Social Justice

A comunidade transgênero paquistanesa se levanta

Na esteira de mudanças legais que reconhecem a autodeterminação da identidade de gênero, os paquistaneses transgêneros estão começando a viver com mais liberdade.
A dra. Sarah Gill tinha apenas 14 anos quando fugiu de casa, em Karachi. Durante a maior parte da infância, ela havia sofrido a humilhação de se perceber como uma menina, mas lhe diziam que era um menino. Ela costumava brigar com a mãe por fazê-la se vestir como menino e se recusava a estudar, a menos que pudesse deixar crescer os cabelos. "Pela minha aparência, era óbvio que eu não era um rapaz", conta. "As pessoas costumavam me menosprezar devido à minha aparência. Elas vinham à minha casa e contavam aos meus pais todo tipo de coisas a meu respeito".

Um dia - Sarah se lembra de que estava na nona série - os pais dela receberam um parente para jantar. Ele a fitou com severidade e declarou que a sua feminilidade acabaria desonrando a família. "Ele disse que, sendo eu como era, ninguém faria propostas de casamento a nenhuma das moças da nossa família. Lembro-me de que meu pai ficou em silêncio, e ninguém  terminou de comer naquela noite".

Mais tarde, o pai de Sarah e outros parentes a trancaram num quarto e a espancaram tanto que ela implorou que a livrassem daquele sofrimento matando-a. "Olhando para trás, não culpo ninguém pelo que me aconteceu", diz ela. "Meu pai não sabia o que fazer. Na nossa sociedade ninguém sabia o que fazer com uma criança que não era nem menino nem menina. A língua urdu é muito rica, mas só tem palavras para 'filho' e 'filha'. Nem a língua consegue dizer aos meus pais o que eu sou".

Sarah não recorda quantos dias se passaram, apenas que temia estar a ponto de ser morta. Por fim, fugiu de casa oculta pelo manto da noite. Quando andava pelas ruas, um carro parou diante dela e desceu a janela. "Eu era uma criança de 14 anos, sem ter para onde ir", conta. "Não tive escolha a não ser entrar naquele carro".

Sarah é invulgarmente reticente sobre o que aconteceu em seguida. "Não vou dizer que não me deram comida ou abrigo - porque me deram - mas em que condições e a troco de quê?". Algumas noites depois, ela foi tirada das ruas do centro de Karachi. Sem teto e desamparada, ela havia vagado sem rumo durante horas, até ser abordada por um grupo de mulheres transgênero que mendigavam num semáforo um pouco adiante. Elas a acolheram e providenciaram para que fosse recebida por um guru - uma matriarca comunitária - que aceitou criá-la e dar-lhe abrigo. Os membros da comunidade lhe disseram que havia três modos de ganhar a vida: ela poderia dançar, mendigar ou se prostituir. "Decidi dançar em festas", disse ela. "Acho que já dancei em todas as cidades e aldeias do Paquistão".

Por mais angustiante que fosse, a experiência de Sarah Gill não é atípica para uma mulher transgênero no subcontinente indiano. Por séculos, as pessoas intersexo - as que possuem órgãos sexuais masculinos e femininos - e as que são designadas como do sexo masculino ao nascer, mas que posteriormente se identificaram como mulheres, deixaram suas casas e se juntaram a comunidades do terceiro sexo, onde podiam expressar asua feminilidade sem medo de serem perseguidas. Estas sociedades estão organizadas segundo o sistema de parentesco guru-chela (mestre-discípulo), e têm regras, rituais e mecanismos de resolução de disputas próprios. No Paquistão, os termos usados para denominar quem pertence a estas comunidades variam, e às vezes são intercambiáveis. Os mais comuns são hijra e khawaja sira, que nomeiam dois grupos historicamente distintos que se confundem hoje em dia.

Na Índia pré-colonial, khawaja sira eram eunucos escravizados empregados em uma variedade de funções burocráticas, militares e como escribas. Segundo a historiadora Jessica Hinchy, "eles encarnavam predominantemente uma espécie de masculinidade nobre, e podiam aspirar a posições sociais bastante elevadas". Os hijras, por sua vez, encarnavam o feminino, e trabalhavam como artistas mambembes que ganhavam a vida abençoando bebês e recém-casados, e às vezes exerciam a prostituição. 

