Nota do editor: Este artigo é parte da série especial do Himal Southasian Unmasking Southasia: The pandemic issue. Você pode ler a nota editorial da série aqui.
Às dez da manhã as lojas estão abertas, mas em Sangli, a 376 quilômetros de Mumbai, as mercadorias nas prateleiras acumulam poeira. Kiran Deshmukh acordou sem pressa. As estradas vazias queriam dizer que ela tinha pouco a fazer.
Deshmukh é trabalhadora do sexo em Sangli há 27 anos. Ela tinha só 16 anos quando fugiu de Pune e foi parar na cidade por acidente - nunca tinha andado de trem, e desceu em Sangli pensando que era Calcutá. Ela desfruta da liberdade que o trabalho sexual lhe proporciona, particularmente a possibilidade de fazer o próprio horário, de acordo com suas próprias condições. Isto lhe permitiu comprar uma casa e criar e educar três filhos. Deshmukh também trabalha para a Sangram, uma organização que há mais de uma década se dedica à prevenção da violência baseada em gênero e do HIV/AIDS. Hoje ela é responsável pela filial em Sangli. Ultimamente, com o trabalho escasseando e as disputas por clientes, ela tem se encarregado de manter a paz entre os membros de sua comunidade.
À noite Deshmukh começa as suas rondas. São 3 da manhã quando ela para e vai dormir - exausta, faminta, sem ganhar nada na noite. Até os clientes habituais hesitam em visitá-la por medo da transmissão da Covid-19.
A maioria das trabalhadoras do sexo na Índia - estimadas em 1,26 milhões segundo um relatório da Organização Nacional de Controle da AIDS (NACO) de 2010-2011 - foram afetadas pelo lockdown. (Uma pesquisa de 2016 do Programa Conjunto das Nações Unidas para HIV e AIDS (UNAIDS), calculou que a população de trabalhadoras do sexo na Índia seja de 657.800, embora o número real seja provavelmente muito maior). Não há dados governamentais sobre esta comunidade, que sempre viveu na periferia da sociedade indiana. A ausência de dados teve um impacto real com a disseminação da Covid-19.
Em 25 de março de 2020, o governo indiano impôs um lockdown em resposta à epidemia viral. O primeiro-ministro Narendra Modi anunciou a decisão do governo com um dia de antecedência, em 24 de março. Da noite para o dia, milhões de trabalhadores migrantes se viram desorientados, sem meios de ganhar dinheiro para cobrir suas despesas ou viajar de volta para casa. A situação piorou quando as viagens interestaduais foram proibidas, ainda que a implementação tenha sido desigual.
Para es trabalhadores do sexo, isto significou ficar sem clientes. O anúncio repentino os deixou sem tempo para se prepararem. Como muitas trabalhadoras do sexo, Deshmukh tinha poucas economias; antes da Covid-19 ela fazia 500 rúpias por cliente.
No princípio, o governo afirmou que o lockdown duraria 21 dias. Com a rápida expansão da Covid-19 nas cidades indianas, o lockdown foi prorrogado quatro vezes, até 31 de maio de 2020. Durante três meses, Deshmukh, como muitos indianos, ficou dentro da sua casa alugada. Não pôde ver os filhos e as colegas; a sua clientela desapareceu. Padecendo de condições médicas pré-existentes, como o HIV-2 e uma hérnia crônica, Deshmukh não podia viajar nem mesmo para conseguir medicamentos ou consultar um médico. Mais tarde ela conseguiu obter medicamentos com a ajuda da Sangram, mas não teve alívio para uma dor constante na virilha.
Em 22 de março, o Ministério da Saúde e do Bem-Estar da Família enviou uma normativa aos hospitais indianos, instruindo-os a se prepararem para receber uma grande quantidade de casos de Covid-19. A normativa também dizia que as pessoas não deveriam comparecer a consultas ambulatoriais regulares, e priorizou o atendimento aos que apresentassem gripe e outros sintomas associados à Covid-19. Mesmo após o lockdown, com as enfermarias isoladas os profissionais do sexo não tinham acesso aos hospitais. Após muito caos, os profissionais do sexo de Sangli souberam que numa clínica local próxima havia atendimento e distribuição de medicamentos. Contudo, por falta de um anúncio oficial, apenas um punhado de pessoas conseguiu ser atendido.
