Long Reads

Não estão enviando os seus melhores para encenar um golpe na Venezuela

A recente invasão fracassada da Venezuela por vários palhaços dignos da ridícula denominação “combatentes da liberdade” é quase absurda demais para crer.
Mas, palhaçadas à parte, essa desventura só pode ser entendida no contexto da agressão cada vez mais acentuada de Donald Trump à Venezuela e seu franco desejo de derrubar o governo venezuelano.

Depois que a Central Intelligence Agency (CIA, “Agência Central de Inteligência”) tentou derrubar o governo socialista de Cuba usando um exército de refugiados políticos cubanos de direita e fracassou terrivelmente, o local da invasão, a Baía dos Porcos, tornou-se sinônimo não apenas da intervenção imperialista dos Estados Unidos no hemisfério, como também do despreparo e da incompetência da segurança nacional dos Estados Unidos. A bizarra tentativa de golpeem abril na Venezuela, um “ataque anfíbio” de poder militar tão inepto que foi barrado por pescadores locais, tem muitas semelhanças com a Baía dos Porcos. Mas, em comparação com o absurdo complô contra a Venezuela, o vergonhoso fracasso que foi a Baía dos Porcos parece um belo plano.

Não está claro precisamente quem estava por trás da tentativa de derrubar o governo venezuelano. Aconteceu, porém, no contexto da escalada de tentativas do governo Trump de mudar o regime na Venezuela, em uma campanha totalmente alinhada com a longa história dos Estados Unidos de procurar garantir que seus vizinhos do sul permaneçam firmemente sob o domínio do Tio Sam.

O plano em si tem todos os ingredientes de um filme de ação de quinta: um exército de sessenta homens derrubaria o governo atravessando a fronteira, sequestrando o presidente venezuelano Nicolas Maduro. O elenco parecia saído de uma sátira sócio-política, embora, talvez, um pouco exagerada. Composto por uma empresa privada de mercenários da Flórida, um general venezuelano aguardando julgamento nos Estados Unidos por narcotráfico e o herdeiro de uma fortuna de fabricantes de queijos, descrito pela Associated Press como “excêntrico.”

Muito clichê

Vamos começar com os fatos básicos do caso, segundo relatados até agora. No centro da trama está aSilvercorp USA, uma empresa de segurança com fins lucrativos com sede na Flórida.

Em uma história americana, singular e sombria, antes de se ramificar para a demolição de governos latino-americanos de esquerda, a empresa fora fundada para enfrentar os tiroteios nas escolas, contratando veteranos das forças especiais. A empresa de segurança esperava obter lucros em seu programa de segurança escolar, cobrando dos pais uma taxa mensal, próxima à de uma assinatura da Netflix, de $8,99, para proteger seus filhos. Parece que o plano não vingou.

O ex-boina verde Jordan Goudreau administra a Silvercorp USA e se faz presente nas suas mídias sociais e materiais promocionais. Antes de entrar para o mundo da segurança privada, ele serviu nos exércitos canadense e norte-americano. No exército americano, Goudreau serviu em várias missões no Afeganistão e no Iraque, recebendo três estrelas de bronze. Próximo ao fim da sua carreira militar, Goudreau foi investigado por desviar do Exército $62.000 em bolsas-alojamento. Nunca houve acusação formal.

A Silvercorp USA relaciona vários serviços que fornece, entre os quais estão “comando de projetos complexos”, “gestão de catástrofes” e “programas especiais”. A empresa afirma que seus “agentes viajam a qualquer momento para avaliar ameaças disparadas por movimentos políticos ou trabalhistas, por funcionários descontentes ou demitidos, convocando recursos psiquiátricos quando necessário”.

As contas da SilverCorp US Ano Twitter e Instagram, agora excluídas, indicam que a empresa prestou segurança para o Live Aid Venezuela Concert em fevereiro de 2019 na Colômbia, bem como ao menos um comício de Donald Trump. Em fotos exibidas nas mídias sociais e em um vídeo promocional, podemos ver Goudreau de pé em um comício de Trump em Charlottesville, Carolina do Norte, bem atrás da estrela de reality show empresarial que virou presidente, usando um fone de ouvido. Uma postagem no Instagram dizia “protegendo nosso maior patrimônio”. O Serviço Secreto, a campanha de Trump e os responsáveis pelo local do comício negam qualquer contratação da SilverCorp USA e de Goudreau.

