Economy

A violenta mercantilização da vida em Uganda

A economia de mercado de Uganda despojou e empobreceu as pessoas comuns e provocou destruição ecológica, deixando a sociedade fragmentada e instável.
O crescimento econômico de Uganda baseia-se em um processo violento de mercantilização, um padrão exemplificado pela introdução da perca-do-Nilo. Esse “ouro do lago” criou riqueza de exportação, mas causou colapso ecológico e policiamento militarizado, deslocando pescadores e pescadoras pobres. Esse modelo se repete em todo o país: em Karamoja, onde o roubo de gado para fins comerciais deixa as comunidades sem recursos, e nas regiões agrícolas, onde a apropriação de terras para o desenvolvimento desenraíza os agricultores. O impulso para converter recursos em capital, muitas vezes apoiado pelo poder do Estado, cria lucro para um pequeno grupo, ao mesmo tempo em que gera deslocamento e descontentamento generalizados.

O investidor partiu / com nossa terra ontem, / ainda assim, arrancamos nosso destino / das mãos de um fado redutor — Harriet Anena, “Scratching Destiny” (Arrancando o destino)

 Um dia, em 1954, ou talvez no ano seguinte, trabalhadores juniores do Departamento de Caça e Pesca de Uganda secretamente soltaram perca-do-Nilo de um píer em Entebbe, mudando o Lago Vitória para sempre. Suas águas até então estavam salpicadas de enkejje coloridos, variedades de ciclídeos haplocromíneos, que nutrem seus filhotes em suas bocas. “O Haplochromis é geralmente considerado um ‘peixe de descarte’ de muito pouco valor,” escreveu Alec Anderson, o oficial de pesca britânico que idealizou a introdução da perca-do-Nilo. “Parece claro que a maneira óbvia de utilizar os Haplochromis é introduzir um predador que irá convertê-los em algo que valha a pena.”

Em poucos anos, os pescadores da Tanzânia estavam fisgando perca-do-Nilo na outra margem. Na década de 1980, o lago havia atingido um ponto de inflexão, com seu equilíbrio perturbado pela proliferação de algas, a queda nos níveis de oxigênio e o apetite voraz do novo intruso. Mais da metade das espécies de haplocromíneos desapareceu. Biólogos holandeses escreveram que seu desaparecimento “pode muito bem representar o maior evento de extinção entre os vertebrados neste século”. Enquanto isso, o valor econômico da pesca quintuplicou, já que a perca-do-Nilo, sendo mais carnuda, podia ser vendida para compradores internacionais. Um desastre ecológico foi um triunfo comercial.

Pescadores e pescadoras se referiam à perca-do-Nilo como “ouro do lago”, embora pouco da captura chegasse às suas mesas. Comerciantes dos continentes europeu e asiático abriram fábricas de processamento de peixe na orla, onde os filés eram embalados em isopor e gelo e depois enviados de avião para lugares distantes do mundo. Em meados dos anos 1990, o peixe havia se tornado o segundo maior produto de exportação de Uganda; os donos e donas das fábricas afirmam hoje que o setor sustenta mais de um milhão de pessoas ao todo.

Mas a comercialização do lago também exigiu novas táticas para o seu policiamento, porque a lucrativa perca-do-Nilo também estava ameaçada pela pesca excessiva. Depois de experimentos tímidos com gestão comunitária, o governo decidiu por patrulhas militares. Os soldados prenderam e espancaram os barias  que cuidavam dos barcos. Os pobres não podiam subornar para se livrarem dos problemas nem pagar por barcos maiores, que a partir de então, eram exigidos por lei. “Quando o programa do governo começa, eles vêm com as pessoas que têm estudo, de elite, ricas”, disse-me uma vez um pescador veterano, “e o governo envia seus soldados para caçar o pobre”. Nos desembarques ao longo da margem, o “povo peixe” sussurra sobre as coisas que perdeu: suas casas demolidas, seus barcos incendiados, seus amigos afogados enquanto tentavam escapar.

A parábola do lago é a história de toda a Uganda: de suas terras, árvores, minerais, gado, colheitas, trabalho, política. Após o ajuste pela inflação, a economia cresceu mais de oito vezes desde que Yoweri Museveni tomou o poder em 1986. Mas isso não é experimentado como uma prosperidade generalizada. O mesmo processo de mercantilização que trouxe lucro para alguns é sentido por outros como uma fonte de incerteza e ameaça, muitas vezes entrelaçada com violência. A difícil situação de Uganda não pode ser entendida em termos estritamente políticos — democracia, militarismo, direitos — sem também abordar esses conflitos sociais. É assim que o mercado, como a perca-do-Nilo, ataca coisas que considera “de muito pouco valor” e “as converte em algo que vale a pena”.