No que se refere à alimentação, as trabalhadoras do sexo de Sangli confiavam na Sangram, e não no governo. Se não fosse esta ajuda e esquemas similares de ONGs pelo país, os trabalhadores do sexo teriam passado fome, de acordo com Sudhir, uma transgênero trabalhadora do sexo em Sangli.
Sem dinheiro para o aluguel e com as contas de água e eletricidade se acumulando, Sudhir, Kiran e outras trabalhadoras do sexo contraíram empréstimos de agiotas a altos juros, entre 40 e 50%.
A situação era mais difícil para os trabalhadores do sexo nas áreas urbanas, onde o lockdown era mais uniforme e pronunciado. Um estudo intitulado ‘Modelling the Effect of Continued Closure of Red-Light Areas on Covid-19 Transmission in India’ (Modelando o efeito do lockdown contínuo na transmissão da Covid-19 em áreas de prostituição na Índia), inicialmente divulgado em maio de 2020 por pesquisadores da Harvard Medical School, do Massachusetts General Hospital, e da Yale School of Public Health, alegou que o lockdown nas zonas de prostituição em Mumbai, Nova Delhi, Nagpur, Calcutá e Pune reduziria o número de novos casos de Covid-19 em 72% e o de mortes em 63%. O estudo foi amplamente divulgado na mídia indiana. Trabalhadores do sexo e ONGs se rebelaram contra ele, ressaltando que não fora revisado por pares, e alegando que o preconceito pré-existente havia prejudicado os resultados. Após o tumulto, foi noticiado, em 8 de julho, que Yale faria uma revisão do controvertido estudo.
Com o anúncio do lockdown, as zonas de prostituição foram transformadas em zonas de risco. As autoridades bloquearam todas as ruas de entrada e saída, ao contrário de outras áreas, onde o bloqueio foi mais frouxo. Com as ONGs e organizações de ajuda que monitoravam os direitos dos trabalhadores do sexo incapazes de realizar o seu trabalho, muitos trabalhadores do sexo contam que foram detidos pela polícia local sem justa causa. A Suprema Corte indiana havia estabelecido o direito dos trabalhadores do sexo adultos a uma vida digna já em 2011. No entanto, em 24 de setembro, o Supremo Tribunal de Mumbai precisou reiterar a lei e ordenar às autoridades locais que liberassem três mulheres adultas confinadas ilegalmente numa instituição corretiva estatal na cidade.
Es trabalhadores do sexo que vivem em cidades, a maioria dos quais vem de diferentes aldeias e de partes do Sul da Ásia, se viram amontoados em pequenos espaços, com pouca ou nenhuma perspectiva de trabalho, e negligenciados pelo governo. Embora o governo tenha anunciado vários pacotes econômicos e esquemas de distribuição pública (PDS) para fornecer as necessidades básicas aos cidadãos de baixa renda, a inscrição nesses programas inicialmente exigia documentos de identidade, tais como cartões de racionamento e cartões indicando a condição de abaixo da linha de pobreza (BPL). Mais de 43% trabalhadores do sexo indianos não possuem cartão de racionamento e apenas 13% possuem o cartão BPL, informou o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com base em entrevistas feitas em 2006. Quem possuía os documentos estava impossibilitado de sair e tinha apenas dois dias para solicitar o auxílio, contaram as trabalhadoras do sexo. No final, durante meses muitos não tiveram acesso aos alimentos e remédios básicos dos pacotes de auxílio do governo.
