Assim como muitos cidadãos do Sudão e do Chade que ganham a vida informalmente ao longo da orla marítima, Imran é um sobrevivente do último massacre em Melilla. De acordo com ONGs internacionais, pelo menos trinta e sete pessoas foram mortas pela polícia quando imigrantes tentaram invadir a fronteira entre a Espanha e o Marrocos. Porém, o número de desaparecidos confirmados, setenta e quatro, sugere que o total de mortos pode ser bem maior.
“Viemos juntos para a cerca como um grupo grande de 1.500 pessoas”, Imran informa à Jacobin. “Mas a polícia estava pronta para nós. Quando alcançamos o cruzamento da fronteira, ela nos cercou em ambos os lados da cerca — a polícia do Marrocos estava em um lado e a espanhola no outro.” Ele continua:
Lançaram gás lacrimogêneo de ambos os lados e um helicóptero espanhol (da Guardia Civil) nos espionava de cima. As pessoas não conseguiam enxergar nem respirar (por causa do gás) e estavam ficando desesperadas. Os marroquinos também disparavam balas de borracha e jogavam pedras sobre nós.
Eu fui um dos que tiveram a sorte de conseguir atravessar, e nesse ponto a polícia espanhola tentou me espancar. Escapei [para o interior do território], porém muitos dos outros foram forçados a atravessar de volta a fronteira.
Mais adiante, ao longo da praia, conversei com Magdy, de 22 anos de idade, do Sudão:
A polícia marroquina matou muita gente. Uma pessoa morreu bem na minha frente. Foi baleado na cabeça com uma bala de borracha quando estava no topo da cerca. Perdeu a consciência e caiu. Tentamos levantá-lo, mas ele não se mexeu.
Eu também perdi meu melhor amigo naquele dia, que morreu sufocado [esmagado] contra a barreira. Estou arrasado. Nós tínhamos enfrentado tanta coisa juntos nos últimos anos.
Então, enquanto esperamos pelo seu próximo cliente de lava-jato, Magdy acrescenta: “O mundo todo sabe o que aconteceu com a gente aqui, mas não faz nada.”
Três meses depois de veículos de mídia publicarem imagens chocantes dos mortos e feridos empilhados contra a cerca da fronteira, os governos da Espanha e Marrocos continuaram a culpar as vítimas pela violência enquanto bloqueavam investigações. A criminalização dos imigrantes envolvidos foi rápida: setenta e cinco dos detidos na tragédia já foram condenados em tribunais marroquinos a sentenças que variam de quatro meses a três anos.
Em contraste, em 13 de setembro, o Partido Socialista da Espanha (PSOE), atualmente no governo, votou com o Partido Popular, de direita, e o Vox, de extrema direita, para derrubar uma proposta de inquérito parlamentar sobre a violência fatal. “Não houve nenhuma transparência”, informou Jon Iñarritu à revista Jacobin. Iñarritu, membro do partido basco EH Bild, de esquerda, afirma:
Nós ainda nem mesmo sabemos quantas pessoas morreram. O governo está também bloqueando nossos pedidos de acesso ao material filmado pelas câmeras da fronteira, assim como dos drones usados na operação. Ao mesmo tempo, ele está simplesmente negando fatos comprovados, como a presença da polícia marroquina operando em território espanhol durante a violência.
“Este é o pior massacre (relacionado à migração) em qualquer das fronteiras europeias em décadas recentes”, afirma Miguel Urbán, membro dos Anticapitalistas do Parlamento Europeu, à Jacobin. “No entanto, não aconteceu nos [governos de extrema direita] de Viktor Orbán, na Hungria, ou Mateusz Morawiecki, na Polônia, mas, ao contrário, no governo da coalizão progressista do PSOE e Unidas Podemos, chefiado por Pedro Sánchez.” Prosseguindo, ele insiste:
Em termos criminais, a Gendarmeria marroquina é responsável pelos assassinatos, porém o governo espanhol é politicamente co-responsável. O PSOE priorizou a terceirização da segurança na fronteira para este regime autoritário. Há também graves acusações em torno das ações das forças de segurança da Espanha no dia, inclusive a potencial participação direta de oficiais espanhóis em alguns dos assassinatos.
Tendo o massacre sumido em grande parte da mídia espanhola doméstica, o PSOE está decidido a apagar a história e seguir em frente. No entanto, as sérias acusações envolvendo a responsabilidade exata das autoridades espanholas pelo massacre significa que não se deve permitir que isso aconteça.
