Economy

As raízes da crise alimentar no Paquistão

A solidariedade deve substituir o lucro como princípio organizador do sistema alimentar e da economia do Paquistão, para evitar a fome em massa no país.
A quarentena da COVID-19 levou milhões de paquistaneses a passarem fome. Os primeiros casos de COVID-19 foram diagnosticados em meio ao ataque à economia do país pelo governo de Tehreek-e-Insaf (PTI) nos últimos dois anos.
A quarentena da COVID-19 levou milhões de paquistaneses a passarem fome. Os primeiros casos de COVID-19 foram diagnosticados em meio ao ataque à economia do país pelo governo de Tehreek-e-Insaf (PTI) nos últimos dois anos.

O primeiro ministro Imran Khan, cujo mandato já havia sido responsável pela perda de mais de um milhão de empregos, apostou na cartada populista: os paquistaneses pobres não podem se dar o luxo de umlockdown.

Comida barata sob ataque

Não foi esta a linha que o governo adotou quando impôs acontraçãodeliberada da economia logo após chegar ao poder. Além de reduzir o PIB em 30 por cento em um ano e entregar o controle das políticas fiscais ao responsável pelo FMI no Egito, o governo do partido PakistanTehreek-e-Insaf(PTI)iniciou uma campanhacontra os alimentos baratos no país.

Poucos meses depois de chegar ao poder, em dezembro de 2018, o governo do PTI anunciou um plano para fechar 1.000 mercados estatais em todo o país. Esse ataque aos mercados do governo explica porque o Estado é incapaz de fornecer alimentos aos setores mais pobres da sociedade durante a quarentena da Covid-19. Os mercados estatais foram criados no início dos anos 1970, e desempenharam um papel crucial no fornecimento de alimentos baratos à crescente população do país em meio às migrações rurais em massa decorrentes da Revolução Verde. Desde o anúncio do fechamento dos mercados, seus funcionários se engajaram na luta pela sua manutenção. Enquanto Asad Umar, o ministro do Planejamento, explicava ao público como fazer encomendasonlinenos mercados estatais, todos eles entraram em greve dia 24 de abril, apesar da quarentena, dando continuidade à sua luta pelos salários não pagos e pelo acesso a alimentos baratos para os cidadãos mais pobres do Paquistão.

No ano fiscal seguinteo governo deixou o preço final do trigo aumentar, o que culminou na alta dos preços do trigo e do açúcar em janeiro. Após meses de lucros elevados com ascommoditiesessenciais, a Agência Federal de Investigação elaborou um relatório surpreendentemente transparente que apontou funcionários-chave do governo como beneficiários da manipulação de preços. Entre os citados estão o ministro da Segurança Alimentar, Khusro Bakhtiar, o chefe do comitê para a Emergência Agrícola, Jehangir Tareen, e Moonis Elahi, membro da aliança governamental. Os capitalistas agroindustriais que controlam o processamento e armazenamento, em detrimento dos produtores de trigo e cana-de-açúcar, se beneficiaram dolobbypara obter subsídios para a exportação de açúcar e trigo, ao mesmo tempo em que se beneficiavam dos elevados preços do açúcar processado e do trigo, criando uma escassez artificial desses alimentos essenciais em todo o país. O relatório confirma que os preços do trigo subiram, apesar de haver 21 milhões de toneladas de trigo armazenadas.

Fome e desnutrição antes da COVID-19

O duplo ataque do governo do PTI aos alimentos baratos ocorreu justamente quando começou a quarentena da COVID-19. Com o sistema de distribuição pública ameaçado e os preços dos alimentos essenciais fora de controle, milhões de trabalhadores desempregados foram abandonados e tiveram de se virar por conta própria. É evidente que as políticas do governo tinham por objetivo desestabilizar o frágil equilíbrio do sistema alimentar do Paquistão.

A ironia do primeiro ministro, Imran Khan, em seu discurso inaugural sobre a dor causada pela desnutrição está em séria contradição com as verdadeiras políticas governamentai. Em vez de visar às causas estruturais da pobreza e da desnutrição, Khan anunciou um plano de "aviários domésticos". De alguma forma, os frangos domésticos iriam se disseminar, enquanto os preços dos alimentos aumentavam em pelo menos 20 por cento em um ano. Essa política foi um fracasso, pois continuou deliberadamente, sem que se buscasse entender a razão pela qual milhões de pessoas seguem famintas em todo o país.

