War & Peace

Como é na Linha de Frente Hospitalar Infernal de Gaza: Conversando com a Dra. Tanya Haj-Hassan.

A angústia e determinação dos profissionais da saúde de Gaza são temas da Dra. Tanya Haj-Hassan.
Dra. Tanya Haj-Hassan discute a infraestrutura da saúde de Gaza sendo atacada, os testemunhos angustiantes de tortura, os efeitos da guerra de Israel em crianças e o silêncio da medicina americana enquanto o genocídio de Gaza continua.

Uma das primeiras publicações em @GazaMedicVoices, uma página de redes sociais que fornece relatos de primeira mão de profissionais da saúde no solo de Gaza, foi compartilhada em 12 de outubro de 2023. Ela apresentou o testemunho de um cirurgião especialista em Gaza, datado apenas três dias da campanha de extermínio de Israel — antes que, para muitos, fosse reconhecida como tal. "Tendo de passar cinco dias sem sair do hospital, me vejo sem palavras", alegou o cirurgião. "Nunca, em toda minha vida, testemunhei algo assim, não sou capaz de articular o que vi. Fiquei sem palavras".

Passados mais de 200 dias, o horror causado pelo exército israelense — apoiado e sustentado pelo governo americano — sobre o povo cercado de Gaza, continua a chocar a consciência. Às vezes, encontro-me tão atordoada pelo que estou testemunhando através da tela do meu celular que me esqueço de respirar.

Israel continua a prejudicar a infraestrutura civil de Gaza com uma constância digna de rivalizar a mão de qualquer cirurgião — somente aqui, é uma constância a serviço da morte em vez da vida. Entre seus alvos mais claros, estão o sistema de saúde de Gaza e os profissionais da saúde, cujo compromisso de manter a vida de seu povo ameaça a implementação do projeto de Israel. Até 15 de maio, pelo menos 493 profissionais da saúde foram mortos por Israel, muitas vezes através de bombardeios direcionados ou de execuções sumárias dentro dos portões de um complexo hospitalar. Este número provavelmente é menor, já que o mecanismo para contabilizar vítimas utilizados nos hospitais de Gaza, de todos que foram alvos, 23 ficaram não funcionais. Centenas de profissionais da saúde foram detidos e torturados; muitos permanecem sob custódia israelense.

A Dra. Tanya Haj-Hassan, médica de terapia intensiva pediátrica que trabalha com Médecins Sans Frontières e cofundadora da @GazaMedicVoices, emergiu como uma das vozes mais proeminentes dando o alarme sobre o inferno que Israel criou para os profissionais da saúde de Gaza. Antes e durante outubro, ela se voluntariou como médica em Gaza. Recentemente, conversei com ela via Zoom. Discutimos o ataque à infraestrutura da saúde de Gaza, os testemunhos angustiantes de tortura que ela e outros estão recolhendo, os efeitos duradouros da guerra de Israel nas crianças (e o futuro da Palestina), e o que fazer com o silêncio imperturbável e aparentemente despreocupado da medicina americana enquanto um genocídio se desenrola diante de nossos olhos.

Nossa conversa foi editada para melhor clareza e extensão.

Mary Turfah (MT): Ontem, me deparei com um relato de uma terceira vala comum desenterrada no Hospital Al-Shifa. Há um mês, quando as primeiras valas comuns estavam sendo descobertas, você foi entrevistada pela Sky News. O apresentador citou fontes militares israelenses dizendo que eles haviam detido "centenas de militantes do Hamas" dentro do complexo, depois perguntou-lhe o que pensava disso. Poderia falar sobre sua resposta a ele e sobre essa obsessão persistente com os "militantes no Al-Shifa", quando nenhum hospital em Gaza foi poupado e quando foram encontradas valas comuns [sete no total até o momento] em vários hospitais em Gaza?

Tanya Haj-Hassan (THH): Sim. Acho que minha resposta foi algo do como, não posso acreditar que ainda estamos tendo essa conversa. Todas as pessoas com formação médica ou humanitária estão tão cansadas de terem de responder a essas justificativas absurdas e atrozes sendo fornecidas para coisas que nunca são justificáveis. Pensei que a questão do Hamas e Al-Shifa já havia sido enterrada há muito tempo. Houve várias semanas em que era tudo que nos perguntavam nas entrevistas. Houve várias investigações que concluíram que não existiam provas credíveis que justificassem os ataques em Al-Shifa. E então, Al-Shifa foi novamente alvejada e cercada.

