O regime de ocupação desenvolveu uma ampla gama de ferramentas para vigiar, controlar, humilhar, excluir, desapropriar, empobrecer e acabar com a vida dos palestinos.
Em Ramallah, a nossa delegação se reuniu com uma série de organizações de direitos humanos que recentemente foram apontadas como grupos "terroristas", o que impediu os bancos de prestarem serviços a elas e a seus funcionários.
Em incursões frequentes às casas palestinas, líderes do movimento e civis são assassinados pelas forças de segurança israelenses com absoluta impunidade em. Desde o início deste ano, mais de 150 palestinos foram assassinados pelas forças de ocupação, dentre eles mais de 20 crianças, e o regime israelense subsequentemente tem demolido as casas de diversos líderes assassinados ou presos. Somente em maio, as forças do regime israelense mataram 36 palestinos em um ataque à Faixa de Gaza que durou quatro dias. E a violência continua aumentando.
Em Silwan, Jerusalém, cerca de metade de todas as casas estão sujeitas a demolição. As famílias têm a possibilidade de conservá-las se pagarem um resgate para que permaneçam de pé. No entanto, mesmo depois do pagamento as escavadeiras continuam chegando. Em seguida, a família despejada recebe uma conta e deve pagar pelos soldados e cães que a expulsaram de sua casa e as máquinas que a demoliram.
Em Belém, os moradores do campo de refugiados de Aida estão sujeitos a humilhações rotineiras nas mãos das autoridades de ocupação. A cada poucos meses, caminhões militares israelenses borrifam excrementos na vizinhança, e apontam suas mangueiras para as janelas abertas. Às vezes os soldados quebram as paredes das casas com explosivos, traumatizando as crianças no processo. Quando a nossa delegação chegou, as famílias foram atacadas com gás lacrimogêneo enquanto prestavam homenagem aos parentes falecidos no cemitério da comunidade. Quando visitamos o mesmo cemitério mais tarde naquela noite, fomos ameaçados com armas de fogo.
Nas semanas seguintes à nossa saída de Belém, o regime israelense instalou um rifle automatizado no seu muro de exclusão, bem acima do cemitério. Esses "atiradores inteligentes", como são chamados, representam uma das várias soluções tecnológicas desenvolvidas pelo regime israelense e seus apoiadores internacionais para sustentar a ocupação e esmagar o povo palestino. Aqui está outro exemplo, cujo uso testemunhamos em duas ocasiões: como as crianças palestinas aprenderam a jogar os cilindros de gás lacrimogêneo para fora do caminho do perigo, os EUA desenvolveram uma nova granada de gás lacrimogêneo - apelidada localmente de "borboleta" - que pula enquanto libera o gás tóxico.
A impunidade permitida diante de observadores internacionais é uma amostra dos horrores que ocorrem na ausência deles. Uma noite, antes de chegarmos ao campo de Aida, soldados israelenses atiraram em dois jovens com balas explosivas, munição proibida pela legislação internacional. Um deles perdeu uma perna. Os intestinos do outro saíram de seu abdômen. Ambos sobreviveram, embora as tropas israelenses os tenham largado para morrer à beira da estrada.
Um processo mais sutil está em andamento em Hebron. Em 23 anos, 1.350 lojas palestinas foram fechadas pelas forças de ocupação israelenses, esvaziando a vida econômica da cidade e semeando miséria e desespero entre a população. A partir de um assentamento em constante expansão, fortemente protegido por postos de controle de alta tecnologia, os colonos israelenses atacam as lojas remanescentes com rajadas diárias de pedras, urina e ácido. O coração pulsante da cidade murcha aos poucos, dando lugar a um assentamento sem vida.
Cada um desses processos – que representam um mero fragmento do que testemunhamos – opera para expulsar o povo palestino e criar um Estado judeu etnonacionalista nas suas terras.
O movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) aponta o novo governo israelense como "o mais racista, fundamentalista, sexista, corrupto, autoritário e homofóbico de todos os tempos – sem máscaras". O regime representa, dentre outros, os interesses de um ramo específico do projeto sionista: os colonos. O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, um "fascista" autodeclarado, pediu repetidamente a destruição das cidades e comunidades palestinas, enquanto planejava uma expansão radical do projeto de assentamento dos colonos. Desde a nossa visita, Benjamin Netanyahu conferiu autoridade total a Smotrich para expandir os assentamentos existentes – e amplos poderes para fazê-lo.
