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Países prestes a enfrentar uma "onda" de processos judiciais devido a medidas de emergência COVID-19

Investigação mostra que as principais firmas jurídicas estão a preparar-se para "ganhar" com a pandemia, ajudando empresas a processar Estados por medidas que prejudicam os seus lucros.
De acordo com um novo relatório, países poderão em breve enfrentar uma "onda" de processos judiciais multi-milionários de empresas multinacionais que pedem indemnizações devido às consequências económicas de medidas introduzidas para proteger a população da COVID-19.
De acordo com um novo relatório, países poderão em breve enfrentar uma "onda" de processos judiciais multi-milionários de empresas multinacionais que pedem indemnizações devido às consequências económicas de medidas introduzidas para proteger a população da COVID-19.

Os investigadores identificaram mais de vinte firmas jurídicas que oferecem serviços para construir este tipo de casos, que procurariam obter uma indemnização dos Estados por medidas que têem tido um impacto negativo nos lucros das empresas - incluindo a perda de lucros futuros.

Entre as medidas que poderiam enfrentar desafios legais incluem-se a aquisição pelo Estado de hospitais privados; medidas introduzidas para garantir que os medicamentos, testes e vacinas sejam acessíveis; e o alívio do aluguer, da dívida e do pagamento de serviços de utilidade pública.

Legisladores por toda a Europa condenaram a actividade descrita no relatório, tendo um deles descrito essa actividade como um "ataque à democracia".

A investigação, co-publicada peloTransnational Institute(TNI) e peloCorporate Europe Observatory(CEO), baseia-se em declarações de briefings jurídicos, alertas de clientes e webinars - e apresenta uma lista daquilo a que chama "dez cenários de litígio particularmente odiosos, desenvolvidos por algumas das firmas jurídicas mais ocupadas".

“Um sistema de justiça paralelo para os ricos”

Ao abrigo de mecanismos controversos do "Sistema de Arbitragem entre Estado e Investidor " (ISDS), investidores estrangeiros, empresas e accionistas podem processar directamente os Estados em tribunais internacionais obscuros relativamente a uma vasta gama de acções governamentais.

Nos últimos 25 anos, que se saiba, foram intentadas mais de 1000 acções judiciais entre investidores e Estados, no que os investigadores descrevem como "um sistema de justiça paralelo para os ricos". Muitos destes litígios seguiram-se a acções tomadas por países em tempos de crise, como a crise financeira argentina no início da década de 2000 e a Primavera árabe no início da década de 2010.

Comentando as conclusões do relatório, a deputada Caroline Lucas afirmou: "Muitos de nós advertimos há anos para os perigos dos mecanismos do sistema de arbitragem entre estado e investidores, e aqui estão mais provas condenatórias".

"O dinheiro público deve ir para a protecção da saúde pública e da subsistência das pessoas, não para encher os bolsos de empresas multinacionais gananciosas e dos seus advogados".

"Medidas aparentemente tomadas para fazer face a um problema grave, mas que pelo contrário afectam desproporcionalmente determinadas empresas... podem ser contraditórias com o direito internacional". -Shearman & Sterling LLP

Entre as firmas jurídicas mencionadas no relatório está aShearman & Sterling, sediada nos EUA. Em 2014, obteve a maior adjudicação na história da arbitragem entre estado e investidores, após ter processado o Governo russo por 50 mil milhões de dólares em nome dos accionistas da empresa de petróleo e gásYukos.

Num briefing recente sobre a COVID-19, a empresa afirma que "está pronta a aconselhar tanto os Estados como os investidores em relação às medidas governamentais que foram ou serão adoptadas no contexto da pandemia da COVID-19".

As medidas destacadas incluem o perdão da renda e a suspensão dos pagamentos da factura energética. "Ao mesmo tempo que ajudam os devedores, estas medidas teriam um impacto evidente nos credores, causando perda de rendimentos", adverte aShearman & Sterling.