Em maio, a ONG Prerana fez uma pesquisa na zona jde prostituição de Mumbai para avaliar as condições sociais e de moradia dos trabalhadores do sexo. Os resultados foram chocantes. A ONG constatou que a maioria das trabalhadoras do sexo de Kamathipura e Falkland Road (60 e 73%, respectivamente) dependiam das doações de alimentos de ONGs e da sociedade civil. Quarenta e seis por cento das mulheres da Falkland Road de Mumbai haviam contraído empréstimos entre 1º e 15 de abril. Muitas tinham feito empréstimos de 10.000 rúpias mais de uma vez com agiotas, sem ter ideia dos juros que teriam de pagar.
Para a maioria dos trabalhadores do sexo, a maior despesa era o aluguel. A pesquisa da Prerana descobriu que a maioria pagava entre 6000 e 9000 rúpias por um quarto, mais do que o preço do aluguel de quartos nos prostíbulos. Em Sangli, Deshmukh paga 5,000 rúpias a um bordel de Gokulnagar, perto da casa dela, para encontrar os clientes. Outros têm que pagar por hora, ou se arriscarem a atender os clientes em qualquer beco escuro que acharem, o que traz riscos.
Sudhir tem 45 anos e faz parte da população hijra da Índia. Ela estudou engenharia e encontrou emprego perto de Sangli para sustentar a mãe e duas irmãs. Infelizmente, Sudhir foi acossada por seus supervisores devido à sua identidade transgênero. Mais tarde, quando ficou muito difícil lidar com o assédio, ela deixou o trabalho de engenharia e voltou para casa. Aqui conheceu outras pessoas da comunidade transgênero e começou a trabalhar na Sangram. A falta de alternativas a levou ao trabalho sexual.
Como parte da comunidade hijra, Sudhir deve seguir regras rígidas. Antes da decisão da Suprema Corte indiana de 2014 que reconheceu o terceiro gênero, a comunidade hijra estava sujeita a um assédio brutal devido às leis da era colonial. Seis anos depois, o estigma social e o autopoliciamento da sua sociedade permanecem praticamente intactos.
Os hijras vivem na sua comunidade e respondem a uma mãe mais velha, conhecida como nayak e guru. As regras impostas a elas são implacáveis. Sudhir conta que os hijras não podem dizer abertamente que fazem trabalho sexual, e é provável que sejam evitadas se revelarem isso publicamente. Aquelas como Sudhir que são francas sobre o seu trabalho não podem participar de outras atividades geradoras de renda da sociedade hijra.
Apesar destas regras, segundo uma estimativa da National Aids Control Organisation (NACO), 62% das 62.137 pessoas transgêneros na Índia se dedicam ao trabalho sexual.
Depois que ativistas transgênero escreveram ao governo sobre a sua situação, foi anunciado que o Instituto Nacional de Defesa Social (NISD), do Ministério de Justiça Social e Empoderamento, concederia 1.500 rúpias por mês aos membros da comunidade. O formulário para obtê-la ficou disponível no site do NISD e, portanto, inacessível a quem não tivesse computador ou dados no celular. Quem não soubesse ler ou escrever estava perdido. Apenas uns poucos puderam preencher os formulários necessários para obter o auxílio. Cinco dias depois o formulário ficou indisponível no site e, no momento da publicação desta história, permanece inacessível. Apenas 24 dos 75 solicitantes de Sangli receberam algum dinheiro do subsídio até agora. Após o primeiro mês, os fundos do governo deixaram de chegar. Ninguém recebeu um centavo desde abril, disse Sudhir.
Em entrevista ao The Wire, Meera Sanghamitra, ativista trans e coordenadora da Aliança Nacional do Movimento Popular em Telangana, confirmou que menos de 1% da comunidade transgênero na Índia tem recebido assistência do NISD.
Sudhir dependia da Sangram para se alimentar, e de uns poucos clientes que de vez em quando depositavam dinheiro na sua conta Gpay para o aluguel e as contas. Em casa, a mãe e as irmãs dependiam da renda que obtinha. Isto criava mais pressão e aumentava a sua depressão e ansiedade a níveis quase incontroláveis. "Pensei muito em suicídio nos últimos seis meses", disse ela.