A Pesquisa Nacional deNutrição, realizada em 2018, mostra que um em cada cinco paquistaneses é afetado por um quadro de fome aguda. Em 2017, o Programa Mundial de Alimentos (ONU) estimou que 68% das famílias paquistanesas não podiam arcar com uma alimentação com valores nutricionais adequados. Some-se a isso o fato de que uma em cada cinco famílias teria vivido experiências traumáticas causadas por enchentes, secas e desabamentos, afetando gravemente a sua ingestão de alimentos ao longo do ano. Cerca de dois terços das moradias no país são acometidas por má nutrição, mas há uma diferença estridente entre o nanismo infantil nas áreas rurais, que chega a 43 por cento, quando comparado com os centros urbanos cuja porcentagem é de 34 por cento.

A razão pela qual o sistema alimentar do Paquistão não funciona

Essas estatísticas são terríveis, mas não são novidade alguma para o Paquistão. O mito igualitário da "agricultura camponesa", introduzido pelo colonialismo britânico, não correspondeu a um modelo de campo da Inglaterra moldado por proprietários de terra, arrendatários, pequenos agricultores explorados e uma vasta massa de trabalhadores agrícolas.O aumento líquido na produção de grãos em assentamentos coloniais nos vales dos rios Indo e Peshawar, tiveram como contrapeso grandes latifúndios, impostos agrários elevados, uma sociedade rural altamente desigual e mercados voltados para a exportação decommodities. Mesmo estando cercados pelos exuberantes campos verdes dos assentamentos agrários, os produtores de alimentos continuaram a passar fome.

Esses assentamentos agrários coloniais foram o alicerce do sistema alimentar nacional do Paquistão. À medida que novas fronteiras agrícolas eram abertas nas províncias de Sindh, Balochistan e Saraiki Wasaib, durante os anos 1960, o novo Estado manteve o mesmo modelo de expansão agrária. Muitos ainda pensam que o desenvolvimento da "agricultura nacional" das décadas de 1950 e 1960 é o modelo ideal para resolver a atual escassez de alimentos no país. Entretanto, mesmo quando a produção de grãos dobrou no período pós-Revolução Verde, isto não mudou grande coisa para a maioria dos trabalhadores pobres do campo e para o crescente número de trabalhadores urbanos pobres.

Enquanto os pequenos e grandes produtores de alimentos permaneceram dependentes de mercados agrários por pelo menos um século e meio, o período pós-Revolução Verde foi marcado pelo notável incremento dessa dependência para uma ampla gama de insumos agrários, tais como sementes, fertilizantes, máquinas e agrotóxicos. Mediante despejos e a mecanização da agricultura, a Revolução Verde inaugurou um processo de desestruturação dos camponeses, que levou à perda das terras e da subsistência básica para milhões de pessoas pelo país. Em consequência, criou-se um vasto excedente populacional e uma crise cuja solução levou o Estado a promover migrações maciças para o Golfo, e houve um aumento da população urbana ocupada em trabalhos não qualificados.. As populações que já viviam em situação de insegurança alimentar ficaram em condições ainda piores.

A Covid-19 atinge a classe trabalhadora

O fato é que o sistema alimentar do Paquistão não funciona e durante a crise do coronavírus piorou ainda mais. Os excedentes populacionais expulsos do campo encontraram nos empregos do setor informal algo semelhante a um abrigo.Mesmo antes do anúncio da quarentena da Covid-19, as grandes fábricas têxteis haviam fechado suas unidades - um efeito dominó decorrente do colapso do mercado europeu. As fábricas mantêm suas práticas de longa data, impondo políticas contrárias à organização sindical e empregando mão de obra sem contrato - um presságio mais amplo do colapso setorial e do desemprego em massa. O fechamento de fábricas têxteis significa o fim de todas as etapas do processamento desde os produtores e trabalhadores na colheita do algodão até os operadores de maquinários. Com a plantação do algodão começando em abril, devemos nos preparar para outro colapso no cultivo do mesmo, já que os agricultores esperam uma demanda baixa. Isto, por sua vez, se traduzirá numa grande redução na contratação de mão de obra no campo, onde a partir do outono ocorre a colheita do algodão.