Dois informes sobre o massacre em particular, publicados pela Associação Marroquina de Direitos Humanos (AMDH) e a ONG espanhola Caminando Fronteras, suscitaram importantes preocupações sobre o nível de cumplicidade entre as autoridades marroquinas e espanholas nas mortes de 24 de junho. De acordo com o informe da AMDH, o plano empregado pelo Marrocos contra aqueles que correram para a cerca foi elaborado especificamente para mostrar ao governo espanhol “até que ponto [suas forças de segurança] estavam dispostas a ir para bloquear fluxos migratórios, agora que a Espanha era sua aliada [de novo].”
Em outras palavras, o governo marroquino tinha o objetivo de causar impacto, uma vez que esta foi a primeira tentativa de pular a cerca em massa desde que a concessão histórica em política externa do primeiro ministro Sánchez, do PSOE, havia procurado terminar um impasse tenso entre os dois países com relação à ex-colônia espanhola do Saara Ocidenal por meio de uma compensação diplomática. Ele romperia com décadas de política espanhola sobre o território, assim como a posição das Nações Unidas, apoiando um plano para formalizar o regime de ocupação brutal pelo Marrocos, apesar da oposição da população Saarauí. Em troca, o governo espanhol receberia um novo acordo bilateral de combate ao “crime organizado” e “imigração irregular” que faria o Marrocos adotar uma linha mais agressiva no policiamento das fronteiras meridionais da Espanha.
Na sequência deste novo acordo, que define explicitamente imigração irregular como atividade criminosa, as condições no lado marroquino da fronteira de Melilla deterioraram-se rapidamente para pessoas de nações subsaarianas. Os acampamentos em torno da montanha Gurugú, a vinte quilômetros de Melilla, “foram transformados numa zona de guerra até maio,” segundo o informe de Caminando Fronteras. “Houve incursões da polícia militar duas ou três vezes por semana, usando cada vez estratégias mais agressivas e mais equipamentos militares.”
Sobreviventes que falaram para a Jacobin confirmaram o crescente estado de desespero dentro da comunidade imigrante, que levou à confrontação de junho. “Nós nem mesmo podíamos aparecer na rua ou comprar comida do pessoal do lugar, pois havia policiais e informantes em tudo quanto é lugar,” informa Steven, sobrevivente do Sudão do Sul, à Jacobin. “Em nossa última semana em Gurugú, os marroquinos atacaram meu acampamento três vezes e roubaram comida e celulares das pessoas.”
“Três noites antes [do massacre], a polícia marroquina invadiu nosso acampamento nas montanhas e baleou a minha perna com uma bala de borracha,” lembra Magdy. “Depois disso, decidimos tentar alcançar Melilla.”
No entanto, segundo os informes da AMDH e da Caminando Fronteras, as 1.500 pessoas que se dirigiram à fronteira em 24 de junho, “exauridas, perseguidas e desnutridas”, estavam caminhando para uma armadilha. Ao invés de tentar dispersar os imigrantes em território aberto ao longo da jornada de seis quilômetros até a fronteira, a polícia deixou a maioria deles alcançar e entrar no estreito cruzamento de fronteira Barrio Chino desimpedido, antes de então cercá-los. Isso não apenas garantiu que os imigrantes “não teriam rota para escapar”, mas também que eles já teriam jogado a maior parte das pedras ou paus que trouxeram para se defender, quando a polícia marroquina atacasse (pois os imigrantes estariam concentrados em escalar o cruzamento).
“Foi nesse momento que as primeiras baixas ocorreram,” insiste a AMDH. “O emprego maciço de gás lacrimogêneo num espaço muito apertado e sitiado, uma situação sem precedente nesta fronteira,” criou uma “multidão enlouquecida, falta de visão, e quedas descontroladas do alto das cercas.” Issa, de 23 anos de idade, do Sudão, lembra que “havia tanto gás que não conseguíamos respirar ou enxergar nada. Você mal conseguia abrir os olhos.”
Então, “após mais de uma hora de bombardeio” e com a chegada de reforços, centenas de gendarmes marroquinos atacaram diretamente os que estavam presos dentro do cruzamento da fronteira, provocando esmagamentos mortais contra a barreira espanhola. Isso não era uma “resposta à violência de imigrantes armados”, como insiste em dizer a versão marroquina/espanhola oficial, mas, ao contrário, uma “repressão [contra pessoas desarmadas em sua maioria] a fim de deter seu avanço para Melilla a todo custo,” conclui o informe da AMDA.