Em um estudo de 2019, "Tentativas e padrão de suicídio entre principiantes e trabalhadoras do sexo comercial estabelecidas", pesquisadores descobriram que 68 das 100 trabalhadoras do sexo entrevistadas com 18 a 28 anos de idade tentaram suicídio pelo menos uma vez na vida. Trinta e duas haviam tentado pelo menos duas vezes naquele ano. O estudo descobriu que havia uma forte relação entre o número de anos de trabalho sexual comercial e o número e padrão das tentativas de morte por suicídio. Mesmo entre as trabalhadoras mais experientes, com idade entre 30 e 45 anos (das quais outras 100 foram entrevistadas), 70 haviam feito uma tentativa nos últimos dois anos.
A devastação provocada pela Covid-19 no modo de vida dos trabalhadores do sexo levou estes números a um forte aclive. Sangeeta, de 36 anos, rememora a morte de uma amiga poucos dias após o início do lockdown. Ela conheceu Neha (nome alterado) quando estava ajudando a Rede Nacional de Profissionais do Sexo (NNSW) a fazer uma pesquisa para descobrir do que as pessoas precisavam. A jovem estava muito ansiosa e vivia dizendo que não tinha dinheiro, não tinha clientes e se sentia febril. Ela não parava de perguntar quando o lockdown iria acabar, lembrou Sangeeta.
A voz de Sangeeta ficou embargada ao contar a história de Neha. "Eu disse a ela que estávamos todas na mesma situação... Disse que iria encontrá-la quando o trabalho na NNSW terminasse naquele dia". Foi a última vez que alguém viu Neha viva. A jovem de 30 anos foi encontrada morta na manhã seguinte no seu quarto alugado. Ninguém ouviu os seus gritos; apenas o senhorio a procurou cedo de manhã.
Para piorar a situação, os serviços de ambulância locais se recusaram a transportar o corpo de Neha para a família dela, em Karnataka. Mais tarde, um amigo com carro e carteira de motorista concordou em fazer isso, mas pediu 40.000 rúpias pelo trabalho.
Sudhir também recordou uma colega da comunidade transgênero que se suicidou durante o lockdown. Esta pessoa vivia sozinha num vilarejo a 50 quilômetros de Sangli. O confinamento as isolou da comunidade hijra. Devido ao estigma e ao abandono familiar, mulheres e homens transgêneros são mais suscetíveis à depressão em todo o mundo, e o mesmo vale para as hijras indianas. Sudhir lembra que a chamaram várias vezes num estado de ansiedade. As restrições ao movimento impediram que alguém da comunidade a visitasse ou a trouxesse para Sangli. Dois dias se passaram antes de Sudhir e outros membros da comunidade saberem da morte da amiga.
Para amainar os padrões de auto-flagelação dos trabalhadores do sexo, membros da comunidade, tais como Kiran e Sudhir, trabalham com Sangram, NNSW e Prerana, fazendo ligações regulares pelo Zoom para outros membros. Nessas conversas discutem segurança, proteção contra a Covid-19 e questões de saúde mental.
Em 1º de julho, o governo indiano anunciou medidas de relaxamento, e a abertura gradual, em várias fases, fora das áreas em lockdown. Na última fase, Unlock 6.0, algumas instituições superiores abriram para estudantes de pós-graduação. Depois de meses vivendo com o estritamente necessário, e com a Covid-19 espalhando-se pelo país, parece haver pouco espaço para o trabalho sexual, que exige proximidade física. Muitos trabalhadores do sexo em cidades metropolitanas como Delhi, Mumbai e Calcutá voltaram para suas aldeias.
Assim como os trabalhadores migrantes viajavam pelo país e eram enxotados pelo povo nas suas aldeias, os trabalhadores do sexo também foram impedidos de voltar para casa. Muitas mulheres expressaram esta preocupação aos voluntários de Prerana. Tinham certeza de que suas famílias não as acolheriam se chegassem sem dinheiro.
