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Atlas Network: Desinformação como arma do Neoliberalismo

A organização, fundada em 1981, tem 589 think tanks em 103 países que financiam o ódio e as farsas da extrema direita. Objetivo: proteger os privilégios dos investidores.
Em 10 de outubro, o Comitê Nobel Norueguês concedeu o Prêmio Nobel da Paz a María Corina Machado. No meio de uma onda crescente da extrema direita, um dos maiores prêmios do planeta, o qual teoricamente reconhece pessoas que lutam pelos direitos humanos e pela democracia, foi concedido a uma figura central da monstruosa indústria da desinformação que promove os novos fascismos.

A Venezuela, país da líder da oposição María Corina Machado, serve como um dos instrumentos do movimento reacionário internacional para envenenar o discurso público. Atores dos dois lados do Atlântico manipulam a política venezuelana para adaptá-la em suas narrativas. Na Espanha, por exemplo, o país desempenhou um papel central na campanha de difamação contra o Podemos: desde a fabricação de boatos na mídia até falsos processos judiciais, incluindo a extorsão de pessoas ligadas a instituições do país latino-americano. O papel central de Machado nas políticas intervencionistas dos Estados Unidos em relação a Caracas leva diretamente a um dos mais poderosos centros de financiamento, ideias e força operacional dentro da indústria da desinformação: a Atlas Network.

No comando da Colonização Neoliberal

Antony Fisher fundou a Atlas Network em 1981. Observar como a organização se transformou na gigante transnacional que é hoje e entender sua influência na ofensiva antidemocrática revela quem está por trás de Trump, Orbán, Abascal e Ayuso. No final, essas figuras políticas afirmam defender ‘a verdade’, ‘a pátria’, ‘a família’ ou, por excelência, ‘a liberdade’, mas os grandes proprietários de capital que financiam a Atlas Network usam esses símbolos vazios para justificar as barbaridades cometidas em defesa de seus crescentes privilégios.

Fisher, fundador do Institute of Economic Affairs (IEA) em Londres nos anos 1950, desempenhou um papel central na implantação da ideologia neoliberal no Reino Unido. Com a vitória eleitoral de Margaret Thatcher em 1979, o neoliberalismo transformou-se de uma escola econômica de pensamentos para uma visão de mundo hegemônica, que foi imposta com força dogmática. A então primeira-ministra britânica proclamou: ‘Não há alternativa’. Foi a era do ‘fim da história’: o capitalismo, tendo se libertado da supervisão estatal, havia claramente atingido seu estágio evolutivo final. A partir de então, o destino da sociedade era simplesmente assistir ao mercado absorver tudo. Era o sistema ideal, nosso suposto futuro como uma comunidade humana.

Atlas Network nasceu deste contexto com um objetivo claro: injetar a doutrina neoliberal não apenas como um modelo socioeconômico entre outros, mas como uma racionalidade em si mesma, capaz de moldar a forma como as pessoas percebem e interpretam o mundo. Para alcançar isso, a Atlas Network despolitizou conceitos como mercado livre, privatização e desregulamentação, desvinculando-os de seus interesses reais e apresentando-os como verdades irrefutáveis. As pesquisadoras Marie-Laure Djelic e Reza Mousavi definem o ‘think tank neoliberal’ como o instrumento escolhido para esse fim.

Com o apoio dos pais do neoliberalismo intelectual Friedrich von Hayek e Milton Friedman (fundadores do Mont Pelerin Society e líderes da escola na Áustria e em Chicago), juntos com Thatcher e doações privativas substanciais, a Atlas Network (originalmente "Atlas Economic Research Foundation") iniciou suas operações em San Francisco. Seu orçamento anual girava em torno de US$ 150.000, com a missão de atuar como incubadora de think tanks neoliberais em todo o mundo. A chegada de Ronald Reagan ao governo em janeiro de 1981, como também sua participação em enormes fundações ultraconservadoras americanas, como a Heritage na implementação da Atlas, fez dos Estados Unidos o lugar perfeito para se estabelecer. Afinal, é o berço do imperialismo capitalista. De acordo com o seu próprio relatório anual, a Atlas Network tinha, em 2023, um orçamento de 28 milhões de dólares e 589 think tanks em 103 países.