Devido ao colapso da cadeia têxtil do algodão, o proletariado urbano e os trabalhadores agrícolas estão em uma situação de miséria cada vez mais degradante. A história se repete em todos os setores da economia. Com muitos dos chamados trabalhadores formais perdendo o emprego, não estranha que a maioria dos 73,3% da força de trabalho informal do Paquistão tenha ficado sem nenhuma fonte de renda. A situação nos centros urbanos é desesperadora. A imagem da classe trabalhadora urbana nas ruas amedronta as elites e as camadas de profissionais abastados.

Muitos se lembram dos motins por comida ocorridos em 2008 no Paquistão. A sua repetição não é uma possibilidade remota, visto que o fornecimento de alimentos às classes médias altas e à elite do país não foi interrompido enquanto as populações urbanas e pobres passam fome. As lojas de alimentos que abastecem a classe média e a elite permanecem abertas, enquanto os vendedores informais atendendo os pobres com seus carrinhos na rua não puderam operar livremente, devido às restrições de mobilidade. As ameaças de saques aumentaram, já que o Estado continua sem tomar providências para aliviar a miséria de quem passa fome durante a pandemia. Embora o aparato de segurança do Estado tenha imposto a quarentenaà força, o governo tem tido um papel irrisório na distribuição de alimentos às populações mais vulneráveis.

A Covid-19 atinge os agricultores

Sem dúvida, a agricultura foi o setor mais afetado da economia, embora seja crucial para alimentar a população e para que as indústrias tenham mão de obra disponível para funcionar. O setor agrícola é responsável por uma parcela significativa da renda de mais da metade da população do Paquistão, além de uma parte importante dos insumos industriais e de quase todo o abastecimento alimentar do país.

Há mais de uma década o Paquistão atravessa uma crise agrária - os dois governos anteriores declararam estado de "emergência agrícola" no país. A agricultura também atravessa uma crise ecológica de longa data, que remonta ao processo da colonização agrária. Essa é uma crise que vem se intensificando com o passar do tempo. O mais grave tem sido a interrupção de quaisquer formas de produção das culturas de subsistência praticadas no último século e meio. A situação tornou-se ainda mais aguda nas duas últimas décadas, quando os preços dos insumos agrícolas seguiram aumentando e superaram os preços das safras.

Essa terrível situação é o contexto em que os produtores agrícolas do Paquistão entraram na quarentena da Covid-19. O fechamento completo dos mercados agrícolas, especialmente daqueles que compram diretamente dos agricultores, provocou perdas significativas para a categoria. Com a suspensão do movimento de mercadorias, culturas prontas para a colheita, entre elas grãos, ficaram apodrecendo nos campos. Isto não só se traduz em perdas imediatas para os agricultores, mas significa que o estoque tradicional de trigo do Paquistão já não está disponível. Uma vez terminada a escassez forçada, o país terá que se preparar para, no mínimo, outro ano de escassez de grãos essenciais. As verduras e legumes cuja produção é mais custosa morreram no pé; além das perdas para os agricultores, isso também levou a uma grande redução na diversidade de alimentos disponíveis à mesa das populações rurais e urbanas.

Embora fosse esperado que o desabastecimento dos principais mercados elevasse o preço dos alimentos essenciais, a situação foi inversa. O colapso da demanda devido ao desemprego e ao fechamento de todo tipo de venda de alimentos rebaixou o preço de muitos itens alimentícios. Mesmo antes do coronavírus, os pequenos agricultores tinham preços mais baixos devido à sua capacidade limitada de transportar os produtos da fazenda aos mercados. Em condições delockdown, toda a rede de comércio agrícola ficou no limbo. Para os comerciantes que continuam operando, isto abriu o precedente de explorarem ainda mais os pequenos agricultores, pagando-lhes preços bem abaixo do mercado. Há vários relatos sobre empresas multinacionais que têm comprado leite de agricultores a um terço do preço normal, enquanto continuam a fornecer leite nos centros urbanos pelas mesmas taxas de antes.