Acho que voltei de Gaza pouco antes daquela entrevista da Sky News. Quando estive em Al-Aqsa em Deir Al Balah, falei com vários prestadores de cuidados de saúde que estavam em Al-Shifa até o último minuto durante aquela primeira rodada de ataques, quando o hospital foi cercado e evacuado de todos os pacientes e funcionários a força. Você provavelmente não lembrará daquela primeira rodada, dos israelenses alvejando os painéis solares e suprimentos de oxigênio, de como os hospitais ficaram sem combustível, das várias unidades nos hospitais que foram danificadas.

Então, eventualmente, Al-Shifa voltou a funcionar. Os funcionários ficaram tão orgulhosos pelo fato de terem conseguido fazê-la funcionar novamente.

Aquela segunda vez, o hospital foi novamente cercado e alvejado. Muitos dos funcionários foram levados ao pátio do hospital, onde os homens foram despidos. Soldados israelenses espancaram vários dos prestadores de cuidados de saúde. Uma pessoa muito, muito experiente do Al-Shifa, um médico mais velho, foi eventualmente liberado e foi a pé para o Hospital Al-Aqsa. Imediatamente, ele voltou a trabalhar. Eu estava no Hospital Al-Aqsa quando ele apareceu desgrenhado, com barba crescida, exausto, tendo perdido não sei quantos quilos, sem ver sua família por cinco meses, sem um telefone, sem sapatos adequados, sem roupas adequadas.

Eles fugiram basicamente sem nada. E muitos dos outros prestadores de cuidados de saúde que haviam sido levados para fora com ele, foram raptados. Acho que os testemunhos dele sobre o que aconteceu e a quantidade de trabalho que eles tiveram para fazer com que a Al-Shifa funcionasse novamente, tornaram a pergunta do apresentador da Sky News ainda mais irritante. Porque essa é a realidade da qual acabava de sair, e então ouvir ele perguntar a um profissional da saúde que passou as últimas semanas ressuscitando crianças mortas e moribundas mutiladas ao ponto que acho que nunca conseguirei esquecer — mesmo que eu prezo meu próprio bem-estar, provavelmente seria bom de esquecer algumas daquelas imagens — achei isso muito ofensivo. Um insulto para mim, para os prestadores de cuidados de saúde que arriscaram suas vidas para ficar em Al-Shifa, que perderam 25 por cento de seu peso corporal, que estavam exaustos. Um insulto para os prestadores de cuidados de saúde que foram mortos em Al-Shifa, que fugiram de Al-Shifa, para os civis que foram executados lá. É um insulto ao nosso intelecto. É um insulto à humanidade.

MT: Na semana passada, foi revelado que Dr. Adnan Al-Bursh, um renomado cirurgião ortopédico em Gaza, foi torturado até a morte dentro das prisões israelenses, de acordo com o testemunho de testemunhas, depois de ter sido sequestrado no hospital onde estava fornecendo serviços que salvam vidas, em dezembro. Centenas de profissionais da saúde foram mortos até o momento, e muitos mais ficaram feridos. Você disse em uma entrevista que médicos e profissionais da saúde estão trocando de uniforme antes de sair do hospital para não serem alvejados. Além disso, os médicos em Gaza tem basicamente trabalhado sem parar por 215 dias. Como alguém que trabalhou em Gaza, gostaria de saber se você poderia falar um pouco sobre o que seus colegas estão enfrentando no dia a dia.

THH: Quero começar com o sequestro de profissionais da saúde, porque é muito pouco divulgado, a ponto de meus colegas e eu, profissionais da saúde que trabalham em nossos próprios empregos, estarmos fazendo o trabalho de investigação. Eles são sistemáticos. Houve pelo menos 240 sequestros documentados pelo nosso grupo—

MT: 240?!

THH: Pelo menos 240, e não estou falando do que é relatado pelo Ministério da Saúde, que acredito ser um número ainda maior. Documentamos que pelo menos 240 profissionais da saúde foram sequestrados e detidos pelas forças israelenses, a maioria dos quais não foram libertados. E aqueles que foram libertados estão fornecendo testemunhos de tortura, deles mesmos, mas também da tortura que testemunharam.