Os métodos usados por essas instituições de doutrinação vão desde a organização de eventos, em que reforçam e ampliam a rede, até a criação de centros educacionais para difundir às novas gerações a ideologia ultraliberal através de estratégias mais heterodoxas como a formação do International Atlas Freedom Corps em 2023, cuja tarefa é procurar no mundo candidatos para liderar think labs. Simplificando, o objetivo sempre foi propagar a doutrina neoliberal no maior número de lugares possíveis, apresentando-a como conhecimento especializado independente ou até mesmo como hipóteses de aspecto científico, graças aos esforços aplicados no campo acadêmico.

Atlas Network - EUA, golpe duplo

As origens da citada María Corina Machado são perfeitas para entender a dinâmica entre a Atlas Network e os EUA, e como as conexões da rede de think tanks impactam naqueles lugares que pretendem sair do raio da ação imperialista norte-americana.

Os anos 2000 começaram na Venezuela com a eleição de Hugo Chávez. Em seu itinerário político, de natureza socialista, ele destacou a intenção de colocar um fim à fuga de capital que tinha origem da vasta riqueza do território nacional que beneficiaram mais as corporações privadas estrangeiras do que a própria sociedade venezuelana. Uma das companhias com uma grande presença nesse saque colonial foi a petroleira Exxon, com sede nos EUA e um papel de destaque no financiamento da Atlas Network.

É aqui onde a roda começa a girar.

O governo de Chávez procurou não apenas reduzir os lucros de um patrono da Atlas, mas sim desafiar o próprio consenso neoliberal. Para a operação de desestabilização, a rede contou com Cedice, um think tank venezuelano listado nos quadros da Atlas Network. Bem financiado pelos EUA por meio do National Endowment for Democracy (NED), Cedice liderou iniciativas de todos os tipos em oposição a Chávez e até mesmo a Rocío Guijarro, sua presidente, e assinou o decreto com o qual se pretendia consolidar o golpe de Estado de abril de 2022. O nome de María Corina Machado aparece entre os presentes na posse do governo provisório em 12 de abril de 2022, como resultado do golpe. Ela apareceu como integrante da Cedice, mas logo começaria a se destacar por conta própria.

Em julho do mesmo ano, ela fundou a organização civil Súmate, cujas atividades anti-Chávez receberam apoio dos EUA desde o começo, novamente via NED. Um documento da própria agência mostra que a Súmate recebeu pelo menos US$ 53.400 diretamente da NED em 2003.

A partir desse momento, Machado passou a ser uma figura importante dentro da enorme rede da Atlas Network. O nome dela aparece em praticamente todas as a campanhas de desinformação destinadas a desestabilizar a situação política da Venezuela, e a Atlas, por sua vez, a promoveu de forma intensa em todos os eventos e publicações. A conexão é explícita e inegável: em 2014, Machado agradeceu publicamente a Atlas pelo seu 'apoio e inspiração'. Mais recentemente, em 10 de outubro de 2025, a conta oficial da Atlas Network no X parabenizou a conquista do seu Prêmio Nobel da Paz, destacando sua 'longa relação profissional com Machado, que discursou no Freedom Dinner anual da organização, em 2009.'

Atlas Network e a indústria da desinformação

Desde o começo, a desinformação tem desempenhado um papel central nas operações da Atlas Network. Para uma organização tão intimamente ligada às grandes corporações de combustíveis fósseis, as décadas de 80 e 90 foram um período revolucionário, dada a consolidação do movimento ambientalista. Além da Exxon, o império dos irmãos Koch, a segunda família mais rica dos EUA e outra das financiadoras mais ricas da Atlas Network, tinha enormes investimentos em projetos que estavam sendo questionados pelo impacto ambiental. E elas não eram as únicas corporações que alimentavam as contas da rede de think tanks.

Embora estivesse em funcionamento há apenas alguns anos, a Atlas Network conseguiu, naquele período, se consolidar como o núcleo de um grupo de organizações dedicadas a espalhar a negação das mudanças climáticas pelo mundo. O veículo de pesquisa DeSmog descreve essa rede como um 'complexo industrial anticiência', já que a Atlas Network estava construindo uma espécie de proto-indústria da desinformação.

