Os protestos continuados dos agricultores nas imediações de Delhi, capital nacional da Índia, exigindo a revogação das três Leis Agrárias, têm sido aclamados como uma corajosa resistência. No entanto, o que não tem precedentes é, principalmente, a grande participação das mulheres.
Os decretos que foram aprovados pelo governo majoritário liderado pelo BJP, sem qualquer oposição parlamentar, fizeram mulheres comuns deixarem o confinamento das suas quatro paredes e irem para as ruas. Mais importante, as mensagens delas estão ficando cada vez mais afiadas. Isto é evidente em suas reações à intervenção da Suprema Corte em 11 de janeiro (por que as mulheres são “mantidas” nestes protestos e que elas deveriam ser “persuadidas” a voltar), na forma de numerosas refutações nos locais dos protestos e em centenas de entrevistas para a mídia nacional e internacional.
Não é fácil dizer quem são estas mulheres, o que as leva a protestar, e exatamente quando a faísca da resistência se acendeu e atingiu Singhu ou Tikri. Mesmo assim, elas protestam com toda a sua resiliência e mantêm os protestos vibrantes.
A inquietação agrária vem fermentando no Punjab há quase três décadas, mas as mulheres têm aderido lentamente. A associação dos agricultores BKU-Ekta (Ugrahan) tem organizado mulheres e jovens. Tradicionalmente havia poucas mulheres organizadoras, mas a discórdia e as dificuldades domésticas se combinaram no Punjab rural quando as relações sociais foram dilaceradas pela crise agrária.
Alguns anos atrás, na região Malwa do Punjab, interagi com mulheres que sobreviveram ao suicídio de seus maridos, filhos e irmãos. Falei também com o secretário-geral da BKU-Ekta (Ugrahan), Sukhdev Singh Kokri, que é natural de Moga. Ele me contou que no processo de organizar os agricultores tornou-se imperativo para a associação incluir temas como a desigualdade de gênero, o abuso de drogas, e a violência contra mulheres. E assim foi feito.
Harinder Kaur Bindu, presidente da Ala Feminina da BKU-Ekta (Ugrahan)
Através de programas culturais, a associação se esforça por compreender e aumentar a percepção da miríade de processos sociais que afetam a realidade da vida camponesa. Estes anos de trabalho árduo produziram efeito, já que o número de mulheres organizadoras cresceu exponencialmente.
Harinder Bindu, presidente da ala feminina da BKU-Ekta (Ugrahan), disse que elas têm pelo menos 150 reuniões de planejamento de mulheres organizadoras, no nível das vilas, quarteirões e distritos. “Há uma grande mudança. O confinamento das mulheres em suas famílias e a responsabilidade pelo trabalho doméstico não interferem na sua presença nestes protestos”, disse ela ao ser questionada sobre mudanças visíveis nos domicílios rurais.
“Maridos e outros membros da família estão dividindo tarefas domésticas como cozinhar, etc. As relações dentro da família estão melhorando. O desconforto que os homens da família tinham com as mulheres saindo ou se misturando com estranhos agora diminuiu ", ela continuou. “Nossa luta é por estabelecer a igualdade das mulheres dentro da família, bem como por seus direitos à terra e ao emprego. Esta luta também é para combater a superioridade de casta”, acrescentou.
Houve um longo e tedioso debate entre acadêmicos e organizações de agricultores sobre se as mulheres deveriam ser vistas como agricultoras ou esposas de agricultores. Aparentemente o debate terminou, e o veredicto veio na forma da identidade, há muito devida, de “mulheres agricultoras”. Hoje essas mulheres, aos milhares, chegaram à capital da nação nos mesmos tratores que costumam guiar em suas vilas.
Portanto, há grandes mudanças de paradigma ocorrendo em todos os locais de protesto nos arredores de Delhi. Em 16 de dezembro de 2020 centenas de mulheres exibiram fotos dos seus parentes masculinos que se suicidaram, mesmo não sendo todas viúvas ou vítimas.