Entre os produtores de alimentos em risco de colapso encontra-se a avicultura comercial, que depende da produção em massa não sustentável de frangos para o mercado. Com o aumento de casos de coronavírus e das mortes de trabalhadores de frigoríficos ao redor do mundo, as condições de trabalho precárias dos açougues e frigoríficos são evidentes. Além das condições de trabalho precárias, os trabalhadores ao longo destas cadeias de abastecimento estão sofrendo devido à crise. No Paquistão a quarentena fez o preço do frango cair de mais de 250 rúpias o kg para 90 rúpias , já que a demanda continuou a diminuir. Relatórios indicam que os centros de incubação estão deixando os pintinhos morrerem e estão destruindo os ovos porque as granjas não podem mais ser abastecidas. A produção industrial de carne continua a ser particularmente vulnerável a pandemias. Milhões de aves tiveram de ser abatidas em 2007 devido à propagação da gripe aviária. Ao mesmo tempo que a produção industrial de carne no país sofrer com os efeitos da pandemia da Covid-19, também é extremamente vulnerável a novas pandemias.

O retorno forçado de milhões de trabalhadores desempregados às suas casas criou, pela primeira vez em décadas, um excesso de mão de obra no campo. Os agricultores, que frequentemente se queixam da escassez de mão de obra na época da colheita, agora enfrentam uma temporada singular, em que há mão de obra disponível, mas os mercados agrícolas estão mais fechados. Eles não têm qualquer incentivo para fazer a colheita, ante o colapso da demanda de alimentos. É possível que alguns escolham a visão romântica de que este êxodo em massa do trabalho urbano indica que a chamada "economia moral" da aldeia é o último refúgio dos pobres, onde, de alguma forma, haverá subsistência para a população sem terra. Mas a realidade é que é pouco provável que esta mão de obra excedente obtenha alimentos se as plantações não forem colhidas e as safras não forem vendidas. Embora exista a possibilidade teórica de que surja alguma forma de economia solidária, como nos relatos sobre a retomada em pequena escala das práticas de permuta em partes da Índia, existem barreiras significativas para tais práticas num contexto em que os insumos agrícolas e a mão de obra são cada vez mais monetizados devido à necessidade. A realidade é que a maioria das unidades domésticas de pequenos e médios produtores compram alimentos no varejo. Isto significa que embora tenham acesso a alguns alimentos não comercializados, uma série de fatores, tais como a escolha das culturas, o tamanho das propriedades, a quantidade de dívidas contraídas e o gado doméstico, são fundamentais para a capacidade de determinados agricultores resistirem à crise.

Uma pandemia ecológica permanente

A pandemia do coronavírus intensificou a 'pandemia' ecológica que vem crescendo na agricultura paquistanesa desde meados do século XX. O sistema agrícola não só é vulnerável devido à elevada dependência do mercado como tem sofrido com a crescente crise ecológica do modelo de exploração agrícola do país. Há poucas dúvidas de que isto está relacionado ao modo agroindustrial de produção, que depauperou o solo e os lençóis freáticos , reduziu a biodiversidade, promoveu monoculturas e espalhou veneno na forma de herbicidas, pesticidas e fertilizantes químicos por toda a cena rural. A Revolução Verde alterou profundamente a relação dos agricultores e camponeses com a terra e o gado, e a lógica da produtividade sesobrepôs à lógica da sustentabilidade. As principais culturas, como o algodão, continuam sendo atacadas por doenças e infestações de pragas, as quais se tornaram mais intensas desde a adoção do algodão BT (transgênico).

A ameaça ecológica à agricultura se agravou em decorrência de mudanças externas, tais como as alterações dos padrões climáticos e as nuvens de gafanhotos. As chuvas fora de época continuam prejudicando severamente a colheita do trigo, safra após safra. Mais uma vez, a cultura de trigo remanescente está destinada a sofrer com as fortes chuvas sazonais. Isto sem mencionar ciclos de cheias e secas que todos os anos continuam a impactar grandes áreas do país. O maior ataque de gafanhotos, que varreu do sul do Punjab ao Sindh no ano passado, voltou outra vez e seguirá voltando , já que décadas de uso de pesticidas destruíram populações inteiras de aves e animais insetívoros. A resistência natural às pragas foi destruída, e os pesticidas químicos têm uma capacidade limitada de combater novas infestações de pragas e doenças.

Um sistema alimentar à beira do colapso

O retorno das populações excedentes ao Paquistão rural acrescenta mais bocas a um sistemaque não tem sido bem sucedido para os grandes produtores de alimentos, e muito menos para o resto da população. A situação remete ao trabalho de Amartya Sen, segundo o qual grandes períodos de fome ocorreram em tempos de produção de grande escala em virtude de falhas do mercado. Recentemente o Programa Alimentar Mundial emitiu alertas apocalípticos para uma fome de "proporções bíblicas". As perspectivas de recuperação econômica no pós Covid-19 no contexto global são sombrias. Neste cenário, a economia já prejudicada do Paquistão enfrenta desafios particularmente significativos após dois anos do governo de austeridade do PTI-FMI.