Atualmente o governo está levando a cabo uma série de "reformas" judiciais e sociais que encontraram uma oposição significativa entre os israelenses liberais, que toleram o regime de apartheid na medida em que a pretensão de democracia liberal (com primazia judaica) é preservada. Como resultado das reformas do regime de Netanyahu, muitos acreditam que Israel corre o risco de provocar uma onda de fuga de capitais que poderia sacudir a própria base da economia dos colonos.
O consenso geral entre os palestinos na Cisjordânia parece ser o de que, embora o regime permaneça fundamentalmente de natureza colonial e, nesse sentido, não mudou drasticamente, as contradições desencadeadas pelo novo governo israelense abrem novas oportunidades para o povo palestino e seus apoiadores. Em 16 de maio publicamos um resumo dessa análise, escrito por Omar Barghouti, o fundador do BDS, que você pode ler aqui. Percebemos que ela reflete um amplo consenso na Palestina.
O povo palestino está envolvido em duas lutas paralelas: a luta nacional e a luta de classes.
A luta nacional vem sendo travada incessantemente desde 1948. As suas exigências, que unem todos os palestinos, são a autodeterminação, o direito ao retorno dos refugiados e o fim da ocupação israelense, direitos esses garantidos pela legislação internacional. Durante décadas, a luta nacional foi prejudicada pelo que alguns chamaram de "Osloização", o processo, iniciado com os Acordos de Oslo e acordos subsequentes, de desmobilização, de qualificação das ONGs e de abandono dos princípios revolucionários em troca de uma solução de dois Estados, cuja promessa tem se mostrado mais ilusória a cada ano que passa.
Os Acordos de Oslo, concluídos em Washington, foram uma tentativa de normalizar a posição permanente e poderosa de Israel na Ásia Ocidental como uma cabeça de ponte para a projeção do poder dos EUA, sustentada pela abertura de relações com regimes regionais despóticos em troca de garantias de segurança, projeto que continuou sob Donald Trump e só passou a ser desafiado com o surgimento da China como um ator diplomático na região.* Os Acordos de Oslo não concederam ao povo palestino os direitos que lhe foram garantidos pelas sucessivas resoluções das Nações Unidas. Em vez disso, as questões de autodeterminação, da ocupação e dos refugiados foram adiadas indefinidamente. A situação se transformou num sistema de apartheid aceito internacionalmente que continua a desapropriar, deslocar e aterrorizar o povo palestino diariamente. Ficou claro que o objetivo do regime israelense é a aniquilação da Palestina, não a sua soberania.
A luta de classes diz respeito ao conteúdo da luta pela libertação, ao tipo de projeto político que dará força à luta e ao tipo de sociedade que surgirá.
Atualmente, o povo palestino está criando um movimento de protesto que exige eleições para o Conselho Legislativo Palestino. Essas eleições ocorreram pela última vez em 2006 e, como resultado, a distância entre a liderança palestina e o povo aumentou. A Autoridade Palestina, por sua vez, colaborou com os serviços de segurança israelenses para reprimir a dissidência na Palestina e, ao mesmo tempo, implementou políticas que atendem aos interesses da burguesia compradora palestina, que serve aos expropriadores em detrimento dos interesses do povo. Ligadas a essa luta interna pela democracia há questões mais amplas sobre justiça social.
Não testemunhamos a luta paralela que ocorre em cidades como Jenin e Nablus, bem como em Gaza, e que se caracteriza pela resistência armada liderada por vários grupos islâmicos conservadores, alguns organizados, mas muitos deles alheios a afiliações partidárias. Naturalmente, essas forças têm a simpatia e o apoio da maioria da sociedade palestina, inclusive da esquerda, devido aos sacrifícios que fazem pela libertação da Palestina. Porém, entende-se que o crescente conservadorismo social e religioso na sociedade palestina pode trazer desafios à construção da coesão social a longo prazo.
O poderio militar do regime israelense obscurece a fraqueza fundamental do seu projeto colonial mais amplo, fraqueza esta que é tanto econômica quanto moral.