O envolvimento de Goudreau no show Live Aid Venezuela o levou a se interessar pelo país. Ele apareceu em uma reunião no JW Marriott em Bogotá, Colômbia, que um participante descreveu à Associated Press como uma “cúpula no estilo Star Wars de palhaços anti-Maduro”. Na Colômbia, Goudreau foi apresentado a Cliver Alcalá, ex-general venezuelano atualmente acusado nos Estados Unidos de tráfico de drogas. Goudreau e Alcalá começaram a tramar a queda de Maduro, usando 300 ex-militares venezuelanos na Colômbia.

Um antigo elemento da Marinha dos EUA, que dirige o que foi descrito como organização “humanitária” sem fins lucrativos que atua em zonas de guerra, foi encarregado de prestar treinamento médico aos pretensos soldados. Ao chegar, encontrou vinte homens vivendo em uma casa de cinco quartos, sem água corrente e com pouca comida e suprimentos. Ficou tão chocado, que procurou Goudreau na esperança de convencê-lo a abandonar seus insensatos planos.

Alcalá, por outro lado, gabou-se do plano para a inteligência colombiana, afirmando que Goudreau era um ex-oficial da CIA. Segundo a Associated Press, a inteligência colombiana contatou a CIA, que negou ter Goudreau em suas linhas. Os colombianos disseram a Alcalá para “parar de falar sobre invasão ou estaria expulso”.

Alcalá teve mais problemas. Em 23 de março, as autoridades colombianas interceptaram um carregamento de equipamentos militares que continha 26 fuzis semi-automáticos fabricados nos Estados Unidos, com os números de série removidos e com destino à Venezuela. Logo depois, e no mesmo dia em que ele foi processado nos Estados Unidos por tráfico de drogas, junto com Maduro, Alcalá assumiu publicamente o crédito pelo carregamento. Com uma recompensa de $10 milhões por sua cabeça, por parte dos Estados Unidos, Alcalá rapidamente recuou, alegando não ter nada a esconder. Segundo o Financial Times, “ele foi despachado do país em poucas horas, mesmo com os promotores colombianos dizendo que não havia mandado de prisão nem pedido de extradição”.

Amadorismo

Alcalá não foi o único ator nessa trama. Goudreau também procurou o guarda-costas de Donald Trump, Keith Schiller. Segundo a Associated Press, Schiller apresentou Goudreau aos membros da oposição venezuelana em Miami. Parece, porém, que Schiller deixou isso de lado por ter ficado preocupado com o amadorismo das conspirações de Goudreau.

O Washington Post narrou como Goudreau teve reuniões em Miami com um representante do comitê secreto de Juan Guaidó. Eles combinaram de assinar um acordo para sequestrar Maduro, desde que obtivessem financiamento para esta operação. O financiamento para a expedição não veio nunca e Goudreau começou a pedir à oposição o pagamento de um adiantamento de $1,5 milhão. Eles alegam, então, ter interrompido o contato.

Além disso, Goudreau procurou um assistente do escritório de Mike Pence e apelou para Roen Kraft, “um excêntrico descendente da família dos queijos”, segundo a Associated Press, em busca de financiamento. O escritório de Pence nega ter tido contato com Goudreau. Também Kraft nega qualquer financiamento e afirma ter rompido com ele por questões de estratégia militar.

A questão maior, porém, permanece sem resposta: que papel exerceram o governo dos Estados Unidos e a oposição de Guaidó nesta trama? A investigação da Associated Press não revelou nenhuma evidência de envolvimento oficial dos Estados Unidos. O Secretário de Estado, Mike Pompeo, negou diretamente o envolvimento, afirmando: “se estivéssemos envolvidos, teria sido diferente”. Donald Trump também negou envolvimento afirmando que, se estivesse por trás disso, teria enviado o exército.

Embora não tenham vindo à tona evidências de uma conexão direta dos Estados Unidos, não são apenas os teóricos paranoicos da conspiração que levantariam essa dúvida. Os Estados Unidos têm uma longa história de ações secretas na América Latina, e o governo Trump tem agravado suas exigências belicosas de mudança de regime. Mesmo que não tenha sido uma ação oficial dos Estados Unidos, ela não tem como ser totalmente separada das atuais relações entre Estados Unidos e Venezuela. É muito provável que os Estados Unidos pelo menos tivessem conhecimento da trama, dadas as investigações relatadas pela inteligência colombiana.