Embora não necessariamente rica, a comunidade hijra certamente ocupava um lugar na sociedade. Durante o domínio dos  mogóis, por exemplo, contava com várias formas de patrocínio estatal, como doações em dinheiro, direito de mendigar e terrenos férteis. "Seria difícil pensar em exemplos na Índia pré-moderna em que as pessoas parecessem particularmente preocupadas com a existência de gente distinta, que hoje chamamos 'transgêneros'", diz Audrey Truschke, historiadora especializada no período mogol. "Sejam mulheres vestidas de homens, pessoas intersexo ou eunucos, elas estão por perto, estão lá, têm seu próprio lugar na sociedade, e é isso".

Com a colonização britânica, porém, houve uma onda de perseguição. As comunidades hijra foram o alvo sistemático da Lei das Tribos Criminosas de 1871, e os administradores coloniais as consideravam uma presença "impura". "Em meados do século XIX, os britânicos tentaram mais intensamente classificar e conhecer a população indiana", conta Hinchy. "Grupos que são difíceis de classificar e conhecer causam ansiedade no governo colonial britânico, e a comunidade hijra é isso de múltiplas maneiras. Refiro-me, obviamente, à sua corporificação de gênero, mas também ao fato de serem uma comunidade baseada no discipulado, cujas formas de parentesco não eram claras para o Estado colonial".

Outro aspecto desta perseguição, segundo Hinchy, foi a consolidação dos conceitos binários de gênero na Europa e nos impérios europeus, nos séculos XVIII e XIX. "Vários historiadores têm argumentado que é no século XVIII que se chega realmente à  solidificação da compreensão binária de gênero, que vê o 'masculino' e o 'feminino' como duas categorias incomensuravelmente distintas, opostas entre si", diz ela.

Talvez o mais proeminente historiador deste tema seja Thomas Laqueur. Segundo ele, o que precedeu a teoria dos opostos binários teria sido o modelo de um sexo único, em que o corpo feminino era visto como uma versão fracassada ou imperfeita do masculino. Embora problemática em si mesma, esta forma de pensar o gênero era necessariamente mais flexível que o modelo de dois sexos que a suplantou. "No século XIX, certamente esse tipo de entendimento binário de gênero se solidificou realmente", diz Hinchy. "E não é só isso que foi exportado para as colônias, pois o entendimento britânico sobre gênero e sexualidade tomou forma durante o processo de se tornar uma potência imperial, e também é parte dessa história".  

No Paquistão atual, grande parte do ativismo khawaja sira centra-se nos efeitos deletérios deste legado colonial. Até mesmo o uso do termo khawaja sira, adotado por legisladores, ativistas e membros da comunidade como uma categoria abrangente para pessoas do terceiro sexo do Paquistão, tornou-se de certa forma necessário, já que a palavra hijra passou a ser usada como um insulto.

A dra. Mehrub Awan, ativista khawaja sira, de Karachi, acredita que a liminar sobre a definição do próprio gênero é resultado do imperialismo cultural. "A questão é de modernidade e ocidentalismo, e da hegemonia da filosofia ocidental da sexualidade", diz ela. "Ela obriga os povos indígenas orientais a nos posicionarmos em uma estrutura da sexualidade ocidental, para que as nossas realidades sejam consumíveis pelo público moderno". 

Mehrub lembra que ela não sabia realmente o que era gênero até começar a frequentar a escola. "Acho que foi no jardim de infância que me disseram pela primeira vez que eu era um menino", conta, "e eu não sabia o que isso significava". Como castigo por brincar de boneca e demonstrar outras formas de comportamento "feminino", seus pais a trancavam num quarto escuro. "Passei tantos anos trancada na garagem que recordo cada centímetro do tapete esfarrapado. Memorizei onde ficava cada prego solto de pontas afiadas, para saber onde podia e não podia me sentar".

Embora ela não se sentisse confortável em seu corpo, as pressões sociais foram tais que Mehrub passou a maior parte da vida identificando-se como homem. Em 2016 ela foi para os Estados Unidos com uma bolsa Fulbright; foi a experiência de viver como um homem gay em Washington, D.C., onde concluiu um mestrado em saúde pública na Universidade George Washington, que a convenceu de que já não podia mais encarnar o masculino. "Basicamente, decidi que essa coisa de ser homem não era para mim. Eu já tinha feito isto, não gostava e disse adeus a isso".

Segundo Mehrub, sua conscientização surgiu da expectativa frequente de seus parceiros sexuais, de que ela se comportasse de uma forma hiper masculina. "Eu estava morando na cidade do Pentágono, repleta de soldados estadunidenses. Então, qualquer um com quem eu desse match no Grindr dizia coisas como: 'Quero que você me foda como se eu fosse um cavalo, e nessa hora quero que você grite Allahu akbar - e quero que você faça de mim a sua puta americana'", ela recorda. "E na cultura gay há muita masculinidade tóxica, certo? É tipo, 'Nós gostamos de homens, não de bichas". 

