgentes estão recebendo poderes policiais extraordinários, medidas de vigilância sem paralelo estão sendo adotadas, e a cada dia se aproxima a possibilidade de um colapso em cascata dos sistemas financeiro e político.
Quem sabe onde estaremos daqui a um ano?
A Janela Overton - o espectro mutável de idéias consideradas politicamente palatáveis - tem sido tão completamente aberta nestas últimas semanas que quase qualquer futuro se tornou possível. Quem se surpreenderia se, daqui a três anos, nos encontrássemos vivendo em um sistema global de vigilância biométrica constante, liderado pela superpotência chinesa recentemente dominante, que reorganiza o mundo em uma hierarquia de saúde de modo a garantir que não haja interrupção futura do crescimento do mercado.
Igualmente possível seria uma reorganização social maciça em torno da saúde pública, à medida que populacões de todo o mundo - arrancadas por um momento dos ritmos supostamente imparáveis do capitalismo - saíssem de seus bloqueios para uma ordem econômica em colapso e exigissem que ela fosse reconstruída sobre princípios de sustentabilidade, transparência e comunidade, com uma contínua primazia da vida humana e ecológica sobre as exigências do mercado.
Através dos ciclos de crise da história, há oportunidades no momento da reconstrução.
Estamos nos aproximando de um agora.
Uma versão deste ensaio apareceu originalmente em Mada Masr como Carbon Colonies & A Green New Deal, em janeiro de 2020. Ele foi significativamente atualizado para publicação aqui.
Foto: Pikist