Eu fiz testemunhos. Um deles, um testemunho de três horas sobre a tortura infligida ao [meu amigo], um enfermeiro, por 53 dias sob custódia, acusando-o de fazer parte do Hamas, embora o fato de ele ter sido libertado diga que ele não fazia parte do Hamas. Dada a extensão pela qual ele foi torturado, fico surpreso que tenha sobrevivido. E ele não sobreviveu sem sua saúde física e mental intacta. Ele tem cicatrizes, tem pesadelos. Ele teve hematúria, ou seja, sangramento ao urinar, por semanas depois que foi libertado.

MT: Hematúria? O que eles fizeram com ele?

THH: Deixe-me apenas dizer que foi abuso físico, sexual e psicológico. E ele me deu descrições detalhadas do que cada um deles implicava. E honestamente, foi a pior coisa que já ouvi em minha vida. Tenho um amigo que trabalhou nas investigações de Abu Ghraib, um advogado dos direitos humanos. E estou te dizendo que isso é a pior coisa que já ouvi em minha vida.

Eles o trataram como um animal. Eles ameaçaram estuprar sua mãe e irmãs se ele não confessasse e ameaçaram matar sua família que ainda estava em Gaza se ele não confessasse. Eles afirmaram que sabiam onde sua família estava se abrigando, onde estavam e continuaram dizendo para ele se confessar. Ele continuou se recusando a fornecer uma confissão falsa, insistindo ser um enfermeiro e não tinha nada a ver com nenhum grupo militar.

Deixe-me te contar algo sobre esse enfermeiro, apenas porque acho importante relatar o cenário. Esse enfermeiro, desculpe-me a linguagem, trabalha feito um camelo. Ele é um dos enfermeiros mais dedicados que já conheci. Agora que ele foi libertado, adivinhe o que ele está fazendo? Ele está trabalhando de graça, como voluntário.

Digamos que são duas, três da manhã. Recebemos vítimas e mais vítimas em massa. Estamos exaustos. Acabamos de reanimar todos os pacientes e todos estão relativamente estáveis. E enquanto o restante de nós está tomando uma xícara de chá, ele está na área de reanimação, limpando a areia dos olhos de um paciente, retirando suas roupas molhadas, conversando com eles. Esse é o tipo de humano que ele é.

Apenas quero relatar esse cenário, com olheiras porque ele tem insônia, já que acorda todas as noites, após 30 minutos de sono, gritando "Parem de me bater! Parem de me bater!" Ele não consegue dormir. Então ele trabalha. Ele deveria estar 24 horas trabalhando, 48 horas de folga, certo? Mas depois que termina suas 24 horas, ele volta três horas depois porque não consegue dormir.

Uma vez, falei para ele ir para casa porque ele estava trabalhado por muito tempo. Então ele vai embora. Duas ou três horas depois, estou no pronto-socorro e vejo um homem deitado no chão com um torniquete, com amputação traumática das duas pernas e um braço. Ele tem apenas um braço e está sofrendo hemorragia no chão. Estão o reanimando e ele acabou de chegar ao hospital. Ele tem um cateter de Foley usado como torniquete em torno de um toco. E na outra perna, ele tem um torniquete militar. Nunca vi torniquetes militares na sala de emergência antes, mas trouxe um monte deles para Gaza comigo e dei um para esse enfermeiro dois dias antes.

Este paciente tinha um torniquete militar em uma perna. Rapidamente, tirei outro da minha bolsa e coloquei em sua outra perna, e estava pensando, onde diabos eles encontraram esse outro torniquete?

Então me viro e vejo aquele enfermeiro. Agora eu sei de onde veio aquele torniquete. Fiquei tipo: o que você está fazendo aqui, cara? Eu te disse para ir para casa e descansar. Então ele disse, "Eu fui para casa e descansei. Este é no chão com amputações triplas é o marido da minha irmã".

Ele explicou que o marido de sua irmã foi a uma distribuição de ajuda. As forças israelenses bombardearam o local de distribuição de ajuda. Então, sua família o acordou e pediu a ele que fosse verificar seu cunhado, que eles sabiam que estava na distribuição de ajuda.

Ele chega. Ele vê o marido de sua irmã, que também é um grande amigo seu, sofrendo hemorragia no chão, com amputações traumáticas triplas. E agora o marido de sua irmã está em um hospital superlotado, precisando de várias cirurgias e sem condições de fazê-las. Ele está cuidando dele, sendo a mesma pessoa que passou por tudo que eu acabei de te contar.