Quando Mehrub voltou ao Paquistão, dois anos depois, o cenário para as pessoas transgênero e de gênero ambíguo havia mudado fundamentalmente. Em maio de 2018, após anos de ativismo de base, o Parlamento paquistanês aprovou a Lei de Proteção dos Direitos das Pessoas Transgênero, um marco na legislação, criada para proteger os direitos de "quaisquer pessoas cujas identidades de gênero e/ou expressão de gênero difira das normas sociais e das expectativas culturais baseadas no sexo que lhe foi atribuído ao nascer".

A lei - uma das mais progressistas no mundo - define "identidade de gênero" como o "sentido mais íntimo e individual do eu como homem, mulher ou uma mistura de ambos, ou nenhum dos dois" e dá aos indivíduos o direito à auto-identificação. Já não importava mais o sexo atribuído no nascimento; segundo a linguagem da lei, o indivíduo pode se identificar com o gênero que lhe parecesse, e ter esta identidade registrada nos documentos oficiais. A lei também proíbe a discriminação contra indivíduos trans em escolas, hospitais e locais de trabalho; estabelece seus direitos de herança e codifica seu direito ao voto e a concorrer a cargos públicos.

"A lei de 2018 me faz sentir muito mais segura", diz Emon Kazmi, mulher transgênero habitante de Islamabad. "Eu me sinto mais confiante em minha identidade de gênero, e não vivo me desculpando como costumava fazer".

Emon foi criada no que descreve como uma família muito conservadora. "Não havia flexibilidade para expressar a minha feminilidade em casa", diz ela. "Estava fora de questão para a minha família aceitá-la". 

Os anos da adolescência foram os mais difíceis da sua vida - tão punitiva que ela costumava rezar a Alá para "consertar o que estava errado" com ela. "Tive de enfrentar muito bullying e assédio sexual", conta. "Nunca tive amigos na escola ou na faculdade. Meus colegas ou me sexualizavam ou me cancelavam.... Ser sexualizada destruiu a minha autoconfiança. Eu costumava me esconder das pessoas. Só me sentia confortável estando só. Eu não tinha nenhuma vida social".

Pouco depois de terminar a faculdade, Emon conheceu pessoas da comunidade trans nas mídias sociais. "Foi a primeira vez em que me senti aceita", diz. "Entendi que isto era o que eu era. Não precisei que ninguém me dissesse - eu sentia isso por dentro".

Ao decidir que nunca mais poderia voltar a viver como homem, Emon foi viver com um grupo de mulheres transgênero e iniciou o processo formal de transição para a condição de mulher. Ela optou pelo que chamou de uma rota "não cirúrgica", que envolvia tomar bloqueadores de testosterona em combinação com progesterona, e passou pelo tratamento sem supervisão médica. "Não havia nenhuma lei na época, então nós nos auto-medicávamos", explica. "Isto traz  muitas conseqüências". No início, você tem que enfrentar muitas questões de saúde mental. Seus músculos e ossos também começam a enfraquecer, por isso você se sente fraca muitas vezes".

As experiências da terapia de substituição hormonal podem diferir substancialmente de pessoa para pessoa. Mehrub descreve o regime como libertário - um retorno ao equilíbrio. "Eu pensava: isto parece tão natural, tão orgânico. É como, Uau, seu corpo estava desejando isso". A aprovação da lei de 2018, argumenta ela, aumentou a visibilidade das pessoas transgênero e criou o mercado dos cuidados da transição: "É uma economia de nicho, mas há médicos que agora estão se especializando na área, porque sabem que terão clientes transgênero".

Esta mesma visibilidade, entretanto, fez da nova lei o alvo da oposição religiosa e de direita. Em novembro de 2021, o senador Mushtaq Ahmed, do Jamaat-e-Islami (Partido do Islã), introduziu uma emenda descrevendo a lei original como "repugnante" para o Islã. A sua emenda argumenta que, em sua forma atual, a lei ofende a dignidade e a modéstia das mulheres muçulmanas, torna o reconhecimento do gênero uma questão "subjetiva" e permite a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Outros políticos, principalmente da direita religiosa, questionaram a cláusula relativa à auto-identificação, e pediram a criação de uma junta médica para resolver ambigüidades quanto ao sexo do indivíduo.