Teremos desemprego em massa com a junção da retração econômica criada pela política de austeridade e a retração econômica pós-pandemia. A capacidade de recuperação dos principais setores industriais que dependem das exportações fica atrelada à rápida recuperação da demanda na Europa, o que é improvável, já que os empregos reduziram e os salários foram cortados mundialmente, após o fim das quarentenas impostas pela Covid-19. A incapacidade de recuperação industrial teria um impacto severo na agricultura, pois o setor têxtil e o de couro são espaços cruciais para os produtores agrícolas venderem seus produtos. Além disso existe a séria dúvida de se os trabalhadores, mesmo aqueles com contratos extremamente abusivos, poderão voltar a trabalhar, caso as indústrias e negócios não reabram. Isto, combinado às perdas a curto e longo prazo sofridas tanto pelos pequenos produtores rurais quanto pelos grandes produtores capitalistas, deteriora qualquer resiliência que o acesso à terra cultivável poderia proporcionar. A dependência do mercado é um cálice envenenado para os pequenos agricultores, mesmo nos bons momentos. A série de quarentenas impostas pela Covid-19 fez o excedente do cultivo ficar preso nos campos ou ser vendido a preços extremamente baixos. A porcentagem de trigo que vier a ser colhida no Paquistão vai indicar se as previsões apocalípticas de fome do Programa Alimentar Mundial irão se concretizar. No entanto, é evidente que os riscos são graves num setor que gerou fome e subnutrição em todo o universo rural-urbano, mesmo quando deveria estar dando certo.

Há saída para isso?

Duas tendências apontam como sair desta situação. As soluções tradicionais propõem mais da mesma abordagem falida, sugerindo intensificar processos que aumentam a vulnerabilidade dos produtores de alimentos. As propostas incluem aumentar a integração dos agricultores ao mercado, , promover a construção de armazéns frigoríficos e incentivar o cultivo de culturas mais comerciais para servir à agenda agroindustrial global. Tais soluções reproduzem a arrogância do setor privado, da Organização Mundial do Comércio e de um grupo heterogêneo do chamado "comércio livre" de apoio aos países do Norte Global, que se beneficiam do dumping de grãos, dos excedentes de leite no Sul Global e da importação de alimentos baratos do Sul.

Estas ideias estão fora de lugar no momento em que muitos países ao redor do mundo procuram "renacionalizar" os seus sistemas alimentares. É evidente que quando a Europa fechou as fronteiras durante a quarentena da Covid-19, ela continuou a proteger a sua agricultura mediante a importação de mão de obra agrícola do Leste Europeu. É evidente que a quarentena expôs o estado desastroso do sistema alimentar agroindustrial neoliberal. Ele não só não protege os direitos sociais, econômicos e políticos das pessoas envolvidas na agricultura, como não tem cumprido a sua tarefa principal: fornecer alimentos à população mundial.

O colapso do sistema alimentar mundial face à Covid-19 forçou o retorno do "nacionalismo alimentar”. Há lições importantes a serem aprendidas com a última era do nacionalismo alimentar, surgido dos movimentos anti-coloniais dos anos 1950 e 1960. A questão fundamental agora, como naquele momento, é: de quem será a voz que moldará o futuro dos mercados de alimentos? Nos anos 1960, no apogeu dos movimentos camponeses no antigo mundo colonizado, os agricultores do Norte anticomunista ganharam o debate mediante os mecanismos de empréstimos do Banco Mundial e os programas concebidos pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura. Novos países independentes, saqueados pelos antigos colonizadores, dependiam demais de empréstimos e know-how externo para traçar um caminho que rompesse as amarras das redes neocoloniais do comércio global. Foram implementadas as Revoluções Verdes, que durante um tempo pareciam recompensar com uma produção maior os agricultores e os estados que se esforçavam para produzir alimentos suficientes para as suas próprias populações e, também excedentes alimentares. Este boom de curto prazo foi rapidamente seguido pelo colapso dos preços internacionais das matérias primas agrícolas, que foram e continuam sendo controlados pelo Norte Global. O nacionalismo alimentar estava morto quando os déficits comerciais foram preenchidos com dívidas internacionais e a liberalização forçada das economias do Sul Global por meio do FMI, nos anos 1990.