Quanto ao “governo” de Guaidó, a história aqui é totalmente diferente. Segundo Goudreau, Guaidó assinou um acordo para pagar $ 215 milhões por seus serviços, o que Guaidó negou publicamente. Como prova, Goudreau apresentou à mídia uma cópia do “contrato de serviços gerais” com a assinatura de Guaidó, assim como um áudio que ele afirma ser de Guaidó ao assiná-lo. E a própria reportagem do Washington Post parece confirmar que alguém, em nome da oposição, assinou algum tipo de contrato com Goudreau.

A maior parte do mundo tomou conhecimento da SilverCorp USA e de Goudreau em 1º de maio, data em que a Associated Press publicou uma longa investigação sobre a trama da SilverCorp. O artigo, baseado em entrevistas com trinta fontes separadas, revelou um esquema tão moribundo quanto irremediavelmente condenado.

Dois dias depois do mundo tomar conhecimento do plano, o governo venezuelano anunciou que havia barrado uma incursão de “mercenários terroristas” com lanchas ao norte de Caracas, em La Guaira. Como resultado, o exército venezuelano matou oito pessoas e deteve outras duas. Inicialmente, como geralmente acontece, opositores do governo venezuelano declararam que o incidente foi inventado. Mas Goudreau divulgou um vídeo explicando que a operação havia começado e que havia sessenta homens na Venezuela.

Além do vídeo, a SilverCorp USA tuitou informações similares. Eles marcaram Donald Trump no tweet. A firma de mercenários com sede na Flórida que dirigiu a excursão militar muito mal planejada à Venezuela aparentemente tem um twitter. E um Instagram. Peak 2020.

No dia seguinte, o governo venezuelano prendeu, com a ajuda de pescadores, mais dez mercenários, também homens de Goudreau. Entre os capturados havia dois ex-veteranos das Forças Especiais dos Estados Unidos. Ao longo da semana, ocorreram mais prisões.

Segundo Goudreau, ele nunca recebeu dinheiro da oposição, apesar do contrato assinado. Ele afirma que decidiu seguir em frente com a incursão porque era um “combatente da liberdade” – e é isso que ele faz. Outros sugeriram que Goudreau também poderia ter uma motivação menos altruísta: ele esperava receber a recompensa de $15 milhões que o governo dos Estados Unidos colocou pela cabeça de Maduro.

Um Estado nocivo à solta

Há muito a Venezuela está na mira dos EUA e o governo Trump vem procurando intensificar os ataques ao país. Trump tem expandido continuamente as sanções contra a Venezuela, mesmo com o país em luta contra a COVID–19. Muito antes da COVID-19, um estudo doCenter for Economic and Policy Research (Centro para Pesquisa Econômica e Política) verificou que as sanções dos Estados Unidos em relação à Venezuela haviam causado 40.000 mortes entre 2017 e 2018.

Na última eleição presidencial, a oposição venezuelana boicotou a eleição, alegando antecipadamente fraude eleitoral. Os Estados Unidos anteciparam que não aceitariam o resultado da eleição. Com a maioria da oposição se recusando a participar da eleição, Maduro venceu com facilidade. (Alguns sugeriram que “a oposição poderia ter vencido se não a boicotassem”.)

A oposição tem maioria na Assembleia Nacional da Venezuela (fruto de se importar em disputar uma eleição). Citaram uma disposição da Constituição venezuelana de que, se o presidente abandonar seu cargo, o presidente da Assembleia Nacional assume a presidência. Embora isso não se aplique de maneira viável à situação atual, um político relativamente desconhecido, Juan Guaidó, se autodeclarou presidente da Venezuela com base nessa disposição. Embora ele não tenha nenhum controle sobre o governo, os Estados Unidos o reconhecem como presidente da nação, o que é cômico.

Desafiando descaradamente o direito internacional, os Estados Unidos se mobilizaram para desapropriar as propriedades do governo venezuelano e entregá-las ao “governo” de Guaidó. Quando o governo venezuelano deixou a embaixada dos Estados Unidos, ativistas antiguerra dos Estados Unidos, conhecidos como “Embassy Protection Collective” (Coletivo de Proteção à Embaixada), permaneceram nela. Os ativistas tentaram impedir que o governo dos Estados Unidos desapropriasse a embaixada e a entregassem a Guaidó. Como eram convidados do atual governo da Venezuela,suas ações foram consideradas perfeitamente legais.