De acordo com Farzana Bari, estudiosa feminista e ex-diretora de estudos de gênero da Universidade Quaid-e-Azam, a lei levou vários anos para se tornar controversa porque os legisladores que a aprovaram não entendiam completamente a experiência das pessoas transgênero. "Eles não perceberam o que significava se auto-identificar", diz Bari. "Em sua percepção, a palavra 'transgênero' significava apenas pessoas cujos órgãos sexuais não estavam bem definidos. O conceito de que sua alma poderia estar presa no corpo errado não lhes ocorreu".

Alguns legisladores fizeram mais do que propor emendas e estão pressionando para que a lei seja revogada em sua totalidade. A lei está sendo contestada no Tribunal Federal de Shariat, o órgão constitucional responsável por garantir que a legislação seja compatível com os ensinamentos do Islã. Segundo Mehrub Awan, esta oposição religiosa reflete o desejo da ultradireita de "regimentalizar" a moralidade através do Estado. "Se você olhar os direitos trans por uma lente heterossexual, verá uma minoria marginalizada que recebe um número limitado de direitos por parte do Estado", diz ela. "Mas, se olhar para ela pelo prisma da própria comunidade transgênero, percebe  que esta é a lei que pode levar à  redefinição do contrato do Estado paquistanês com o povo, ao reconhecer a sua própria agressão e admitir que esta agressão é de natureza colonial e precisa ser retificada". 

Com a lei agora em perigo de ser diluída ou revogada, ativistas temem a volta dos dias em que transgêneros eram estigmatizados, mal-entendidos e forçados à segregação. Esta é a opinião de Nayyab Ali, ativista khawaja sira que dirige a Unidade de Proteção a Transgêneros da Polícia de Islamabad. A unidade foi criada para encorajar as pessoas trans a apresentar  queixas diretamente à polícia, em vez de confiar na estrutura não oficial de resolução de disputas do sistema guru-chela.

"Como a sociedade tem isolado a comunidade khawaja sira há tanto tempo, a comunidade criou um sistema separado, com regras e estrutura de governança próprias", explica Nayyab. Este sistema beneficia crianças abandonadas pelos pais, permitindo-lhes viver sob a proteção de um guru ou mãe caseira que as veste, alimenta e abriga. Porém, ele falha ao não tirá-las da marginalidade. "Assim como vemos o filho de um médico se tornar médico e o filho de um engenheiro se tornar engenheiro, uma guru transgênero que ganha a vida como trabalhadora do sexo e mendigando ensinará o mesmo aos seus discípulos".

Nisha Rao é a primeira advogada transgênero do Paquistão; ela passou 15 anos no sistema guru-chela, que descreve como cruel e explorador. "A guru deve ser tanto sua mãe quanto seu pai", diz ela. "Para ser mãe ou pai, você tem de aceitar os erros do filho, abraçá-lo apesar dos seus erros - mas não é o que acontece no sistema guru-chela. Nele, você paga à guru mensalmente com os seus ganhos. Se fizer algo errado você recebe uma multa. Você é comprada e vendida por diferentes gurus contra a sua vontade".

No sistema, uma chela só pode deixar a guru quando é comprada por outra guru, e o preço dessas transações pode chegar a milhões de rúpias. Na primeira vez que uma pessoa transgênero é vendida, o preço é determinado com base no dinheiro que a guru gastou para hospedá-la e vesti-la, e no número de multas que a chela acumulou por mau comportamento. O que constitui mau comportamento é arbitrário e pode ser tão trivial quanto não esquentar suficientemente a água do banho da guru.

Nayyab Ali estima que o preço da primeira venda de uma chela esteja entre 100.000 e 150.000 rúpias. "Uma guru que paga essa quantia por alguém não o faz por gentileza", diz ela. "Ela paga 100.000 por você para que possa ganhar 200.000 com o seu trabalho". Como muitas khawaja sira ganham a vida como mendigos, dançarinas ou trabalhadoras sexuais, na verdade elas são coagidas a duplicar a sua carga de trabalho. Isto costuma significar atender o dobro de clientes, dançar no dobro de festas ou passar muito mais horas mendigando nas ruas.

O que torna as coisas ainda piores é que para cada venda posterior da mesma khawaja sira, as regras comunitárias determinam que o seu preço deve automaticamente dobrar. "É um investimento muito seguro", diz Nayyab. "Se você não fizer dinheiro suficiente para elas, elas simplesmente a vendem pelo dobro do preço que pagaram por você".