A situação continua: "medidas aparentemente tomadas para fazer face a um problema grave, mas que pelo contrário afectam desproporcionalmente determinadas empresas... podem ser contraditórias com o direito internacional".

Medidas de emergência tomadas para proteger a saúde pública também podem estar na linha de fogo. Em Espanha e na Irlanda, hospitais privados foram assumidos pelos sistemas de saúde públicos, enquanto o Governo dos EUA ordenou às empresas a produção de ventiladores e outros equipamentos médicos.

Os advogados daQuinn Emanuel, a maior firma jurídica do mundo dedicada ao litígio e arbitragem empresarial, cujos clientes incluem aExxonMobile aKoch Industries, afirmam que os investidores no sector da saúde podem "ter reclamações de expropriação indirecta se a entrega do controlo foi involuntária". Afirmam ainda que as empresas que foram obrigadas a produzir equipamentos médicos poderiam processar por "expropriação indirecta ilegal" se considerarem que não é fornecida uma compensação adequada.

Outros cenários potencialmente "odiáveis" citados no relatório incluem processos instaurados contra os Estados por acções destinadas a fornecer água limpa para a lavagem das mãos e por não terem evitado a agitação social.

“Sacrificar os cidadãos pelas empresas"

O eurodeputado Martin Schirdewan, co-presidente do Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde, disse aoopenDemocracy:

"A utilização de processos judiciais investidor-estado é um ataque à democracia em qualquer circunstância", afirmou o eurodeputado. “Mas o facto de empresas estarem a considerar processar os governos por medidas tomadas para proteger a saúde humana, no meio de uma pandemia, é verdadeiramente chocante".

"Independentemente de como o apresentam, este mecanismo, dá às empresas o poder de processar governos que implementam políticas que podem ter impacto nos seus lucros futuros esperados, e de lhes serem concedidas indenizações".

Manon Aubry, eurodeputado doLa France Insoumise(Grupo do Partido Popular Europeu e dos Democratas Europeus), afirmou "Os tratados de protecção dos investimentos dão às empresas multinacionais a certeza de que, aconteça o que acontecer, os Estados garantirão os seus lucros acima de tudo, incluindo o interesse geral".

"Precisamos urgentemente de sair destes tratados que nos levariam a sacrificar os cidadãos para proteger modelos empresariais nefastos, desde as grandes indústrias farmacêuticas às indústrias de combustíveis fósseis, mesmo em tempos de crise".

Um porta-voz daShearman & Sterlingafirmou que o briefing referido na investigação deixa claro que os Estados têm "o dever (e o direito) de proteger a saúde pública e a sua economia", bem como "uma ampla margem de manobra para lidar com crises" ao abrigo do direito internacional. O porta-voz afirmou ainda que aShearman & Sterlingactua em nome dos Estados, bem como dos investidores em litígios relativos a tratados de investimento, e conquistou uma série de vitórias históricas em nome dos Estados. A empresa está igualmente empenhada num extenso trabalhopro bonorelacionado com questões da COVID-19.

A Quinn Emanuel não respondeu ao nosso pedido para comentar.

Laura Basu é editora europeia daourEconomy, e investigadora do Instituto de Inquérito Cultural, da Universidade de Utrecht, e da Goldsmiths, Universidade de Londres. É autora de “Media Amnesia: Rewriting the Economic Crisis” e co-editora de “The Media and Austerity”.

Laurie Macfarlane é editora de economia noopenDemocracy, e investigadora asociada no UCLInstitute for Innovation and Public Purpose. É co-autora do aclamado livro "Rethinking the Economics of Land and Housing".

Aaron White é o editor norte-americano daourEconomye co-fundador do The Junction.

Available in
EnglishPortuguese (Brazil)GermanPortuguese (Portugal)FrenchSpanish
Authors
Laura Basu, Laurie Macfarlane and Aaron White
Translators
José João Batista, Sofia Alcaim and Henrique Augusto Alexandre
Date
01.07.2020
Source
Original article🔗
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