Embora a situação tenha começado discretamente, depois que o coletivo organizou alguns eventos, ficou claro que viria um confronto maior. Em 30 de abril de 2019, Guaidó declarou que os militares não mais apoiavam o governo da Venezuela, o que acabou não sendo verdade. Sua tentativa de golpe fracassou rapidamente. Em Washington DC, porém, os apoiadores da oposição aglomeravam-se na embaixada venezuelana. Quando ficou claro que não havia golpe, deram início a uma agressiva campanha para forçar a saída do Coletivo de Proteção da Embaixada.

Estive com frequência do lado de fora da embaixada durante esse período e testemunhei um pouco do que aconteceu. Os partidários da oposição tentaram expulsar as pessoas da embaixada com um barulho alto e contínuo. Também tentaram resolutamente bloquear a entrega de comida para os que estavam lá dentro. Um partidário da oposição chegou até mim e começou a bater na minha cara enquanto cantava “SEM COMIDA! SEM ÁGUA!”, apesar de eu não ter nada disso comigo.

Parece que os agressivos partidários da oposição questionaram jornalistas e observadores legais sobre quem os estava pagando para estarem lá. Em um vídeo, ativistas da oposição seguiram observadores legais daNational Lawyers Guild (Associação Nacional de Advogados) pelas ruas batendo em panelas, na tentativa de expulsá-los. Eu pessoalmente os vi zombando de uma jornalista progressista local depois que ela desmaiou, e ofenderem um manifestante por questões raciais. Outros incidentes desse tipo foram relatados ou capturados por outras pessoas em vídeo.

Apesar do comportamento agressivo dos partidários da oposição e da posição do Serviço Secreto de que eles não estavam fazendo nada para impedir a entrega de comida, tanto o Serviço Secreto como a polícia da cidade deixaram os ativistas da oposição agirem livremente. Por outro lado, os ativistas anti-guerra não receberam o mesmo tratamento.

Quando Gary Condon, Presidente dos Veterans for Peace (Veteranos pela Paz) estava tentando entregar comida e foi bloqueado pela oposição, ele jogou um pepino por uma janela aberta. Foi preso violentamente. A ativista Ariel Gold do Code Pink também tentou levar comida para dentro da embaixada, jogando um pedaço de pão na embaixada. Ela foi detida por uma ativista da oposição e presa pela polícia, que aacusoude lançar bombas. A polícia se envolveu em uma prisão retaliatória na pessoa do jornalista Max Blumenthal.

A cena mais bizarra que testemunhei foi a polícia de Washington lendo uma ordem de invasão contra os ativistas que estavam lá dentro. Berrando a ordem por um canhão de som LRAD, anunciando que não reconhecia a legitimidade do “antigo regime de Maduro” e, portanto, que os indivíduos estavam invadindo. Os ativistas que estavam lá dentro conseguiram dar um drible na tentativa de despejo. A polícia entrou na embaixada, arrombando a fechadura da frente. Após uma negociação com o advogado dos ativistas, eles tornaram a fechar a embaixada e foram embora. Dias depois, foram retirados e acusados de interferir nos trabalhos de proteção do Departamento de Estado (um julgamento terminou como inconclusivo devido a um impasse do júri). O “governo” de Guaidó está de posse do edifício, mas na realidade não pode desempenhar nenhuma função na embaixada.

Em paralelo a esses acontecimentos, os Estados Unidos chamaram uma atenção significativa ao enviar um comboio de ajuda humanitária para a Venezuela. Tanto a ONU como a Cruz Vermelha pediram aos Estados Unidos que não fizessem isso, que consideravam como uma politização da ajuda. E o responsável pelo comboio de ajuda, Elliott Abrams, foi um dos principai arquitetos da política de Reagan na América Central nos anos oitenta e uma figura-chave durante o escândalo Irã-Contras, quando usou voos de ajuda humanitária para contrabandear armas para os Contras.