Quem permaneceu nas zonas de prostituição se deparou com uma situação diferente. O lockdown havia terminado, mas sem o retorno dos trabalhadores migrantes não havia clientes. Onde eles voltaram, a Covid-19 continuou a se espalhar, espantando clientes novos e antigos, embora a comunidade de trabalhadores do sexo trabalhe ativamente para limitar a transmissão.
Como no caso do HIV, os trabalhadores do sexo aprenderam rapidamente como se dá a transmissão da Covid-19, e educam os clientes. Por toda a Índia, os trabalhadores do sexo criaram normas de segurança. Os clientes têm de usar máscara e não podem tirá-la, mesmo durante o ato sexual. O beijo não é mais permitido. Em bordéis e espaços de trabalho privados, os trabalhadores do sexo mantêm baldes fora dos quartos e pedem aos clientes que lavem as mãos e os pés. O álcool é uma obrigação, e os clientes devem deixar os sapatos do lado de fora e lavar os pés antes de entrar nos quartos. Quando o cliente se recusa a obedecer, ele não pode entrar na sala ou no bordel, e os trabalhadores do sexo suspendem os serviços.
Em zonas de prostituição ubanas como a Estrada GB de Nova Delhi, os prostíbulos instituíram as mesmas diretrizes. A maioria dos prédios exibe grandes garrafas de álcool gel e caixas de máscaras faciais nos lobbies. Os clientes reclamam que as medidas não são agradáveis, e os trabalhadores do sexo explicam que é para a segurança de todos, conta Neha (nome mudado a pedido), que dirige um bordel na estrada GB. Devido à pesquisa inadequada e à desinformação generalizada sobre os modos de transmissão da Covid-19, a pandemia assustou até mesmo profissionais do sexo que lidavam com o vírus HIV.
Pushpa (nome alterado a pedido) está sentada ao lado de Neha enquanto bebemos água, e cozinha no setembro mais quente em Nova Delhi em uma década. A notícia de portadores assintomáticos do coronavírus abalou o núcleo da comunidade. Isso, e a probabilidade de se expor a alguém que está doente mas não toma precauções, levou-as a insistir em diretrizes rígidas para a prestação de serviços. Nem todos compreendem ou apreciam ser treinados sobre medidas de segurança por trabalhadoras do sexo, e a instituição destas medidas causou perdas nos negócios, disse Pushpa. "Mas é melhor do que perder a vida", acrescentou.
Muitos trabalhadores do sexo encontraram formas alternativas de conduzir seus negócios. Amol, um trabalhador do sexo de 27 anos, recorreu a aplicativos de encontros como Grindr para encontrar novos clientes. Ele e outros trabalhadores do sexo estão usando vídeos Whatsapp, conversas de voz e cybersex, em vez de manter relações presenciais.
Isto diminui o risco de infecção tanto para os trabalhadores do sexo quanto para os clientes, que não precisam entrar em contato físico. Mediante uma solicitação específica, os profissionais enviam fotos e vídeos. Entretanto, conscientes de sua privacidade e das histórias de homens carregando vídeos comprometedores sem consentimento, eles sempre solicitam aos clientes que apaguem os arquivos de mídia quando terminam, disse Amol.
Estes novos métodos não estão isentos de riscos e armadilhas. Para proporcionar prazer digital, os trabalhadores do sexo podem ganhar até 300 rúpias (uma queda acentuada das 500 - 600 rúpias com relaçao aos serviços presenciais).
Não é raro que os profissionais do sexo forneçam serviços e depois o cliente lhes diz que estão sem sinal, ou que enviarão o dinheiro depois, pelo Google Pay. Estas promessas quase nunca são cumpridas. Eles desligam o celular e deixam os trabalhadores sem meios de encontrá-los ou alcançá-los para exigir o pagamento.
