Existe um instrumento, uma ferramenta que pode nos desfazer. Ela começa com um clarão tão brilhante que, através dos olhos fechados e das mãos entrelaçadas, você consegue ver os ossos das pessoas amontoadas ao seu redor.
Em poucos minutos, ela evapora grandes cidades e faz com que cada uma das cerca de 12.000 aeronaves de passageiros em voo despenque do ar. Em poucos dias, ela espalha a anarquia, com governos e instituições deixando de existir—e a comida começa a escassear.
Em poucos meses, ela escurece os céus, reduzindo as temperaturas em 20 a 30 graus Celsius, desencadeando uma era de fome. Em poucos anos, apaga nosso conhecimento coletivo, e depois nossa memória, de modo que, milhares de anos no futuro, alguém que tropece em nossos ossos poderá se perguntar que tipo de animal éramos. Como o premiê soviético Nikhita Khruschev certa vez observou: "Os sobreviventes invejarão os mortos."
Esta é a sombra fúnebre que paira sobre a humanidade há 80 anos, desde que os Estados Unidos usaram a bomba atômica pela primeira vez em Hiroshima e Nagasaki em 1945.
Em 6 de agosto de 1945, um bombardeiro americano, o Boeing B-29 Superfortress, batizado em homenagem a Enola Gay Tibbets, lançou o "Little Boy", a primeira bomba atômica já usada em combate, sobre a cidade de Hiroshima, matando um terço de seus habitantes e mutilando milhares. Apenas três dias depois, os EUA lançaram a segunda bomba nuclear, a "Fat Man", sobre a cidade japonesa de Nagasaki. Pelo menos 100.000 pessoas morreram imediatamente nos dois ataques, e talvez o dobro delas morreu lentamente nos meses e anos seguintes—vítimas dos efeitos duradouros da radiação, que deforma nossas células e corrompe nossa própria biologia.
Quando a primeira bomba caiu, o Japão já estava devastado. O bombardeio americano de Tóquio matou mais de 100.000 pessoas em uma única noite em março de 1945, desabrigando mais de um milhão de habitantes. O bombardeio de Osaka destruiu vinte quilômetros quadrados da cidade em um único ataque aéreo, matando 4.000. Cerca de 100 cidades japonesas foram devastadas ou destruídas completamente antes mesmo que o "Little Boy" fosse embarcado no Enola Gay. Registros históricos sugerem que as notícias dos bombardeios pouco fizeram para mudar o cálculo político no Japão—transcrições de discussões políticas da época sugerem que foi a declaração de guerra soviética contra o Japão em 9 de agosto que mudou o rumo da situação.
Nos EUA, a notícia do atentado provocou indignação generalizada. Em resposta, o Secretário de Estado Henry L. Stimson ajudou a propagar a narrativa de que o ataque era necessário para salvar milhões de vidas de americanos e pôr fim à guerra.
Mas Stimson sabia a verdade. O presidente americano Harry S. Truman havia se referido à bomba como um "martelo" contra os soviéticos. Em julho de 1945, ele abordou Joseph Stalin na Conferência de Potsdam, dizendo-lhe que os EUA tinham uma "nova arma de força destrutiva incomum". A destruição de Hiroshima e Nagasaki, menos de duas semanas depois, foi um jogo de poder imperial e um exercício assustador de assassinato em massa, uma chance para os EUA afirmarem seu poder e um aviso para aqueles que ousassem desafiar seus movimentos em direção à hegemonia. Como Nelson Mandela disse em um discurso de 2003 criticando a guerra dos EUA contra o Iraque: "Se há um país que cometeu atrocidades indizíveis no mundo, são os Estados Unidos da América... [Q]uando o Japão recuava em todas as frentes, decidiu lançar a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki... Essas bombas não eram direcionadas aos japoneses, eram direcionadas à União Soviética para dizer: 'Vejam, este é o poder que temos. Se ousarem se opor ao que fazemos, é isto que vai acontecer com vocês'...".
Intoxicado pelo novo poder dos EUA, Truman mais tarde ameaçaria usar a bomba atômica para destruir todas as fábricas, de Stalingrado a Xangai—uma ameaça ecoada por Winston Churchill na Grã-Bretanha. A bomba armou a supremacia branca com um poder aparentemente supremo.