No entanto, como o dossiê da Caminando Fronteras esclarece, a violência foi também “coordenada,” com a polícia espanhola usando juntamente gás lacrimogêneo e balas de borracha contra as pessoas presas no cruzamento da fronteira. O informe da AMDH concorda com esta avaliação: “A intervenção repressora pelo lado espanhol sem dúvida explica o aumento do número de vítimas sufocadas.” Igualmente “mostra o nível de coordenação local entre as duas [forças policiais]. Disparado em direções opostas, o gás lacrimogêneo do Marrocos misturou-se com o gás espanhol para causar o máximo de dano.”
“Quando visitei a área quinze dias depois, ainda havia, ao longo da fronteira, centenas de cartuchos de propulsão e latas de gás lacrimogêneo que pertenciam à Guardia Civil (espanhola), Iñarritu informou à Jacobin. “Os sobreviventes com quem conversei descreveram que havia uma nuvem constante de gás da qual não se conseguia escapar.”
Outra grave alegação refere-se à decisão das autoridades espanholas de não abrir o portão da fronteira no cruzamento, depois de esmagamentos mortais terem ficado óbvios após os ataques da polícia. Além da asfixia por gás, estes esmagamentos foram a outra principal causa de fatalidades, segundo o informe da AMDH.
“Por que o sr. não abriu o portão?”, perguntou Iñarritu a Fernando Grande-Mariaska, Ministro do Interior, no Congresso espanhol:
Havia câmeras naquela área apontadas na direção [do esmagamento], assim como oficiais da Guardia Civil bem do outro lado do portão . . . e o drone e o helicóptero no alto . . . . Se você [nas forças de segurança] sabia o que estava acontecendo, e acredito que sabia, por que não abriu o portão?
O ministro declinou de responder à questão. Urbán, porém, insiste no fato de que “parece provável que muitas vidas poderiam ter sido salvas se tivessem aberto o portão e oferecido às pessoas uma saída para fora da armadilha fatal.” Mas, como um representante da ONG Solidarity Wheels, de Melilla, diz à Jacobin: “Quando há uma tentativa de escalar a cerca, nunca se dá ordem para abrir os portões, sempre para trancá-los — proteger vidas ou evitar ferimentos são completamente estranhos à gestão da fronteira.”
Uma outra questão pendente para as autoridades espanholas foi a presença da polícia marroquina no lado de Melilla da fronteira operando “lado a lado com as forças de segurança espanholas”, para repelir cerca de 100 refugiados em potencial através da fronteira:
O ministro Marlaska recusou-se a tratar deste ponto, mas precisamos saber quem deu a ordem para permitir que forças de segurança marroquinas atuassem em solo espanhol, algo sem precedente, e também qual tipo de coordenação houve entre autoridades nestas operações para forçar os refugiados a recuarem. Afirma Iñarritu.
O informe da Caminado Fronteras ressalta como estas operações aconteceram “apesar das cenas de tortura e tratamento desumano e degradante que as autoridades espanholas estavam testemunhando na frente delas.” Na verdade, a etapa final da operação policial marroquina foi a “mais chocante”, segundo a AMDH. “Solicitantes de asilo que estavam no chão, ofegantes, feridos, desmaiando, e exauridos, foram chutados e espancados por agentes marroquinos” e então “arrastados sob golpes de cassetes para uma zona de concentração”, onde foram jogados um em cima do outro. “Não me lembro de nada,” disse um sobrevivente ao jornal El Diario. “Perdi a consciência e de repente estava no Marrocos cercado por meus irmãos jogados no chão.”
À medida que as primeiras ambulâncias do Marrocos chegaram ao local, logo começou o acobertamento — com as autoridades marroquinas usando os serviços de emergência para primeiro remover os mortos, ao invés de atender os feridos. Ao mesmo tempo, centenas de sobreviventes, inclusive os com ferimentos graves, foram deixados por horas sem atendimento médico no sol quente e então forçados a entrar em ônibus de deportação que os levaram a cidades situadas a centenas de quilômetros, no interior do Marrocos. Tanto o jornal El País quanto a AMDH confirmaram pelo menos um caso de um cidadão sudanês, Abdenacer Mohamed Admed, de Darfur, que morreu de ferimentos num desses ônibus.