Esse também é o mesmo enfermeiro que, poucas noites depois, estava reanimando uma criança às três da manhã. A criança morre e o enfermeiro apaga, com a cabeça no berço à sua frente.

Esta é a experiência de um profissional da saúde que foi sequestrado. Ele está exausto. Sua casa foi destruída. Ele está trabalhando um número de horas insano sem pagamento. E ele é um de centenas que foram sequestrados.

E todos os outros profissionais da saúde que não foram sequestrados conhecem colegas de trabalho sequestrados ou mortos. Eles estão trabalhando sem pagamento, ou recebendo salário mínimo, caso tenham um contrato. A maioria dos profissionais da saúde que eu conversei no Hospital Al-Aqsa chegaram ao ponto de estarem morando em tendas. Eles estão vindo trabalhar diariamente, tentando sustentar os membros de suas famílias, já que são muitas vezes a única pessoa que tem uma renda, quando são pagos.

Fiz isso por duas semanas, Mary, e estava muito cansado quando saí. Fiz isso por duas semanas. Não era apenas o tipo de cansaço que sinto por estar de plantão. Fui bolsista de cuidados críticos pelos últimos três anos. Sei como é a exaustão de plantões consecutivos, que era como estava trabalhando em Gaza. Mas isso era uma exaustão mental e era um tipo de exaustão física advinda sem esforço, de uma nutrição muito ruim. Você come alimentos enlatados constantemente. É tudo que você come, comida enlatada. Duas semanas disso e seu corpo estará cansado.

E não tive que me preocupar com a segurança das pessoas com quem me importo. Eles precisam se preocupar com a segurança de suas famílias. A maioria deles perderam alguém muito próximo. Conheci provedores de cuidados de saúde em Al-Aqsa que haviam perdido seus cônjuges, filhos, primos e pais.

MT: Parece que, pelo menos inicialmente, as forças israelenses estavam alvejando os médicos com mais anos de experiência. O que isso deixa para trás são os atendentes mais jovens, os internos, os estudantes de medicina, que então são esperados de assumir tarefas muito além de seus treinamentos. O que acontece ao sistema médico que perde essa experiência?

THH: É uma ótima pergunta e não se trata apenas do fato de que os médicos sênior estão sendo alvejados, que estão. Também é o fato que, como os prestadores de serviços de saúde estão sendo alvejados e a população de Gaza foi privada de tudo que é indispensável à vida humana, as pessoas que tem a opção de sair, em sua maioria, vão fazer essa escolha. E essas pessoas geralmente são membros da saúde que são os mais bem educados, com boa renda e com economias. Muitos dos médicos experientes fugiram. Eles estavam fugindo ativamente enquanto eu estava lá. Mesmo no período em que eu estava lá, o chefe do departamento de neonatologia e um dos médicos sênior do pronto-socorro fugiram.

O que isso significou é que, durante a noite, no departamento de emergência — os médicos trabalham em grupos e haviam grupos que acabavam sem médicos sênior, apenas com profissionais muito jovens, recém-saídos da faculdade de medicina, durante a noite inteira.

Você está na medicina, Mary. Imagine ter, em qualquer hospital, um turno durante a noite com vítimas em massa consecutivas onde 25, 30 pessoas machucadas chegam de uma vez, a cada poucas horas. E você tem médicos no primeiro ano, recém-saídos da faculdade de medicina.

MT: Sim, não saberia nem como fazer a triagem. Não saberia o que fazer.

THH: É com isso que eles estão lidando. Os hospitais com recursos mais altos do mundo, hospitais grandes com pronto-socorro que estão praticamente vazios, ficariam completamente sobrecarregados e teriam dificuldades para lidar com uma dessas vítimas em massa. Um. E nós recebíamos vários no decorrer de um turno. O desgaste cerebral é real. E está acontecendo porque a população tem sido estrangulada. Muitas pessoas, se escolhem se manter vivos, escolhem partir. E muitos dos que escolhem ficar ou não tem a opção de sair estão sendo mortos.

MT: É insidioso — uma morte lenta ou o enfraquecimento de uma população, não recebe a mesma atenção porque não é tão envolvente ou agudo.