Com os Estados Unidos exigindo que a Venezuela recebesse o comboio, muitos da Esquerda consideraram tratar-se de um esforço cínico de relações públicas dos patrocinadores da mudança de regime ou, pior ainda, uma tentativa de provocação. Em 23 de fevereiro de 2019, ativistas da oposição tentaram levar o comboio de ajuda através da fronteira entre a Colômbia e a Venezuela por uma longa ponte. No tumulto que se seguiu, o comboio foi incendiado. Desde o início, muitos meios de comunicação supuseram que, na realidade, o governo venezuelano era responsável pelo incêndio. Mas o New York Times divulgou posteriormente que evidências filmadas em vídeo mostravam que os ativistas da oposição que jogaram coquetéis Molotov foram os responsáveis pelo incêndio.

Recentemente, em uma ação perturbadoramente semelhante ao que antecedeu à invasão do Panamá, o governo Trump indiciou Maduro por tráfico de drogas (e ofereceu $ 15 milhões por informações que o levem à prisão). Trump também enviou navios de guerra para o Caribe, o que traçou paralelos com as ações dos Estados Unidos no prelúdio da invasão do Panamá.

É este o contexto em que Goudreau lançou seu ataque.

O que há por trás dessa escalada?

Por que Trump faz essas coisas? Uma resposta comum seria que ele está procurando distrair dos problemas domésticos. Embora seja verdade em parte, essa resposta ignora a realidade mais ampla da política dos Estados Unidos no exterior.

Apesar do pânico moral em alguns cantos sobre a suposta falta de belicosidade do governo Trump em relação à Rússia, Trump repetidamente convocou ex-intervenientes da Guerra Fria e outros abutres para administrar sua política externa. Elliott Abrams foi nomeado Representante Especial dos Estados Unidos para a Venezuela. (Além de seu tempo no governo Reagan, Abrams também serviu no governo de George W. Bush e foi acusado de ter encorajado e ter conhecimento prévio da tentativa de golpe de 2002 na Venezuela que removeu Chávez do poder por quarenta e sete horas). Embora o governo Trump seja um entra e sai de pessoal, alguns dos defensores mais obsessivos da mudança de regime na Venezuela, como John Bolton, já trabalharam antes em seu governo.

Além desses consultores agressivos, Trump faz questão de atacar o socialismo e, assim fazendo, não apenas persegue os adversários políticos, como também agride “inimigos” oficiais dos Estados Unidos, como a Venezuela. Certamente, a fixação de Trump no socialismo é um sinal de que ele vê os crescentes movimentos socialistas, como os encarnados nas campanhas presidenciais de Bernie Sanders ou no crescimento doDemocratic Socialist of America(DSA, Socialistas Democráticos da América), como uma ameaça. Ele também vincula seus oponentes políticos internos a supostos “inimigos” estrangeiros. A esquerda sempre enfrentou a repressão e o início da Guerra Fria permitiu que essa repressão se agravasse, possibilitando que o governo dos Estados Unidos tratasse os militantes radicais internos como defensores da ideologia de um estado inimigo com o qual os Estados Unidos estavam em guerra.

Os Estados Unidos sempre visaram muito os governos de orientação independente, em especial aqueles que exercem políticas socialistas. Na América Latina e no Caribe, essa história tem sido particularmente cruel.

Os mercenários daSilvercorp USAtêm algum antecedente histórico em expedições militares ilegais no estrangeiro, como William Walker que, por volta dos anos 1800, organizou expedições militares financiadas contra nações latino-americanas. Os Estados Unidos, claro, anexaram metade do México. Décadas antes da Guerra Fria, fuzileiros navais dos Estados Unidos desembarcaram e ocuparam a Nicarágua e o Haiti. Em 1954, a CIA derrubou o governo de esquerda da Guatemala eleito democraticamente, em um golpe que serviria de modelo para futuras ações secretas da CIA. De maneira vergonhosa, os Estados Unidos derrubaram o socialista chileno Salvador Allende, eleito democraticamente.

Depois da Revolução Sandinista na Nicarágua, os Estados Unidos deram dinheiro aos Contras, de direita, que rotineiramente se envolviam em ataques contra a infraestrutura civil, como centros de alfabetização de adultos e clínicas de saúde. O governo Reagan foi tão dedicado à campanha de terror dos Contras que desencadeou uma crise constitucional interna ao evitar os limites de um Congresso pós-Vietnã e pós-Watergate, e tentou colocar os Estados Unidos em uma ação secreta e de guerra executiva na Nicarágua, no que ficou conhecido como o escândalo Irã-Contras.