Apesar destas sérias alegações sobre a responsabilidade espanhola pelo total de mortes do massacre, quando o Ministro do Interior, Marlaska, finalmente compareceu ao parlamento espanhol em meados de setembro para prestar esclarecimentos, ele simplesmente repetiu o mantra de que o uso de força pela polícia havia sido “apropriado e proporcional” e recusou-se, mais uma vez, a criticar as ações do Marrocos. Face à tamanha intransigência, a incapacidade do Unidas Podemos em responsabilizar o seu parceiro na coalizão e as forças de segurança do Estado é clara. Expõe, mais uma vez, os limites substantivos de sua participação como parceiro menor no governo.
O grupo parlamentar Unidas Podemos criticou abertamente os comentários de Marlaska, mas, afora isso, concentrou-se em grande parte nas críticas gerais ao “racismo” e “desumanidade” do regime de fronteira europeu-espanhol e omitiu as alegações específicas de violações de direitos humanos pelas forças de segurança sob a própria autoridade do governo. Além destes equívocos, o massacre de Melilla deve ser visto como um momento definidor para a coalizão progressista da Espanha e uma consequência lógica da ação desastrosa de Sánchez no norte da África.
O profundo cinismo do líder do PSOE no que diz respeito à imigração nunca foi mais gritante do que com sua barganha com o rei Mohammed VI, do Marrocos. A despeito de seus grandiosos gestos de aceitar refugiados afegãos e ucranianos, Sánchez adotou constantemente uma linha punitiva à migração ao longo das fronteiras do país no sul. Mas, com sua traição do Saara Ocidental (uma causa de grande importância emocional para a esquerda espanhola), ele apostava em mais repressão pelo Marrocos como solução para a segurança da fronteira da Espanha — uma posição que sempre terminaria em banho de sangue.
“Nenhum outro país na Europa promoveu a violência de fronteiras militarizadas até agora,” insiste Urbán. “Se isso [o massacre] for permitido sem consequências, então estamos numa situação em que qualquer coisa vale.” Prosseguindo, ele insiste na responsabilidade da esquerda espanhola por não assumir uma atitude sobre tais flagrantes violações de direitos humanos:
O Unidas Podemos e a esquerda parlamentar mais ampla não querem gastar energia nesta questão, e isso está levando a uma sensação de completa impunidade. O que a esquerda espanhola e europeia pode dizer se Viktor Orbán abrir fogo contra refugiados nas fronteiras da Hungria no ano que vem? No mínimo, a esquerda deve exigir a renúncia de Marlaska depois do que vimos. Não fazer isso estabelece um perigoso precedente.
O prêmio do Marrocos pela carnificina em Melilla foi um aumento de 500 milhões de euros no financiamento da União Europeia para combater a imigração irregular, anunciado em agosto. A violência tampouco diminuiu, pois o Marrocos continua a preencher seu papel como guarda de fronteira terceirizada. Em 12 de setembro, a polícia marroquina abriu fogo contra um grupo de trinta e cinco pessoas que procuravam embarcar num barco cayuco no sul do Marrocos com destino às ilhas Canárias, da Espanha. Uma mulher com mais de 20 anos foi morta com um tiro no peito, dois outros sofreram ferimentos a bala, e dois foram atropelados por um jipe da polícia quando tentavam fugir.
De volta a Melilla, Imran planeja ir para o continente espanhol depois de conseguir seus documentos, assim como Steven, outro dos 130 solicitantes de asilo que conseguiram permanecer em Melilla em 24 de junho. Falando do lado de fora do Centro de Estadia Temporária de Imigrantes (CETI), que fica a 150 metros da cerca da fronteira, Steven explica:
Deixei o Sudão do Sul seis anos atrás, atravessando o Sudão, Egito, Líbia, Níger e Argélia. Fiquei na Líbia por dois anos e então no Marrocos por 10 meses, a maior parte do tempo nas montanhas. Agora quero ficar na Espanha e construir meu futuro aqui.
Mas os pensamentos de Imran estão também com seus amigos deportados para o sul do Marrocos. “Estão exauridos e desmoralizados depois de tudo que aconteceu com eles.” “Ainda é impossível para eles voltarem para Nador [a cidade marroquina na fronteira com Melilla],” continua. “Ainda existe muita insegurança na área. Mas alguns tentarão alcançar Ceuta [o outro enclave espanhol no norte da África] nos próximos meses. Outros só querem voltar para casa. Não conseguem continuar mais."
Eoghan Gilmartin, baseado em Madri, é escritor, tradutor e contribuinte para a revista Jacobin.
Foto: fronterasur / Flickr