Nota Editorial: Tem havido uma série de violações sistemáticas dos direitos humanos no Chile, especialmente durante o período de “revolta social”. Organizações nacionais e internacionais de direitos humanos registaram lesões oculares causadas pelo impacto de balas de borracha, tortura, mortes, agressão sexual e uma série de outras agressões e violações graves. Estas foram compiladas num dossier de provas para levar Sebastián Piñera ao Tribunal Penal Internacional. Para encontrar mais, Bruno Sommer entrevistou o procurador Mauricio Daza no canal de vídeo Cable a Tierra. Este é um excerto da entrevista pelo parceiro Wire El Ciudadano. A entrevista completa está disponível em espanhol aqui.
MD: Sim, as comunicações oficiais deixam claro que o governo está preocupado com o processo criminal movido contra Sebastián Piñera por crimes contra a humanidade. Isso é evidente na forma como a administração Piñera enfrenta o assunto dos ataques à população civil pelos Carabineros de Chile (a força policial nacional chilena) e pelas forças militares durante o Estado de Emergência decretado depois da revolta social de 2019.
Há motivos para isso já que, de uma forma geral, Piñera tem estado envolvido em muitos processos legais, a maior parte deles relacionados com crimes económicos. Devemos lembrar-nos que ele foi processado por fraude no famoso caso do Banco de Talca e houve mais casos ligados a empresas em que ele desempenhou funções de gestão ou administração. As acusações estão relacionadas com a violação das regras de livre concorrência das leis do mercado de valores mobiliários, incluindo, entre outras, o uso de informação privilegiada.
Contudo, ele agora enfrenta um tipo muito diferente de acusação que não será capaz de evitar da forma como aqueles com poder económico num país como o Chile normalmente conseguem, com uma chamada telefónica, através da sua própria rede de influências ou da rede dos seus apoiantes ou através de grupos políticos e de negócios em que ele tem alguma influência.
MD: Isso mesmo, é por crimes contra a humanidade.
MD: Na verdade, a ideia surgiu da observação de uma realidade que ficou evidente durante vários meses a partir de 18 de outubro de 2018. As forças policiais levaram a cabo repressão que não só envolveu crimes isolados contra a população civil mas, na nossa opinião, constitui também um crime contra a humanidade dado que testemunhamos um generalizado e sistemático ataque contra a população civil. Isto ocorre num contexto em que as autoridades políticas sabiam o que estava a acontecer e nada fizeram para parar esta repressão. Nós percebemos que estávamos a enfrentar uma situação muito mais grave do que os ataques individuais, e que havia um verdadeiro padrão de conduta por trás da ação policial. Obviamente, o polícia que executa o ataque específico e dispara os tiros é criminalmente responsável, mas também o são os comandantes dos Carabineros e, acima de tudo, as autoridades civis.
Com base nas regras estabelecidas no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, este introduziu um quadro para sanções criminais por ataques que não só afetam os direitos de vítimas individuais mas também ofendem a consciência da humanidade. É necessário instaurar um processo criminal para que estas sanções sejam aplicadas.
MD: O Estatuto de Roma estabeleceu regras com base no exame dos horrores resultantes de ações repressivas de estados e outros grupos que exercem o poder num determinado local. Essas regras têm como objetivo evitar alegações de imunidade e contrariar a defesa habitual que o acusado costuma utilizar em casos como este.
O que dizem as autoridades políticas habitualmente? Dizem, já sabe o quê, a verdade é que não há uma ordem escrita direta do presidente, ou de algum dos seus ministros, ou do comando militar ou dos Carabineros, ordenando à polícia que leve a cabo ações que violem os direitos humanos dos manifestantes. Consequentemente, nós não somos responsáveis.
Este é o argumento base que ditadores, ou grupos que violam direitos humanos num determinado território, normalmente utilizam. É por isso que foi estabelecido confrontar-se esta responsabilidade direta.
O Estatuto de Roma deixa claro que as autoridades civis, comandos militares, ou aqueles que efetivamente agem como tal, são criminalmente responsáveis se eles sabiam que os ataques estavam a acontecer e não tomarem medidas eficazes para evitá-los.
Portanto, considere a situação de um presidente ou um ministro ou um chefe de polícia, que sabe que estes ataques estão a acontecer, mas que não faz nada de eficaz para detê-los. Não é suficiente fazer uma declaração pública, um apelo geral, não, é preciso ação eficaz, não uma saudação à bandeira. Se não o fazem, estão na mesma posição que a pessoa no terreno que dispara, que ataca, que causa o dano. Esta é uma regra especial no Estatuto de Roma, e está também na Lei 20.357 que define estes crimes na legislação interna chilena.
Então, como eu digo, não é necessário que Piñera tenha emitido uma ordem, ou um decreto, ou enviado um email. É suficiente que ele soubesse e não tenha feito nada de eficaz, que não tenha exercido todo o seu poder para evitar que isto acontecesse, e na nossa opinião, foi precisamente isto o que aconteceu.
Foto: jbdodane / Flickr