A isto sucedeu o Mahila Kisan Divas (Dia das Mulheres Agricultoras), organizado em 18 de janeiro, quando elas marcharam com auto-respeito, exigindo a revogação das três Leis Agrárias. Os protestos cresceram no Dia da República.
Finalmente, em 8 de março, milhares de mulheres do Punjab, Haryana e Uttar Pradesh marcharam e dançaram, celebrando o Dia Internacional da Mulher. A união das mulheres punjabis com as mulheres de Haryana e Uttar Pradesh foi eletrizante. A força coletiva delas era comprovadamente clara e vociferante.
Isto não ocorreu apenas na região de Malwa; mulheres das regiões de Majha e Doaba também participaram nestes protestos. Um grupo de mulheres da fronteira do Singhu explicou que foram atraídas para os protestos impulsivamente.
Ravinder Kaur contou que fez a mala escondida e então anunciou à família que estava indo para Delhi. “Nossas vidas estão atoladas em trabalhos enfadonhos das 4 da manhã às 11 da noite. Não há nada de natural nisso. Ninguém reconhece o nosso trabalho. Aqui estamos juntando forças umas com as outras enquanto exigimos a revogação das leis agrárias”, disse ela.
Amandip Kaur compartilhou que tomou um riquixá para o Templo Dourado e lá se juntou a um grupo de mulheres que iam para a estação ferroviária de Amritsar, a caminho de Delhi. Não trouxe nada consigo. Disse: “eu sempre quis vir a Delhi, e isto veio como um chamado do alto. Eu estava destinada a me juntar ao protesto”.
Ela informou sua mãe de sua chegada a Delhi através de Joginder Kaur. Joginder mobiliza mulheres em Amritsar desde dezembro. Ela contou que as mulheres participaram dos protestos vindo por si mesmas ou por boca a boca. Assim que chegam à cidade se tornam parte do coletivo maior e vivem juntas em barracas e carroças.
Participar de grandes reuniões coletivamente deu a estas mulheres a plataforma para expor os efeitos das três Leis Agrárias sobre elas. Kashmir Kaur, por exemplo, que tem dois acres (8.093 m²) de terra alugados, disse que a produção é suficiente para alimentar a ela, sua filha e a sogra. Seu marido e seu filho morreram. Disse que ficarão sem nada se perderem esta terra. Ela queria saber que tipo de futuro o primeiro-ministro Modi prevê para a sua filha no seu slogan Beti Bachao, Beti Padhao (Salve a menina, eduque a menina).
A participação destas mulheres é tanto organizada quanto espontânea. E a participação política delas é um dos maiores catalisadores na longa luta contra a opressão do patriarcado e da casta, que é de outro modo árdua, interminável, e diária.
Harinder Bindu disse que as mulheres dalits ainda não se juntaram aos protestos em maior número porque enfrentam obstáculos tanto da administração local quanto dos grandes zamindares (proprietários de terra, especialmente os que alugam terras a arrendatários), mesmo sendo elas relativamente mais livres que as mulheres Jat Sikh, com suas estruturas familiares e comunitárias. “Em 2016 as dalits enfrentaram repressão policial quando protestaram contra o rapto e estupro de uma mulher dalit em Muktsar, a região eleitoral do ministro chefe”, ela recordou.
O senso de pertencer ao Punjab não se baseia na entidade geográfica nem na localização. A afinidade com a terra provém de um sistema de crenças mais profundo que mantém e alimenta o suporte comunitário e o ethos coletivo, independentemente das desigualdades graduais dentro da ordem sócio-econômica, seja com dalits, jovens, mulheres ou sem-terra.