Homens que fazem sexo com homens (HSH), como Anmol, levam duas vidas. As suas famílias não sabem o que eles fazem - muitos dizem que trabalham à noite num escritório ou dirigem táxis. Eles usam calça e camisa em casa durante o dia, e montam o drag durante a noite.
O sigilo da sua subsistência torna os HSH e os trabalhadores sexuais transgêneros especialmente vulneráveis à chantagem. As mulheres tampouco são poupadas. Kushwa (nome mudado a pedido), uma trabalhadora do sexo de Maharashtria com 30 anos, apresentou recentemente uma queixa criminal contra um cliente por distribuir vídeos comprometedores entre seus amigos sem o consentimento dela. O homem primeiro tentou chantageá-la, mas ela não tinha dinheiro para lhe pagar. Depois ele começou a vender os vídeos para conhecidos dela. Como muitas trabalhadoras do sexo, Kushwa esconde sua atividade da família e dos dois filhos.
A NNSW e a Sangram ajudaram Kushwa a apresentar queixa à polícia local. Os funcionários lhe ensinaram a apresentar o primeiro boletim de ocorrência (FIR). A princípio a polícia não escreveria no boletim que Kushwa é trabalhadora do sexo, pois isso enfraqueceria o caso. Mas ela insistiu, pois quando o caso chegasse ao tribunal a banca provavelmente faria suposições desfavoráveis se ela omitisse informações, ressaltou.
Em 29 de setembro, a Suprema Corte indiana ordenou a todos os estados que entregassem víveres secos aos trabalhadores do sexo sem pedir documentos de identificação. No entanto, havia ressalvas - a Corte determinou que os víveres estavam disponíveis para os trabalhadores do sexo que identificados pela Organização Nacional de Controle da AIDS (NACO) e pelas autoridades legais distritais.
Meena Seshu contou que quem não estava registrado podia ir ao Serviço Distrital de Assistência Jurídica se inscrever para receber a cesta básica.
Mas isso teria um impacto naqueles que não revelam publicamente a sua atividade - seja no bairro ou no distrito. Estas pessoas estavam diante de uma escolha amarga: passar fome ou ir ao escritório distrital de assistência jurídica sabendo que a comunidade iria ostracizá-las e aos seus filhos.
Em 7 de outubro, numa assessoria sobre direitos das mulheres durante a pandemia, a Comissão Nacional de Direitos Humanos (NHRC) reconheceu os trabalhadores do sexo como trabalhadores informais, abrindo portas para quem havia sido excluído das cestas de auxílio do governo, e reduzindo o estigma da atividade.
Porém, a assessoria da NHRC não é bem-vinda por todos os interessados. Algumas ONGs anti-tráfico, principalmente a Prajwala, foram fortemente contrárias à medida, e escreveram à NHRC alegando que o trabalho sexual é ilegal sob a Lei de Tráfico Imoral (Prevenção) indiana e que a maioria das mulheres não entra na profissão por opção. Em vez do reconhecimento formal, estas organizações pediram que fossem concedidos benefícios, auxílio e bolsas de estudo. Temendo que a primeira vitória que tiveram desde março fosse erodida, 12.000 trabalhadoras do sexo e ativistas dos direitos das mulheres responderam escrevendo também à NHRC, pedindo respeito pela sua escolha de profissão.
Em 20 de outubro, Modi se dirigiu ao país e pediu aos cidadãos que lembrassem que o lockdown terminara, mas o vírus permanecia. Ele exortou todos a permanecerem em casa, manterem distância social e usarem máscaras. Com o agravamento dos casos em Nova Delhi, outro lockdown não está fora de questão. Contudo, para os trabalhadores do sexo, que já vivem com dinheiro emprestado, outro lockdown seria terrível. Eles já eram vulneráveis antes da pandemia, e assim permanecerão no futuro.
Avantika Mehta é uma jornalista independente que trabalha fora de Nova Delhi e cobre assuntos relacionados às leis, gênero e crime. Ela estudou no Iowa Writers Workshop e também escreve ficção.
Foto: Vikalp Women's Group, India / Flickr