O impacto da Covid-19 nos sistemas alimentares levantou sérias questões sobre o "nacionalismo alimentar", em particular sobre a capacidade do Estado em pôr fim à fome. Como observado, a atual crise foi agravada pela ofensiva do próprio governo paquistanês contra os alimentos de baixo custo. Além disso, as anomalias no abastecimento de alimentos, que se deslocam da fazenda para o mercado e do mercado para o consumidor, ocorrem dentro das fronteiras econômicas nacionais. O sistema alimentar nacional continua a sofrer a violência da austeridade e da especulação. Embora o fracasso do Estado em fornecer alimentos a todos dentro das suas fronteiras nem sempre se repita, é evidente que a sua atual formação e o sistema alimentar nacional são incapazes de suprir as populações mais vulneráveis do país. Além disso, a dependência do mercado em que vivem os agricultores e camponeses tem significado que culturas estão sendo desperdiçadas, em vez de serem distribuídas entre os contingentes de mão de obra excedente. O retorno em massa às zonas rurais levanta sérias questões sobre a relação binária entre espaço urbano e rural, que tradicionalmente sustenta o modo como pensamos os sistemas alimentares. A classe trabalhadora há muito oscila entre estes dois espaços para assegurar os meios da sua reprodução. Qualquer que seja o rumo a seguir, este deve ser orientado de modo a assegurar um caminho para a reprodução dos trabalhadores, tanto em espaços urbanos como rurais. Embora as habitações urbanas não possam se tornar auto sustentáveis no abastecimento de alimentos, os urbanistas fariam bem em incorporar instalações para fazendas urbanas nos assentamentos da classe trabalhadora. O mundo rural precisa ser transformado com base em dois princípios: redistribuição de terras e localização. Um não pode funcionar sem o outro se quisermos construir um sistema alimentar para abastecer a população - especialmente em tempos decrise.

Aqueles que traçam hoje um caminho para eliminar a fome têm duas escolhas: seguir as políticas fracassadas do lobby da "globalização de alimentos" ou ouvir a voz do movimento global da "soberania alimentar", enraizada nos movimentos camponeses do nosso tempo. La Via Campesina South Asia, que reúne mais de vinte grandes movimentos camponeses da região, é uma das vozes que apresenta propostas detalhadas para mitigar o impacto imediato do confinamento da Covid-19, e princípios para transformar o sistema alimentar de modo a proteger os camponeses e trabalhadores para além da crise atual.

É evidente que o caminho para a reforma agrária deve ser traçado sobre uma nova base, com alguns princípios dos movimentos camponeses que foram abandonados prematuramente nos anos 1970, e outros dos movimentos camponeses atuais. Devemos ressuscitar o lema "Terra para o Povo", numa época em que centenas de milhões de trabalhadores voltaram às suas aldeias para encarar a fome em massa devido à falta de terras. É também tempo de construir uma nova solidariedade entre camponeses e trabalhadores urbanos, baseada no reconhecimento da relação partilhada entre terra, trabalho e alimentos, que o confinamento nos fez recordar que é o coração pulsante do sistema alimentar. Devemos olhar para os princípios da agroecologia camponesa em busca de um novo código ecológico para organizar a produção capaz de evitar a catástrofe ecológica dos nossos sistemas agrícolas.

Hashim Bin Rashid está escrevendo sua tese de doutorado sobre movimentos camponeses no Punjab na SOAS -School of Oriental and African Studies, em Londres. Ele coopera com o Comitê Kissan Rabita do Paquistão (PKRC).

Mohsin Abdali está realizando sua pesquisa de mestrado em Estudos Agrícolas na Universidade do Punjab, em Lahore. Ele é um dos membros fundadores do Progressive Students Collective, do Student Herald e do Agrarians Collective.

Available in
EnglishPortuguese (Portugal)Portuguese (Brazil)GermanFrenchSpanish
Authors
Hashim Bin Rashid and Mohsin Abdali
Translators
Martins Moraes , Daniela Cestarollo and Cristina Cavalcanti
Date
26.08.2020
Source
Original article🔗
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