THH: Há claramente duas fases de como as pessoas estão morrendo em consequência da maneira de como Israel está conduzindo suas operações em Gaza. Uma fase é a morte rápida. Com ferimentos causados por explosões, por franco-atiradores e por estilhaços. Quando digo franco-atirador, estou falando de tiro na cabeça.
Também há a morte lenta, sendo a fome, a criação de condições incompatíveis com a vida.

Estávamos falando sobre Al-Shifa. Um dos médicos, quando lhe perguntei: "Porque você acha que eles continuam a alvejar Al-Shifa?" respondeu que a Al-Shifa era o coração do sistema de saúde de Gaza. Se você quer destruir uma população, você destrói seu sistema de saúde, o lugar que pessoas vão quando elas precisam de ajuda. Se você quer destruir um sistema de saúde, você destrói seu coração. Essa é a morte lenta.

MT: A parte sobre a qual vi muito pouco é a exposição cancerígena. As taxas e os tipos de câncer em que são observados na população pediátrica em Gaza — você sabe mais disso do que eu. Isto não é normal. Gaza é uma população com níveis tóxicos de exposição ao longo de décadas de ataques — de fósforos brancos, esse tipo de coisa. E, além disso, a água é imprópria para consumo, os produtos químicos que os militares israelenses pulverizam nos campos agrícolas para inutilizá-los, de tempos em tempos, nos anos entre as campanhas aéreas ativas.

THH: Às vezes, quando haviam vítimas em massa e eu ia para o pronto-socorro, colocava uma máscara só por causa da quantidade de detritos — das casas destruídas, mas também dos próprios explosivos. Você entra no pronto-socorro após uma catástrofe e tudo fica confuso. Você não consegue enxergar direito porque as pessoas que estão trazendo estão muito cobertas. Você viu os vídeos — eles são cinzentos. Tudo isso é descarregado no ar. Quando você corta as roupas deles, você recebe essas plumas de qualquer que seja o detrito, você respira e sente como se estivesse sendo sufocado. Não sei o que estamos inalando.

Nós rimos disso. Muitas dessas coisas são tão horríveis. Acho que as pessoas em Gaza são ótimas em fazer isso — elas brincam. O humor negro é o caminho quando você está passando por algo assim.

MT: A "crise humanitária" que a mídia é capaz de acomodar, ou até mesmo lamentar, só é possível porque ela enquadra o "custo humano" como algo separado dos objetivos políticos abrangentes de Israel, como se o genocídio — e, em particular, o direcionamento da infraestrutura de saúde — fosse de alguma forma incidental ou um dano colateral. Quais são os limites de enquadrar o que está acontecendo como uma "crise humanitária"?

THH: Acho que usei a frase “crise humanitária” por algumas semanas no início. Agora, a palavra "crise" para mim, é um gatilho. Uma "crise humanitária" descreve uma inundação ou uma escassez temporária, uma escassez natural. O que estamos vendo é uma execução em massa contínua, em todos os grupos demográficos de uma população. Isso não é algo que o setor humanitário possa resolver.

Outro problema é que, em uma "crise humanitária", a resposta natural é trazer trabalhadores humanitários. E se meu primeiro argumento foi que o mundo humanitário não pode resolver isso, meu segundo argumento é que o esforço humanitário foi prejudicado desde o início. Israel não está permitindo a entrada de ajuda humanitária ou que os trabalhadores humanitários se desloquem para os locais onde as pessoas mais precisam deles — não conseguimos chegar ao norte. Mal conseguimos chegar às áreas centrais ou à Cidade de Gaza. E mesmo no sul, existem organizações humanitárias que estão evacuando suas equipes ou tendo que se deslocar no território, cada vez mais longe das áreas de necessidade.

E meu terceiro problema com essa linguagem é que ela não fala sobre o alvejamento direcionado. Você tem várias organizações humanitárias alvejadas várias vezes. Falamos muito sobre a World Central Kitchen, principalmente porque eles eram trabalhadores estrangeiros. Houve pelo menos 11 trabalhadores humanitários, todos palestinianos, mortos desde o ataque aos funcionários da Cozinha Central Mundial. Houve mais trabalhadores das Nações Unidas mortos em Gaza — e ultrapassamos este recorde horrível alguns meses atrás — do que em toda a história da ONU.

E ontem mesmo me pediram para dar uma entrevista para discutir "relatórios" sobre a possível escassez em Gaza. Temos falado sobre a escassez por meses. O que você quer dizer com "relatos" de "possível" escassez em Gaza?