Isso preparou o cenário para a Guerra Fria—uma guerra de tão longo alcance em suas implicações que alguns historiadores a descreveram como uma Terceira Guerra Mundial. "É particularmente inapropriado chamar de 'fria' uma guerra que começa com Nagasaki e Hiroshima", escreveu o historiador italiano Domenico Losurdo. Embora os EUA e a URSS nunca tenham lutado diretamente, argumentou Losurdo, a ameaça constante de aniquilação total distorceria todo o tecido político e econômico do principal rival dos EUA—e, cada vez mais, do resto do planeta. Da Coreia ao Vietnã, da China ao Irã, os EUA têm repetidamente usado a ameaça de guerra nuclear para promover seus objetivos diplomáticos e militares, levando o mundo a uma crescente proliferação nuclear.
A capacidade de destruição total da bomba atômica paira sobre a sociedade atual. Há várias décadas, os EUA migraram de uma doutrina baseada na ideia da 'Destruição Mútua Assegurada', que afirma que ninguém pode vencer uma guerra nuclear, para uma baseada no 'poder de contra-força', que pressupõe que os EUA poderiam desmantelar as capacidades nucleares de um rival com um primeiro ataque massivo. Essa foi a lógica por trás dos chamados 'Euromísseis'—o arsenal nuclear americano que chegou à Europa Ocidental na década de 1970 e continua a proliferar até hoje.
Embora a maioria dos Estados com armas nucleares se reserve o direito de usar esses armamentos defensivamente, exclusivamente quando enfrentarem uma ameaça existencial, os EUA não se sentiram limitados por tais fronteiras morais. Em 2022, o Secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, alertou que os EUA considerariam o uso de armas atômicas "em circunstâncias extremas para defender os interesses vitais dos Estados Unidos, seus aliados e parceiros". Hiroshima e Nagasaki nos lembram que esta não é uma ameaça vazia. Os EUA continuam sendo o único país na história a ter usado armas nucleares em guerras, e seus 'interesses' agora se estendem por todo o globo.
No terrível aniversário dos bombardeios nucleares, nós nos lembramos das vítimas da singular capacidade de destruição do imperialismo, e reafirmamos nosso compromisso com o desmantelamento de sua máquina de guerra e a construção de uma nova diplomacia dos povos. Tudo está em jogo nesta luta.
Maioria quer acabar com a venda de armas para Israel: pesquisa abrange três continentes
Esta semana, uma nova pesquisa da rede Global Energy Embargo for Palestine e da Internacional Progressista revelou que a maioria das pessoas em cinco países—Brasil, Colômbia, Grécia, África do Sul e Espanha—acredita que as empresas de armas devem interromper ou reduzir o comércio com Israel, já que seu ataque a Gaza continua.
A Espanha demonstrou o maior apoio à interrupção dos acordos de armas, com 58% dos entrevistados e entrevistadas, dizendo que eles [os acordos] deveriam parar completamente, seguida pela Grécia com 57% e Colômbia com 52%.
“A mensagem dos povos do mundo vem em alto e bom som: eles querem ações para pôr fim ao ataque a Gaza—não apenas palavras”, disse David Adler, co-coordenador geral da Internacional Progressista, à Al Jazeera. “Em todos os continentes, a maioria pede que seus governos interrompam a venda de armas e restrinjam a ocupação israelense.”
Veja o resultado das pesquisas aqui.
A política britânica está em movimento. Com o surgimento de um novo partido de esquerda, o Partido Trabalhista em decadência, os Verdes em transformação e o Reform em ascensão, há uma necessidade urgente de o movimento se reunir e debater estratégias, construir novas redes de solidariedade e se preparar para o ano que se inicia.
Esse é exatamente o plano para a conferência "O Mundo Transformado" de 2025 (The World Transformed 2025), que acontecerá em Manchester, no Reino Unido, de 9 a 12 de outubro de 2025.
As inscrições já estão abertas.
Kenichi Nakano tinha 47 anos quando a bomba atômica caiu sobre Hiroshima. Ele se encontrava a 1.300 metros do hipocentro da explosão, rio acima da Ponte Yokogawa. Ele viu o rio se encher com os corpos das pessoas mortas pela explosão:
“Ajoelhei-me na margem do rio e juntei as mãos em oração, tendo presenciado tal visão pela primeira vez na vida. Alguns corpos foram levados para lá pela explosão da bomba, outros se afogaram após pularem no rio para escapar do calor. Os rios da cidade estavam cheios dessas pessoas mortas. Que suas almas descansem em paz.”
Este desenho de Kenichi Nakano é um dos muitos feitos por sobreviventes da bomba atômica, conservados no Museu Memorial da Paz de Hiroshima, em Hiroshima, Japão.