Do ponto de vista econômico, cerca de 25 por cento do PIB de Israel e 40 por cento do total das suas exportações se concentram no setor de alta tecnologia. A burguesia palestina é cúmplice nesse e em outros setores. Em Ramallah, ficamos sabendo de um novo "centro de tecnologia" criado para trabalhadores palestinos. A instituição emprega palestinos, que enfrentam condições de trabalho altamente exploradoras e são cronicamente mal pagos. Os lucros gerados ali são transferidos para empresas nos territórios de 1948**, gerando lucros para a burguesia palestina, seus parceiros israelenses e, por fim, para as empresas de outros países que os contratam.
A radicalização do regime israelense sob o mais recente governo de Netanyahu causou uma crise nesse setor, marcada por greves, fuga de capital, ameaças e outras formas de protesto. Como o Movimento BDS documentou detalhadamente, o estado de espírito da burguesia israelense está mudando, e hoje muitos buscam sustentar seus negócios no exterior.
Dada a estreita relação entre as burguesias israelense e palestina, simbiose que funciona para sustentar a ocupação, há uma clara sensação de que o dominó pode pender irreversivelmente a favor da resistência palestina caso a atual trajetória política seja mantida. É improvável que a comunidade de colonos israelenses gere resultados econômicos suficientes para substituir o setor de alta tecnologia, na verdade, segundo todos os relatos, ela drena o Estado israelense.
Em termos morais, está claro que a luta do povo palestino é justa. Apesar dos contratempos diários, da humilhação rotineira e da violência constante, o povo palestino permanece destemido e digno em sua luta. O mesmo não pode ser dito dos colonos sionistas e seus apoiadores no seio das forças de ocupação. Quanto mais adentrávamos os territórios de 1967, mais eles pareciam estar aterrorizados, encolhidos e preparados a todo momento para desencadear uma violência desproporcional contra pessoas que não representavam nenhuma ameaça aparente para eles. Em um sentido muito visceral, é óbvio que o compromisso dos ocupados com a libertação é maior do que o compromisso do ocupante com a subjugação.
"Muitos estrangeiros vêm à Palestina e querem brincar de Che Guevara", disse-nos um ativista em Jerusalém Oriental. "Mas quando voltam para casa, não fazem nada para desafiar as instituições que tentam nos apagar."
Em todos os lugares que visitamos ouvimos a mesma mensagem. A solidariedade internacional com o povo da Palestina não tem sentido, a menos que rompa as cadeias de cumplicidade que permitem que os Estados, as empresas e outras instituições em todo o mundo financiem a ocupação israelense.
É por isso que a maior coalizão palestina da história criou o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções. As suas metas refletem os direitos consagrados na legislação internacional, acabar com a ocupação militar e o sistema de apartheid de Israel e conceder o direito ao retorno e reparações aos refugiados palestinos.
Em apoio ao movimento BDS, fizemos parceria com ativistas palestinos na Iniciativa das Cidades, pondo fim à cumplicidade com Israel em nível municipal. No aniversário da Nakba anunciamos que a cidade de Belém, no Brasil, foi declarada livre do apartheid, unida a cidades como Barcelona, Oslo e Liège na suspensão dos laços com o Estado de Israel devido aos seus crimes contra a humanidade. A Iniciativa das Cidades é fundamental para criar um impulso local em direção a um consenso nacional, para cortar os laços que fortalecem o apartheid de Israel e o avanço dos colonos contra os palestinos.
Mas há outras maneiras de se envolver. Para as forças da esquerda radical palestina é fundamental criar laços internacionalistas com forças semelhantes. "Precisamos aprender uns com os outros, criar estratégias comuns contra o capitalismo e articular uma direção compartilhada para nossa luta pelo socialismo", disse-me um líder político.
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(*) Sobre a China: Muitos palestinos nos disseram que, embora não considerem que a China desempenhe um papel ativamente positivo para o povo palestino, os processos históricos liderados por este país, como a normalização das relações entre o Irã e a Arábia Saudita, entre outros, criaram um espaço no qual os Estados da Ásia Ocidental estão menos suscetíveis à chantagem dos EUA. Isso estabiliza a situação na região e cria uma abertura para os movimentos que buscam desafiar a hegemonia sionista, mas que temem retaliações das potências imperialistas.
(**) O povo palestino se refere aos territórios ocupados em 1948 - após a Nakba - como "territórios de 1948" e aos territórios ocupados em 1967 como "territórios de 1967". Esses últimos incluem a Cisjordânia.