Antes de receber aquele pedido de entrevista, eu acabara de ver o vídeo dos tanques israelenses na passagem de Rafah, passando por cima da placa "Eu Amo Gaza". Lembro-me de meu coração agitado quando cheguei a Gaza pela primeira vez e vi isso. Ouvi relatos de que israelenses executaram os funcionários desarmados da fronteira de Gaza, as pessoas que carimbaram meu passaporte com "Estado da Palestina" quando entrei e saí, que me prepararam chá, com quem jejuamos na primeira noite do Ramadã porque chegamos tarde demais em Gaza para receber nossa bagagem e era hora de jejuar. Então, todos nós paramos e quebramos o jejum juntos. Essas são pessoas com quem compartilhamos comida e chá. Eles os executaram e depois destruíram a placa "Eu Amo Gaza".

E a mídia quer falar sobre "relatos" de escassez. É uma distração da realidade do que está acontecendo no local, que é genocídio.

Vou ler uma mensagem que recebemos hoje, para o Gaza Medic Voices, de um médico de emergência:

"Ontem à noite, a maioria dos pacientes foi atingida por explosões, muitas crianças com ferimentos de estilhaços — uma completamente cega, a maioria em agonia ao chegar ao hospital. Os relatos eram de que muitas áreas com pacientes tinham o acesso às ambulâncias negado pelos militares israelenses, portanto, as pessoas eram deixadas para sofrer e morrer. Quantidades consideráveis de ferimentos por arma de fogo durante a noite, que parecem ser tiros direcionados nos joelhos, além das vítimas de explosões. O número de funcionários locais é baixo e em alguns departamentos inexistente, já que suas famílias receberam panfletos que as orientavam a evacuar (já tendo sido deslocadas e evacuadas muitas vezes)."

Esta é uma mensagem de hoje em Rafah. Crianças com ferimentos causados por explosões, ferimentos por estilhaços, uma completamente cega, a maioria em agonia ao chegar ao hospital. E essas são as pessoas com sorte de chegar ao hospital, já que, de acordo com esse médico de emergência, o acesso às ambulâncias está sendo negado pelos militares israelenses, de modo que muitas vítimas são forçadas a morrer onde estão. E as outras vítimas que estão vendo são direcionadas — ferimentos a tiros nos joelhos.

Não sei de que outra forma você poderia interpretar os dados demográficos do número de mortos. Você não pode ter 48 por cento dos mortos serem crianças e isso ser qualquer coisa além do assassinato indiscriminado de toda uma população. Se você olhar para o número de mortos em qualquer outra guerra — escolha qualquer outra guerra, olhe para a demografia do número de mortos. Você verá 85, 90 por cento de homens, com idade para trabalhar e jovens homens. Não 48 por cento sendo crianças e 25 por cento sendo mulheres. Esses são os dados demográficos de Gaza, os dados demográficos exatos da população. Isso sozinho sinaliza genocídio. É claro que não por si só. A Corte Internacional de Justiça analisou detalhadamente os critérios para provar um genocídio plausível. E demora anos para chegar a uma determinação legal definitiva, mas estamos diante de um genocídio plausível. E os dados demográficos refletem isso.

MT: Gostaria de lhe perguntar sobre Rafah. De acordo com uma declaração recente de MSF, Israel assumiu o controle do lado palestino da passagem de Rafah e está bloqueando a entrada de ajuda, assim prendendo funcionalmente toda a população enquanto lança panfletos ordenando a evacuação. Ao mesmo tempo, o Egito selou seu lado da passagem com blocos de cimento. O que você está ouvindo das pessoas no local sobre a operação terrestre?

THH: Pânico extremo. As pessoas estão evacuando em milhares. Eles não sabem para onde ir. Eles estão sendo informados para irem para Al-Mawasi. Só para explicar o que é Al-Mawasi, trata-se de uma costa arenosa com tendas que ficam até a água na praia. Eu estava em uma entrevista coletiva com uma trabalhadora humanitária que está atualmente em Gaza e ela disse: "Chamar [Al-Mawasi] de zona segura é uma mentira, é hipocrisia chamar qualquer uma dessas zonas de 'zonas humanitárias'". Todo lugar sinalizado como "zona segura" ou "zona humanitária" foi bombardeado. As pessoas foram orientadas a evacuar para Rafah, mas Rafah não tem sido segura desde o início e atualmente está sendo bombardeada ativamente — e há uma operação em terra.