Estas transações são reguladas por um conselho de famílias governantes khawaja sira, que recebem 25% do dinheiro obtido em cada venda. E como a porcentagem para as famílias dominantes é fixa, elas ganham mais dinheiro cada vez que alguém é vendido. "Por isso as gurus tratam tão mal as chelas", explica Nayyab, que já foi vendida três vezes. "Às vezes elas tentam provocar os discípulos para que se comportem mal, de forma a ganhar dinheiro vendendo-os".

Na Seção 370 do Código Penal do Paquistão, comprar ou vender uma pessoa como escrava é punível com pena de sete anos de prisão. Até bem recentemente, porém, poucas chelas se dispuseram a processar suas gurus, já que fazê-lo levaria quase certamente à excomunhão. Na estrutura de funcionamento do sistema, a guru se reserva o direito de punir os discípulos, cortando-lhes o hukka pani. Extraído de uma frase que significa "cachimbo de tabaco e água" em urdu, o termo se refere a uma forma rígida de censura que obriga cada aderente ao sistema a ostracizar o infrator. Os membros da comunidade são proibidos de viver ou socializar com aquela pessoa.

As khawaja sira pegas interagindo com a pessoa excomungada são rigorosamente multadas por quebrar o código, enquanto a infratora é impedida à força de ganhar a vida com o trabalho sexual e a mendicância. Se o seu hukka pani for cortado, Nisha Rao explica, "você é despejada de casa e, quando sair mendigando, oito ou dez membros da comunidade virão e a espancarão para impedi-la de trabalhar". Eles rasgarão as suas roupas e farão você vagar nua pelas ruas".

Como muitas khawaja sira não têm amigos nem companheiros fora do sistema, a punição leva ao isolamento total. "É basicamente como se você tivesse sido posta na cadeia", diz Zanaya Chaudhry, membro da comunidade de Lahore e ativista. "Imagine se você não tiver nenhum vínculo com a sua família; a sociedade já não a aceita - aonde mais você vai encontrar aceitação, se não for na cultura khawaja sira? Se elas também o excluírem, para onde você vai?” 

Nos últimos anos, esses sistemas internos de opressão começaram a enfrentar resistência. No final de 2020, Nayyab Ali fundou a Sociedade Livre - um novo grupo no seio da comunidade transgênero cujos membros não mais são comprados e vendidos e podem viver sem medo do ostracismo e do exílio. Esta revolução, que começou na sala de estar de Nayyab, se espalhou como um incêndio pelo país. "Agora somos maioria", diz ela. "Posso lhes dizer que, só em Islamabad, cerca de 75% das khawaja sira pertencem à Sociedade Livre".

Sob a supervisão de Nayyab, os membros da Sociedade Livre são treinados no uso das mídias sociais para promover a causa e aprendem os fundamentos de várias seções da lei. "O nosso objetivo não é só libertar esses indivíduos", diz Nayyab. "Queremos dar-lhes ferramentas para se defenderem. Estamos criando líderes que falam realmente de independência e liberdade".

Como retaliação, diz Nayyab, líderes da comunidade decidiram cortar o seu hukka pani. "Eu fiquei tipo: E daí? Fiz um vídeo que viralizou nomeando as chefes khawaja sira e disse que ia excomungá-las em troca".

No entanto, com o movimento ganhando impulso, a excomunhão tornou-se a menor das suas preocupações. "Pessoas vieram à minha casa para me matar".As anciãs da comunidade tentaram me acusar de blasfêmia e desrespeito ao Profeta. Recebo muitíssimas mensagens no WhatsApp dizendo que serei queimada viva ou assassinada. Tem gente que sonha em me matar todas as noites".

A sua coragem para continuar, diz ela, está enraizada na sua fé islâmica e na promessa que fez a si mesma quando lutava por sua vida. Em 2016, enquanto dançava em um festival de música em Muridwala, Nayyab foi emboscada e atacada com ácido. Acamada por vários meses, ela decidiu que, se sobrevivesse, dedicaria a vida a lutar pela sua comunidade. "Os movimentos sempre exigem sangue", diz ela. "Para membros de comunidades vulneráveis como a nossa, ter medo da morte é comportar-se como uma galinha no galinheiro". Toda vez que o açougueiro leva uma galinha para o abate, as outras começam a dançar porque o seu número ainda não saiu. Mas, eventualmente, o número de todos vai sair".

Hasan Ali, jornalista, trata da política externa dos EUA e da política no sul da Ásia.

Available in
EnglishPortuguese (Brazil)French
Author
Hasan Ali
Translators
Graciela Kunrath Lima and Cristina Cavalcanti
Date
21.02.2023
Source
The NationOriginal article🔗
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