Ecology

De Stroessner à Syngenta: conflitos da soja no Paraguai

A ‘sojização’ da economia paraguaia teve um impacto devastador na ecologia, nas populações rurais e no processo democrático do país - mas foi lucrativa para empresas estrangeiras e a oligarquia doméstica.
O golpe de 2012 contra o reformista de esquerda Fernando Lugo abriu caminho para o agronegócio estrangeiro colonizar ainda mais as terras paraguaias.

Nota do Editor: Esta peça foi resumida da original, a qual pode ser consultada na íntegra aqui.

Em 2003 a colossal agroquímica Syngenta publicou uma propaganda polêmica nos jornais argentinos. Mostrava um mapa da América do Sul com grande parte do Cone Sul - Bolívia, Paraguai, Argentina e Brasil - realçada em verde e rotulada como 'República Unida da Soja'. O anúncio foi criticado como expressão da avareza neocolonial dirigida a uma das exportações mais lucrativas da região. O eco das "repúblicas das bananas" do século XX, as economias de exportação subdesenvolvidas, governadas por fantoches brutais das corporações dos EUA, era óbvio.

As implicações do anúncio eram claras : para o agronegócio multinacional, os povos da América Latina não importam, nem as práticas trabalhistas justas ou a inviolabilidade de governos democraticamente eleitos. Essas empresas só veem lucro, e estão mais do que dispostas a reorganizar a região à vontade para enriquecer. Empresas do agronegócio como Syngenta, Monsanto e Bayer se insinuaram nos governos de toda a região, que facilitaram a desapropriação de agricultores rurais - expulsando-os das suas casas, desmatando suas terras, matando-os quando se rebelavam demais - para que as terras pudessem ser compradas por seus associados.

Segundo Joel E. Correia, 'a soja é um nó central nas redes de relações sociais, político-econômicas, científicas e ecológicas, literalmente enraizadas, que remodelaram e reterritorializaram muitos países da América do Sul'. Alguns estudiosos se referem a este violento processo neocolonial como sojización, ou 'sojização' do Cone Sul.

A produção de soja é fundamental para o funcionamento político e econômico do Estado paraguaio. Na verdade, ela teve  recentemente um papel decisivo na política nacional. Como observado acima, parte da sojização significa a expulsão dos agricultores rurais, para que suas terras possam ser compradas por empresas multinacionais do agronegócio. Em 2012, um despejo desse tipo levou a um massacre, um escândalo nacional e um golpe legal contra o presidente de esquerda Fernando Lugo.

Em 15 de junho de 2012, 300 policiais atacaram a cidade de Curuguaty para expulsar 70 agricultores sem terra das suas propriedades. Essas terras haviam pertencido ao Estado antes que o ditador militar Alfredo Stroessner, que governou por um período de 35 anos, conhecido como stronato (1954-1989), transferisse a propriedade a um amigo. O confronto, cujos detalhes permanecem confusos, resultou na morte de 11 camponeses e seis policiais. Forças de direita no Congresso usaram os assassinatos como pretexto para o impeachment do presidente Lugo que, um ex-bispo, seguidor da teologia da libertação e primeiro chefe de Estado progressista na história do país, era visto como perigosamente simpático à situação dos agricultores.

A queda de Lugo, um espinho no flanco do agronegócio, foi imediatamente seguida por uma competição para apaziguar essas forças poderosas. O próximo presidente, Federico Franco, do centrista Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), logo implementou reformas neoliberais que permitiram às multinacionais produzir 19 safras geneticamente modificadas no Paraguai, enquanto apenas uma (soja Monsanto) havia sido aprovada antes do massacre de Curuguaty.

O impeachment de Lugo foi o segundo contra-ataque bem sucedido aos governos antineoliberais da "Maré Rosa", que chegaram ao poder em toda a América Latina na década de 2000. O primeiro foi o golpe militar de 2009 que depôs o presidente hondurenho Manuel Zelaya, mas, significativamente, o modelo de 'golpe legal' do Paraguai seria reproduzido no Brasil para destituir a presidenta Dilma Rousseff em 2016 e abrir caminho para a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência dois anos depois. Da perspectiva regional, não seria exagero dizer que o colapso temporário dos governos esquerdistas em toda a América Latina foi, em parte, vaticinado pela economia política da soja paraguaia. 