Tentei ajudar a evacuar uma jovem do Hospital Al-Aqsa que havia sido atropelada por um tanque enquanto dormia com sua família em uma tenda em Al-Mawasi. O tanque literalmente atropelou toda a sua família. A maior parte de sua família sobreviveu porque estava entre as duas rodas de corrente do tanque. Ela foi atropelada—metade de seu corpo foi esmagado e exposto. Os médicos a operaram por duas semanas para tentar recuperar seu corpo.

Eu tenho um vídeo dela implorando para ser evacuada. Ela era uma jovem muito querida. Ela morreu enquanto eu estava em Gaza. E ela estava em uma barraca na praia de Al Mawasi quando foi atropelada por um tanque israelense. As forças israelenses não permitiram que as ambulâncias chegassem até ela. Ela sangrou na praia por oito horas até conseguir ser transportada para o hospital e, em seguida, sofreu por duas semanas antes de morrer em decorrência dos ferimentos.

Portanto, chamar qualquer um desses lugares de “zonas seguras” é uma mentira completa. As pessoas estão recebendo folhetos do céu dizendo-lhes para "evacuar". Isso não é uma evacuação. Isso é uma transferência forçada. É um crime contra a humanidade.

Falei com um dos meus colegas hoje, uma das últimas pessoas a fugir do Hospital Abu Youssef Al-Najjar, e ele me disse que o hospital estava em um estado de pânico total. Eventualmente ele também fugiu de Abu Youssef Al-Najjar. Era o último hospital governamental restante em Rafah. Foi na área que estava sendo instruída a evacuar à força - odeio a palavra "evacuar" -, mas à força.

Ele ajudou a evacuar os pacientes e todos os outros. Pouco depois, sua casa foi atingida. Seus parentes foram mortos. Suas irmãs foram feridas. E agora ele está me enviando mensagens de texto de uma área no meio de Gaza, onde chegou com sua família restante, perguntando se posso ajudá-lo a montar pontos de saúde — tendas nas quais é possível fornecer assistência médica à população — porque, segundo ele, não há pontos de saúde naquela área. Isso foi logo após perder seus primos e suas irmãs serem feridas.

MT: Você provavelmente se lembra do vídeo que fez em novembro, em uma vigília organizada em Londres para os profissionais de saúde em Gaza. Você estava usando uniforme e lendo o testemunho de um médico em Gaza e começou a chorar. Você passou o telefone para a pessoa ao seu lado, gesticulando na tela para que ela continue a ler o testemunho. Você se sentou para se recompor. E, alguns segundos depois, você se levantou, pegou o celular e continuou lendo. Penso nisso com frequência, em como devemos, ao mesmo tempo, nos deixar afetar pelo que estamos vendo, porque é um dano moral à nossa humanidade coletiva e individual não registrar a crueldade, bem como a força das pessoas — como seus colegas — cujos testemunhos você compartilha. E, ao mesmo tempo, temos que continuar.

THH: O que não ficou claro naquele vídeo é que eu acabara de ler testemunho após testemunho do Gaza Medic Voices. Então, mensagens que eu e meus colegas próximos tínhamos recebido nas últimas semanas de nossos colegas em Gaza, que se tornaram cada vez mais desesperadas.

Eu os estava lendo em sequência. E aquela última mensagem, a dos médicos da Al-Shifa dizendo: "Não sabemos se vamos sobreviver à noite", eu havia recebido uma hora antes da vigília. Recebemos essas mensagens diretamente e você nos sentimos desesperados já que estamos longe e não podemos ajudar. São pessoas que você respeita, pessoas em quem você se espelha.

O fato de que eles estavam sendo incriminados, alvejados e talvez não sobrevivessem era realmente insuportável. Éramos um grupo, os colegas com quem vou à Gaza, que estavam em outro lugar, naquela vigília. Todos nós estávamos chorando. Acho que é esse sentimento de desespero coletivo e a impotência de como deixamos isso acontecer? E esse desejo profundo de protegê-los, sabendo o que eles representam e o quanto os respeitamos como colegas e seres humanos. Acho que foi uma combinação da injustiça insuportável, da impotência em tentar proteger pessoas que você respeita e admira tanto. E a preparação, fazendo parte dessa jornada desde o início.