A Venezuela há muito está na mira dos Estados Unidos. Em 2002, Hugo Chávez foi afastado brevemente em um golpe apoiado pelos Estados Unidos. Sabemos, graças às revelações doWikiLeaks, que os Estados Unidos estão apoiando ativamente a oposição e procurando isolar a Venezuela há algum tempo. E foi Barack Obama que declarou a Venezuela como uma ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional dos Estados Unidos, colocando sanções assassinas contra o país.

Hugo Chávez e a Revolução Bolivariana na Venezuela romperam com o consenso neoliberal. Ao fazer isso, obtiveram resultados notáveis. Chávez presidiu quedas do desemprego, crescimento do PIB, reduções da pobreza e aumentos da alfabetização. Sob Chávez, a pobrezacaiu 50% e a extrema pobreza caiu 70%. A Venezuela caiu para o menor coeficiente de Gini, usado para medir a desigualdade de renda, na região. Pesquisas regionais durante os anos de Chávez mostraram repetidamente que os venezuelanos tinham alguns dos índices de satisfação com a democracia mais elevados em relação a qualquer país da região.

Esses ganhos não se limitaram apenas à Venezuela. Chávez desafiou George W. Bush durante uma cúpula de livre comércio em 2005 e falou com dezenas de milhares de manifestantes do lado de fora. Acompanhava-o no palco o ativista boliviano Evo Morales, que logo se tornaria presidente de sua própria nação.

A Revolução Bolivariana foi central para a Pink Tide (Onda Progressista, Maré Rosa). Por toda a América Latina, governos esquerdistas, muitos deles adotando o que chamavam de “socialismo do século XXI”, chegaram ao poder por meio das urnas. Isso fomentou a cooperação regional e reduziu drasticamente o poder dos Estados Unidos de intervir na região. O papel da Venezuela na promoção de uma alternativa ao neoliberalismo e à dominação dos Estados Unidos fez desses governos poderosos inimigos.

Mas a situação mudou inteiramente. Golpes parlamentares no Brasil e no Paraguai removeram os governos de esquerda. Golpes militares em Honduras e na Bolívia removeram seus governos. Em outros países da onda progressista, os governos de esquerda não estão mais no poder.

E enquanto os notáveis avanços da Venezuela ajudaram a acabar com a ideia de que “não há alternativa” às políticas fracassadas do Consenso de Washington, a situação na Venezuela é bem diferente hoje, pois o país está em crise econômica. Os apoiadores e simpatizantes da Revolução Bolivariana debatem as origens precisas da crise e até que ponto as políticas do governo contribuíram para ela. Mas duas coisas estão claras.

Primeiro, os Estados Unidos travaram uma guerra econômica implacável contra a Venezuela por meio de sanções, destinadas a destruir a economia. Nenhuma análise da situação atual pode estar completa sem indicar esse ponto. Como disse o economista Jeffery Sachs no ano passado, “a crise econômica venezuelana é rotineiramente culpada por tudo na Venezuela. Mas é muito mais do que isso. As sanções dos Estados Unidos visam deliberadamente destruir a economia da Venezuela e, assim, levar à mudanças de regime.” Segundo, cabe à esquerda venezuelana e ao povo venezuelano determinar seu futuro.

Se a Silvercorp USA obteve sinal verde do governo dos Estados Unidos para atuar como corsário ou se era apenas freelancer, essa desventura só pode ser entendida no contexto da crescente agressão de Trump à Venezuela. Embora Trump possa estar escalonando essas tensões, está agindo dentro da longa tradição do imperialismo norte-americano na região. Em última análise, cabe aos venezuelanos, e não aos Estados Unidos, determinar o rumo do país.

Chip Gibbons é jornalista, com trabalhos publicados noIn These Times e no The Nation. É também consultor político do “Defending Rights and Dissent”, sendo autor do relatório "Still Spying on Dissent: The Enduring Problem of FBI First Amendment Abuse." (Ainda espionando a dissidência: o persistente problema das violações do FBI à primeira emenda). As opiniões expressas neste artigo são responsabilidade do autor.

Photo: World Economic Forum, Flickr.

Available in
EnglishGermanFrenchPortuguese (Brazil)Portuguese (Portugal)Spanish
Author
Chip Gibbons
Translator
Maria Elisabeth Cabral de Mello
Date
29.06.2020
Source
JacobinOriginal article🔗
Privacy PolicyManage CookiesContribution SettingsJobs
Site and identity: Common Knowledge & Robbie Blundell