É possível encontrar casos de mentiras espalhadas mundialmente anos antes das plataformas como Twitter existirem, com a Atlas Network envolvida. Certamente, o mais paradigmático é o das armas destruição em massa no Iraque. Durante a comissão do inquérito sobre o 11/09, uma das pessoas que lançou a teoria que ligava o ataque ao Iraque foi Laurie Mylroie, membro do think tank American Enterprise Institute (AEI), da Atlas Network. A partir daí, vários membros da AEI, como Lynne Cheney, John Bolton, e Michael Ledeen, adotaram uma campanha de desinformação que se espalhou pelo mundo resultando na invasão do Iraque. George Bush chegou a declarar: "Admiro muito a AEI (...) Afinal, tenho constantemente me aproveitado de alguns dos seus melhores integrantes."

A revolução das redes sociais apenas abriu uma infinidade de novas possibilidades e há vários exemplos contemporâneos que mostram como Atlas Network integrou o potencial de novas tecnologias de comunicações em atividades antidemocráticas. Em novembro de 2021, poucos dias antes das eleições gerais na Nicarágua, as três redes com maior impacto na opinião pública – Instagram, Facebook e Twitter – suspenderam centenas de contas de veículos de mídia, jornalistas e ativistas proeminentes da esquerda sandinista. A explicação, ao menos para o Instagram e Facebook, foi apresentada em um relatório da empresa-mãe Meta, liderado por Ben Nimmo, no qual essas contas foram acusadas, sem evidências, de serem falsas. Assim como María Corina Machado e praticamente qualquer líder dessas campanhas sujas de guerra, Nimmo combina em sua figura a influência da administração americana e da Atlas Network. Ele foi o líder de pesquisa na Graphika, uma iniciativa fundada pelo Departamento de Defesa dos EUA, e faz parte do Atlantic Council, um think tank neoliberal que somente entre 2022 e 2023 doou US$ 537.750 para a Atlas Network.

A influência da Atlas Network na União Europeia também é enorme. Um estudo do Observatoire des multinationalesmostra o quanto esse conjunto de organizações se infiltrou nos espaços onde são formuladas as políticas públicas que governam o mundo. ECIPE, um dos mais de 500 think tanks que compõem a rede, reforça na Europa a perpetuação da ordem neoliberal e critica duramente qualquer iniciativa que questione, mesmo que minimamente, a desregulamentação em favor de valores como igualdade ou redistribuição. Apesar de sua clara inclinação ideológica, Politico, um veículo de referência na esfera de tomada de decisões da UE, rotineiramente repercute suas narrativas, apresentando-as como se viessem de uma fonte independente. Mais grave ainda é que o próprio Parlamento Europeu considera as correntes de opinião provenientes da ECIPE 'especializadas e independentes', como afirma o mesmo artigo.

A Epicenter, outra das organizações da Atlas na Europa, publica um ranking que chama de 'estados-babá', com o objetivo de denunciar restrições às liberdades dos cidadãos. Essa classificação criminaliza regulações sobre álcool ou tabaco, um critério que deixa evidente o que esses think tanks entendem por ‘liberdade’: a possibilidade de extrair benefícios econômicos sem limites, mesmo quando a saúde pública está em risco. Mais uma vez, é a rede da Atlas Network desinformando a serviço dos donos de grande capital, que se recusam a renunciar a uma parcela ínfima de seus privilégios em prol de um mundo menos desigual. Isso é demonstrado por um dado: Philip Morris, a maior empresa de tabaco do mundo, está ligada a Atlas desde a sua criação; René Scull, ex-vice-presidente da companhia, atuou no conselho da Atlas Network, e há registro de uma doação de quase meio milhão de dólares feita pela Philip Morris em 1995.

Em 2023, a Epicenter se gabou de ter atingido 250 milhões de pessoas graças às suas informações terem sido mencionadas mais de 300 vezes na mídia europeia.

