Mas também parece impreciso. Os mais ricos não apenas suportaram essa tempestade como também melhoraram sua posição econômica; só os bilionários norte-americanos tiveram um acréscimo de US$ 282 bilhões à sua riqueza no primeiro mês da pandemia. Enquanto isso, uma proporção crescente da humanidade enfrenta condições de vida (ou de morte) que continuarão após os surtos do vírus. Esse destino não está predeterminado. Os movimentos sociais, as políticas progressistas e a solidariedade internacional podem empurrar o pêndulo em outra direção. Independentemente das forças que prevalecem, os riscos do momento atual são excessivamente altos. A discussão sobre o que deve ser feito nunca fez tanto sentido como agora.
O paradoxo em momentos como esse é que se trata de um período muito curto e muito longo, ao mesmo tempo.
A pandemia de Covid-19 já durou muito tempo: uma coordenação internacional mais forte e investimentos em saúde pública poderiam ter contido o vírus e limitado seu número de mortes. As consequências econômicas da Covid-19 reverberam em todo o mundo. O lockdown foi apenas um estágio; à medida que o desemprego sobe a novas alturas, o horizonte da crise se estende, cujo fim e impacto é incerto.
Porém, enquanto possibilidade para uma renovação radical, momentos como este são muito curtos. Num piscar de olhos o momento passa e outro alguém terá escrito a história. A luta pela ordem social no mundo após o coronavírus já está em curso. Em salas de reunião além do alcance do público, aqueles que ganharam a maior fatia nas últimas décadas estão ocupados com a criação de mecanismos para assegurar seus privilégios às custas de todos os outros. Esses planos moldarão nossas vidas por uma geração e nos prenderão em um modelo econômico que determinará o destino de nosso planeta por séculos. Temos apenas uma janela de oportunidade para impactar a arena política e moldar o processo de elaboração de políticas.
E assim o faremos. Com a pandemia, bilhões de pessoas em todo o planeta estão atualmente enfrentando o mesmo desafio, ainda que com recursos muito diferentes. A partir deste ponto, a Covid-19 aprofundará as desigualdades do mundo, seja nos contextos nacional ou internacional. Se não aproveitarmos este raro momento de crise compartilhada, é provável que o Norte Global se restabeleça e se recuse a redistribuir recursos ou a aliviar a dívida soberana esmagadora de um Sul Global que ainda luta contra o vírus e suas consequências econômicas - uma negativa muito provavelmente acompanhada de medidas de segurança reforçadas para restringir ainda mais a migração transfronteiriça.
Tudo isso para dizer: por mais estranho que pareça, a nossa política talvez tenha sido mais propícia ao internacionalismo do que neste momento.
É com esse espírito que organizamos esta série. O objetivo é traçar os componentes de um Green New Deal internacional: iniciar uma discussão sobre o que deve e não deve implicar, o que podemos aprender com aqueles que já investiram tantos esforços neste sentido em diversos lugares do mundo, e de que maneira construir uma estrutura institucional internacional robusta para apoiar tais esforços, coordenar a comunicação e o aprendizado entre si, e construir novas infraestruturas que possam proporcionar a todos eles e a outros a solidariedade e o apoio para expandir, aprofundar e iniciar novos trabalhos.
Nossa visão para um Green New Deal é internacional em dois sentidos: em primeiro lugar, sem cooperação global não há caminho para reduções drásticas nas emissões de carbono; e em segundo lugar, a expansão dos experimentos de Green New Deal através dos países é essencial para a efetivação da justiça climática no mundo inteiro. Esses dois sentidos de internacionalismo se nutrem um ao outro. Mudanças fundamentais na ordem mundial, do alívio da dívida à distribuição justa da tecnologia verde, são fundamentos necessários para os Green New Deals nacionais e subnacionais - especialmente no Sul Global, onde as finanças e a soberania são brutalmente constrangidas pela arquitetura geopolítica existente. Por outro lado, as ideias inovadoras de como pôr em prática tal transformação devem partir de experiências concretas e vivenciadas pela organização coletiva, e das políticas climáticas que melhoram a vida das pessoas em cidades, províncias e países ao redor do mundo.
A série conterá um conjunto diversificado de perspectivas que abrangem uma vasta gama de preocupações. Dos bancos centrais à dívida e à perda da biodiversidade, as contribuições lançam luz sobre como poderemos recuperar o mundo após a Covid-19. A seleção dos textos não é feita para representar um ponto de vista ou prioridade estratégica, nós convidamos as pessoas a apresentar ideas em várias frentes da luta política, com base em seu próprio conhecimento e experiência. Por mais urgente que seja a ação no momento, é também um momento para ideias novas, críticas apuradas de eventos recentes, o ressurgimento de experiências úteis e promissoras que alguns de nós esqueceram ou nunca tiveram contato anteriormente.
A série começa com a ampla análise de Mike Davis sobre a conjuntura atual, "A batalha final", passando depois para contribuições de pensadores como Jayati Ghosh e James Galbraith, ativistas como Carola Rackete e a equipe da Coordenação Nacional do Movimento dos Antingidos por Barragens (MAB) do Brasil. Estas contribuições analisam onde estamos e o que as instituições existentes devem fazer para enfrentar a emergência atual - questões que um Green New Deal Internacional deve enfrentar a curto prazo. Nos próximos dias, publicaremos intensas discussões sobre a trajetória de longo prazo, incluindo exames sobre o papel da tecnologia e da comunicação digital, transição energética na América Latina, política climática urbana, direito internacional e governança financeira socializada.
Evidentemente, as contribuições estão longe de serem completas, pois são um trabalho em construção. Uma gama cada vez maior de contribuições será necessária para desenvolver o paradigma do Green New Deal internacional. À medida que esta série for crescendo, espera-se que ela se torne um reflexo melhor da amplitude e profundidade necessárias do trabalho a ser realizado. Mas há muita coisa em jogo para não ir adiante e compartilhar as ideias que podem ajudar a impulsionar um movimento internacional. É imperativo começar desde já, antes que a história seja escrita sem nós.
Foto: Marc Tarlock