Peixes grandes, lagoas lucrativas

As planícies secas de Karamoja, no nordeste de Uganda, estão tão distantes das águas turbulentas do Lago Vitória quanto possível. Vista de Kampala, é uma periferia permanente, seu atraso é evidenciado pelos ciclos mortais de roubo de gado. “Não vamos esperar que Karamoja se desenvolva”, disse Milton Obote, o primeiro primeiro-ministro do país após a independência. Este pode parecer um lugar improvável para buscar uma transformação comercial.

Mas considerar os roubos de gado como uma relíquia de tempos primórdios é um equívoco. Em 1979, os soldados abandonaram o arsenal de Moroto após a queda de Idi Amin. Durante dias, Karamojong esvaziou seus estoques, carregando armas em burros como feixes de lenha. Foi um momento catalítico, como um peixe sendo jogado em um lago. A proliferação de armas de pequeno porte permitiu que a prática de ataques de longa data aumentasse em letalidade e alcance.

No passado, jovens realizavam os ataques a fim de reabastecer rebanhos, acumular dotes ou mostrar sua ousadia. Esses motivos foram agora complementados por ganhos financeiros. As economias de escala permitiram que as gangues transformassem os roubos de gado em um negócio, vendendo vacas para redes de comércio que alimentavam a demanda por carne em cidades distantes ou aumentavam os rebanhos das elites ricas. Durante o mais recente surto de violência, que começou em 2019, todos, desde o presidente até os cidadãos e cidadãs comuns, condenaram a “comercialização” dos ataques. Pastores seguiram as pegadas dos rebanhos roubados até que a trilha desapareceu nas estradas asfaltadas, onde as vacas foram carregadas em caminhões e levadas embora. De alguma forma, os veículos passaram pelos postos de controle oficiais. Líderes locais se perguntaram, incisivamente, por que encontraram cartuchos de balas do exército após os ataques. 

Karamoja está sendo esvaziada de gado, assim como o Lago Vitória está sendo esvaziado de peixes. Um levantamento em 2017 feito pela Karamoja Resilience Support Unit (Unidade de Apoio à Resiliência de Karamoja), um grupo de pesquisa, descobriu que 57% das famílias não tinham animais suficientes para viver principalmente da pecuária. Em vez disso, elas sobrevivem por outros trabalhos: produzindo cerveja, cavando em troca de salários, derrubando árvores para a fabricação de carvão vegetal, extraindo calcário, garimpando ouro ou escapando pelas mesmas estradas que o gado desaparecido.

Quando o exército varre as cidades ao amanhecer, reunindo homens jovens em busca de armas ilegais, primeiro ele libera aqueles que falam bem inglês, em seguida os motoristas de boda-boda e, por último, os homens que transportam galões de kwete caseiro na garupa de bicicletas. “Eles agora estão categorizando as pessoas com base em sua aparência”, disse-me um detido, dois dias após uma operação em 2022. A estrutura de classes emergente funciona como uma hierarquia de suspeita.

Deixando a terra 

O lago e as planícies são, cada um à sua maneira, lugares à margem. Mas o mesmo processo de mercantilização também pode ser encontrado no coração agrícola do país, na luta pela terra. Desde a independência em 1962, a área de terras agrícolas em Uganda pouco mais do que dobrou, porém, a população rural aumentou quase seis vezes. Dois terços das famílias de agricultores agora possuem menos de um hectare, uma área do tamanho de um grande campo de futebol; cerca de 40% delas possuem menos da metade disso. O crescimento das cidades também elevou o preço dos terrenos em seus arredores.

As tensões são especialmente visíveis na região de Buganda, onde está localizada a capital, Kampala. Aqui, grande parte da terra se enquadra em um sistema incomum de posse por mailo, onde os direitos dos proprietários e ocupantes se sobrepõem. Por lei, qualquer pessoa com direitos de kibanja em uma parcela de terra não pode ser despejada, desde que pague um aluguel simbólico do terreno, fixado em alguns dólares por ano. Mas os proprietários estão tentando contornar essa restrição para poderem lucrar com o aumento dos preços dos terrenos. Uma estratégia é vender o título de propriedade a novos proprietários com conexões políticas, que usam sua influência para despejar os detentores de kibanja, desrespeitando a lei. A justificativa implícita é de que a terra deve ser destinada àqueles capazes de utilizá-la da forma mais rentável, o que se presume se tratar de fazendas comerciais, empresas industriais e empreendimentos residenciais. “Se você tem algo valioso que não quer vender, [os grileiros] usarão outros meios”, reclamou Matia Lwanga Bwanika, presidente do distrito de Wakiso, quando o conheci em 2023.