Resumidamente, a Atlas Network hoje possui a capacidade de impor praticamente qualquer narrativa na agenda política e até moldar aquele terreno intangível, porém maleável, onde se trava grande parte da batalha cultural conhecida como 'senso comum'.

A sombra da Atlas Network na Espanha

No Estado espanhol, é o Vox que melhor personifica a ofensiva reacionária que as elites neoliberais lançaram como mecanismo de defesa contra o colapso do sistema capitalista, e, neste ponto, não deveria surpreender ninguém encontrar a marca da Atlas Network no percurso do partido da ultradireita. As conexões podem ser encontradas antes mesmo de sua entrada formal no cenário político.

A semente do Vox foi forjada na Fundação DENAES (Defensa de la Nación Española), criada e liderada por Santiago Abascal – onde dividiu espaço com Javier Ortega-Smith ou Iván Espinosa de los Monteros – até 2014. Durante esses anos, Esperanza Aguirre manteve o atual líder do Vox generosamente abastecido com financiamento; por exemplo, a Comunidade de Madrid concedeu-lhe quase 300.000 € entre 2008 e 2012. Aqui, o vínculo com a Atlas é duplo: Aguirre foi membro do conselho da FAES (Foundation for Advanced Education in the Sciences), além de ter relação com a Civismo Foundation, ambos pertencentes à rede de think tanks da Atlas Network.

Josué Mitsuba Aznar, estritamente ligado à Atlas, fundou a FAES, que desempenhou um papel importante no lançamento do Vox. Dos seus membros surgiu aquele que viria a presidir o Vox no seu início, Alejo Vidal-Quadras. Também da FAES veio Rafael Bardají, responsável pela guinada bem-sucedida do Vox nos últimos anos em direção à estratégias de desinformação elaboradas por Steve Bannon, que hoje "encheram de merda" a esfera da política espanhola. Uma das principais armas do partido é o Disenso Foundation, criado em 2020 e comandado por Jorge Martín Frías, ligado à própria FAES e fundador da Floridablanca Network, incluída na lista de think tanks da Atlas Network. E ainda tem mais: Juan Ángel Soto, diretor da já citada Civismo Foundation, também atuou na Disenso como responsável pelas Relações Internacionais.

O lançamento – com a Disenso de organização de fachada – do portal La Gaceta de la Iberosfera, uma fonte constante de boatos e discurso de ódio, coloca a estratégia do Vox em total alinhamento com a dinâmica da Atlas Network ao redor do mundo.

Do binômio Vox-Disenso surge também o Fórum de Madri, uma cúpula internacional da extrema direita cujo documento fundador, a Carta de Madri, testemunha com uma clareza arrepiante a existência de uma rede organizada que constitui o núcleo da ofensiva fascista. Entre suas assinaturas está a de Alejandro Chafuen, ex-CEO e ex-presidente da Atlas Network, a de Roger Noriega, o elo do governo dos EUA com a indústria da desinformação, e a de golpistas profissionais, como María Corina Machado ou o boliviano Arturo Murillo.

Para dar uma ideia mais concreta da capacidade da Atlas Network de influenciar a população espanhola, basta olhar a relação entre o Atlantic Institute of Government, outra organização fundada por Aznar e pertencente a rede da Atlas, e a Universidade Francisco de Vitoria, pertencente aos Legionários de Cristo. A colaboração entre as duas exemplifica o sucesso da iniciativa de Antony Fisher em 1981: de acordo com os próprios dados da universidade, mais de 20.000 jovens estarão, neste ano letivo, expostos à doutrina neoliberal apresentados como conhecimento acadêmico. Comunicadores como Vicente Vallés, peão da indústria da desinformação e apresentador do maior programa de notícias da Espanha, são frequentemente convidados pela Atlantic Institute para visitar os estudantes da universidade ligados ao fundador mexicano dos Legionários, o pedófilo em série Marcial Maciel.

Available in
SpanishEnglishPortuguese (Brazil)GermanFrenchItalian (Standard)TurkishArabic
Authors
Julián Macías and Diego Delgado
Translators
Júlia Tosoni, Daniela Hatakeyama and ProZ Pro Bono
Date
03.12.2025
Source
CTXTOriginal article🔗
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