Voluntárias mais velhas em Tikri contaram que se revezavam para fazer seva (serviço) por prasad (oferta de comida) aos manifestantes através das cozinhas comunitárias. Este ato fortalece o seu sentido de resistência. “Somos as Laxmibais (rainha indiana que mostrou imensa resistência lutando contra os britânicos no século XIX) da era moderna. Podemos sentar aqui por mais 10 anos, se necessário”, disse Karamjit Kaur em Singhu. “Langars (cozinhas comunitárias de um gurdwara, que servem refeições de graça a todos, independente de religião, casta, gênero, status econômico, ou etnia) existem há mais de 500 anos. Esses langars nunca vão terminar. O guru Nanak quer que nós sejamos inclusivas, esta é nossa força”, acrescentou ela.
As mulheres sempre tiveram que lutar contra a opressão e a exploração interna e externa - seja na família, na organização ou na sociedade misógina como um todo. Como parte deste protesto, as jovens estão se pronunciando contra o assédio sexual no Swaraj Abhiyan, Trolley Times e SFS, embora sejam perseguidas pela direita nas redes sociais. Sua coragem e convicção emergem do espírito de resistência que tomou conta de todo o Punjab.
Organizações de agricultores mantiveram cerco aos Portos Secos do grupo Adani em Qila Raipur, no distrito de Ludhiana, de 27 a 31 de março. Sukhdev Singh Kokri, líder da BKU-Ekta (Ugrahan), explicou como o impulso é construído: “Temos trabalhado sem parar desde que as portarias foram anunciadas em junho. Desde então os protestos no Punjab crescem a cada dia. A maior força dos protestos foi revigorar a consciência coletiva. Estamos nisso há muito tempo, por mais lento e penoso que seja o processo. Hoje, no Punjab, há protestos em cada quarteirão e distrito, nas universidades e praças de pedágio. Como você pode ver, o número de mulheres e meninas tem crescido continuamente”.
Falando ao canal da Unidade dos Trabalhadores, a professora Surinder Kaur, de Jamoori Kisan Morcha, que é parte da coalizão Samyukta Kisan Morcha, disse que as mulheres formam a espinha dorsal desses protestos. “À medida que a crise agrária empobrece a economia doméstica rural, as lutas das mulheres aumentam. Essas três Leis Agrárias trouxeram a percepção de que as lareiras que elas lutam diariamente para manter acesas podem esfriar. Elas entenderam isso rapidamente e agiram em uníssono ”, disse ela.
“Essas três Leis Agrárias porão um fim aos dalits, agricultores e pobres sem terra que vendem e consomem seu trabalho. É ainda um grande desafio aumentar a participação dos dalits nos protestos. É no local do protesto que as ideias e ações precisam germinar para a visão futura de toda a sociedade. Para levar adiante a resistência, estamos abordando questões complexas como a inclusão de todas as partes exploradas. Mas nossa força reside no nosso legado e na nossa história, onde a resistência é o único caminho”, acentuou.
Os protestos de agricultores atuais demonstram amplamente que a palavra “agricultor” significa uma comunidade inteira: mulheres, homens, idosos e jovens. E é uma luta coletiva de produtores de alimentos, proprietários de terra e sem-terra. E, portanto, não há nenhum produtor individual que o Estado e o capital possam comprar via trapaça ou conciliação. E como a história mostrou, uma vez que as mulheres apostem na luta, a resistência se torna formidável. Elas saíram temporariamente de seus lares e fogões, mas o caráter deste processo seguramente mudou para sempre.
Há um surto de consciência e percepção que está se espalhando como incêndio das vilas para os distritos e dos estados para as imediações de Delhi.
De fato, Hindustan Bol Raha hai (a Índia está falando alto)!
Ranjana Padi, autora de Khudkhusi Ke Saaye Mein Zindagi Ki Baatein: Punjab ki Aurton par Krishi Sankat ka Prabhav (MP Mahila Manch, 2014), vive em Bhubaneswar. É também coautora de Resistindo à Desapropriação: a história de Odisha (Aakar Books, Palgrave Macmillan, 2020), cuja versão em hindi Gaon Chhodob Naahin: Odisha ke Das Jan Sangharsh ki Gaathaayen é esperada em breve.