Pressões semelhantes que são sentidas em todo o país, embora os mercados de terras geralmente permaneçam escassos. Na região de Acholi, no norte, muitos agricultores e agricultoras voltaram dos campos de deslocados após a guerra com os rebeldes de Joseph Kony e descobriram que suas terras haviam sido destinadas a plantações de cana-de-açúcar ou reservas de caça. Em Bunyoro, as disputas de terras explodiram em antecipação ao desenvolvimento do petróleo. Como observou o pesquisador Yusuf Serunkuma, o pagamento de compensação em dinheiro em casos de aquisição de terras remodela as economias locais, os meios de subsistência, as relações de gênero e muito mais. “Hoje em dia eles viram que o dinheiro chegou, eles mudaram as coisas”, canta o artista Alur, Professor Lengmbe, em sua música “Refinery”, explicando que os homens agora querem “uma [esposa] parda” porque “a que está em casa é muito preta”.

Bomba-relógio

Em cada um dos exemplos, há um tom de pessimismo malthusiano: uma sensação de que não há mais peixe, gado ou terra suficientes para todos. Mas isso é mais do que uma crise de crescimento populacional. A economia monetária está pressionando a vida cotidiana de todos os lados — um aperto que também é sentido na expansão do trabalho assalariado temporário, no comércio ilícito de madeira e carvão vegetal, nas práticas impiedosas do marketing do café, nos custos crescentes das campanhas políticas, na luta para pagar as taxas escolares ou na agitação implacável da vida urbana. As cadeias de comércio se estendem regionalmente, como no comércio de gado, ou internacionalmente, como na exportação de peixes, ouro e trabalhadores domésticos. O lucro flui para quem tem mais influência política, poder jurídico, poder de mercado ou acesso ao crédito — ou simplesmente para aqueles com menos escrúpulos.

A questão aqui não é ansiar por uma versão imaculada do passado, que nunca existiu, nem romantizar a subsistência em pequena escala, que não é uma maneira de um país enriquecer. Alguns ugandenses encontram oportunidades como “empreendedores” ou “consumidores”; até mesmo os críticos mais severos do capitalismo reconhecem seu tremendo poder de mobilizar recursos, permitir a especialização e expandir a produção. Mas a “perturbação ininterrupta de todas as condições sociais”, como Marx a chamou, é especialmente turbulenta em uma sociedade como a Uganda contemporânea, na ponta mais vulnerável da ordem global, que desde a década de 1980 tem sido um campo de testes para reformas orientadas pelo mercado.  

O economista político húngaro Karl Polanyi, escrevendo na década de 1940, descreveu um “duplo movimento” na história do capitalismo: primeiro um impulso para liberar o mercado de suas amarras sociais e, em seguida, um contra-movimento para contê-lo. Na Uganda de hoje, onde sindicatos, cooperativas e partidos políticos foram minados, é difícil identificar uma resistência organizada. Em seu hit de 2014, “Time Bomb”, o cantor Bobi Wine lamentou o alto preço da educação e da eletricidade, mas, como líder da oposição, ele mostrou pouco interesse em economia. Enquanto as fábricas e minas dos países industrializados foram historicamente um terreno fértil para a solidariedade, a economia informal de Uganda é fragmentada e seus trabalhadores estão atomizados. Eles estão muito ocupados procurando “ka money” (um “dinheirinho”) no sistema existente para inventar um novo.

Mas isso não significa que os ugandenses estejam à vontade com a nova dispensação. O descontentamento pode ser encontrado em todos os lugares, desde protestos contra a apropriação de terras até a queima de plantações de cana-de-açúcar e os lamentos de intelectuais dissidentes. E ele vive nos murmúrios da conversa cotidiana. “É por causa dos ladrões,” disse-me uma mulher em Wakiso enquanto bandidos armados com paus fitavam seu jardim de bananeiras. “São eles que estão bagunçando o país.” Os homens haviam sido enviados por um agrimensor que queria desenvolver a terra para vendê-la e lucrar com ela — em suma, para convertê-la em algo que “valesse a pena”.

Liam Taylor é jornalista freelance. Ele morou em Uganda de 2016 a 2022.

Fotografia em destaque: Pescador no Lago Vitória em janeiro de 2023 (Wiki Commons).

Available in
EnglishPortuguese (Brazil)FrenchItalian (Standard)
Author
Liam Taylor
Translators
Vitoria Alves and Open Language Initiative
Date
31.10.2025
Source
Review of African Political Economy ROAPEOriginal article🔗
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