A produção de soja nem sempre foi central na vida política e econômica do Paraguai. Contudo,  a sojización tem gradualmente reforçado seu controle sobre o país desde a época de Stroessner. Os estudiosos geralmente concordam que houve duas ondas principais de sojização no Paraguai. A primeira foi impulsionada pelos Estatutos Agrários pré-neoliberais do stronato, a segunda pela introdução no país de variantes geneticamente modificadas de soja. Correia, porém, introduz uma terceira etapa. Ele postula que 'a rejeição violenta da política pós-neoliberal abraçada pelo ex-presidente Fernando Lugo marcou o início da terceira onda de sojización, definida pela violência estatal e novas neoliberalizações da natureza', ou seja, novos métodos deprivatizar, explorar e lucrar com os processos de crescimento e cultivo da soja no Paraguai.

O populismo agrário de Lugo e sua posição como um forasteiro político ressoaram na população camponesa ameaçada. No entanto, o inexorável estado do stronato impediu cada uma das suas tentativas de reforma. A luta para impor um imposto de 5% sobre as exportações de soja foi esmagada, e quando ele assinou uma ordem executiva para limitar o uso de pesticidas, poderosas corporações agrícolas organizaram protestos até ele recuar.

A rápida politização do massacre de Curuguaty pelo establishment de direita, além de numerosas discrepâncias na investigação oficial e o assassinato de uma testemunha camponesa importante pouco antes do seu depoimento levaram muitos progressistas a acreditar que o incidente poderia ter sido fabricado a fim de remover o provável reformista da presidência. Quer isso seja verdade ou não, não há como argumentar que o judiciário tenha culpado os camponeses pelo incidente e os tenha perseguido às custas da abertura de um inquérito sobre as ações da polícia. Também não há como negar que o golpe foi parte integrante do retorno do Partido Colorado ao poder sob o presidente Horacio Cartes, que deu continuidade ao programa de acelerada neoliberalização agrícola do antecessor Franco.

A violência em Curuguaty e o golpe quase instantâneo contra Lugo colocaram o Paraguai na ‘terceira onda’ da sojización. Este período é definido pelo aumento da violência estatal contra os agricultores sem terra, combinado a uma subjugação ainda mais severa da agricultura tradicional às eficiências prejudiciais dos OGMs.

Desde a aprovação do Decreto 9699/2012 de Franco, a quantidade de soja geneticamente modificada cultivada no Paraguai aumentou para 95 por cento da produção total do produto. Desde o retorno do Partido Colorado, o ex-presidente Cartes e o atual presidente, Mario Abdo Benítez, rejeitaram os apelos para aumentar os impostos sobre as exportações de soja e, embora Lugo continue sendo uma figura política nacional, o debate parece morto e enterrado. A base econômica do stronato está tão firme quanto sempre. Na verdade, o próprio presidente Benitez é grande fã das realizações de Stroessner.

As recentes mobilizações contra o regime do Colorado indicam que o público paraguaio está muito insatisfeito com o status quo. Isso pode levar à eleição de outra figura como Lugo no futuro, ou talvez do próprio Lugo, mas uma coisa é certa: a menos que surja um movimento antineoliberal nacional, como aconteceu no Chile, a sojização da economia paraguaia, que tem sido tão devastadora para a ecologia e as populações rurais do país, nunca será reformada, e muito menos desmontada.

Owen Schalk é um escritor independente cujas áreas de interesse incluem o pós-colonialismo e o impacto humano da economia neoliberal global.

Foto: WATERLAT GOBACIT / Flickr

Available in
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Author
Owen Schalk
Translators
Ligia Prado and Cristina Cavalcanti
Date
27.08.2021
Source
AlboradaOriginal article🔗
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