MT: Ontem, vi um vídeo de dois meninos deitados nos escombros de sua casa. Parecia que eles estavam dormindo. Dei um zoom e vi que um de seus globos oculares estava fora do lugar. Diariamente, encontro várias imagens ou vídeos como esse, são as piores coisas que já vi em minha vida.

Você foi cofundador do Gaza Medic Voices, que fornece depoimentos em primeira pessoa de profissionais da saúde em Gaza. Você poderia falar sobre o poder do testemunho e do depoimento e seus limites?

THH: Eu tive uma abordagem muito diferente para os primeiros seis meses disso. Protegi todos ao meu redor, incluindo pessoas do outro lado das entrevistas que dei, das imagens gráficas, pois achei as imagens muito desumanas. Um globo ocular, um globo ocular, não deveria estar fora de seu encaixe. Isso é algo que você vê em um filme de terror ou em um pesadelo. Um homem não deve chegar a um pronto-socorro com amputações traumáticas triplas. O rosto de uma criança não deve ser explodido. Não deveríamos ter massa encefálica exposta — que, na verdade, é uma pergunta feita para todas as crianças que chegam com lesão cerebral traumática. "Massa encefálica exposta?" É isso que eles perguntam. Porque se a massa encefálica estiver exposta, nós não ressuscitamos. Essa é literalmente uma pergunta de triagem para toda criança que sofre um traumatismo craniano, porque não temos os recursos para uma criança cujo prognóstico é ruim. Eles podem ter sobrevivido, mas simplesmente não temos os recursos. Então, "massa encefálica exposta", sim ou não? Não, nós não ressuscitamos.

É tão horrível e explícito. Mas é a realidade. Queimaduras de noventa por cento do corpo não é algo que deveríamos ver. Crianças cuja carne inteira foi queimada, que não podem receber anestesia porque não temos acesso a ela. Esta exposição é desumana.

Minha estratégia nos primeiros seis meses foi não descrever em detalhes, não compartilhar imagens de vídeo. Você viu o Gaza Medic Voices. Nunca compartilhamos coisas muito explícitas. De fato, uma das discussões que temos constantemente com todas as filmagens e fotos que recebemos é que gostaríamos que o mundo pudesse ver, mas não conseguimos mostrar a todos. Eu e a outra pessoa em Gaza, a Medic Voices, estamos trabalhando em Gaza há anos. Essas pessoas são frequentemente colegas muito queridos e amados—

MT: Eles são seres humanos. Eles merecem dignidade, tanto na morte quanto na vida.

THH: Sim. E quando você está muito longe de algo, a desumanização se torna menos difícil. Nunca deveria ser fácil desumanizar alguém. Mas, para nós, é ainda mais pessoal, porque temos todos esses contatos na área. Tudo isso para dizer que minha abordagem tem sido não mostrar as imagens fortes, não compartilhar os vídeos que vejo e que me dão náuseas. Compartilho as citações, as entrevistas e as declarações das organizações.

Mas cheguei a um ponto em que não sei o que mais será necessário para despertar a consciência das pessoas. Não sei se eles não estão vendo as mesmas coisas que eu, ou se eles as veem e apenas não se importam. E eu realmente espero que não seja a última opção, porque isso implica um nível de maldade que não quero atribuir a uma proporção tão grande do mundo.

Então decidi: “Olha, vou te dar uma chance.” Aqui estão os vídeos. Faça algo. Como a grande mídia se recusou a dar testemunho, ficamos deixados com o fardo de testemunhar. Nós, pessoas que não têm experiência em jornalismo ou que não são pagas para esclarecer o que está acontecendo, ficamos com esse fardo.

Há muitas pessoas nas redes sociais, a maioria das quais não é treinada nem paga para fazer o que estão fazendo, que tomaram para si a responsabilidade de testemunhar e compartilhar depoimentos, porque é muito óbvio que isso faz parte da estratégia israelense desde o início — por meio de cortes de comunicação, impedindo a entrada de jornalistas internacionais, por meio do direcionamento direto a jornalistas locais — para apagar as luzes sobre o que está acontecendo em Gaza, para que Israel possa fazer as coisas no escuro. E a mídia internacional, que possuem acesso às mesmas informações a que você e eu, muitas negligenciaram completamente sua responsabilidade de compartilhar o que está acontecendo no local.

MT: Foi chocante para mim, perceber quantas pessoas têm valores morais ou acreditam na justiça apenas de forma abstrata e que, de fato, não defendem nada, não vivem para nada, além de si mesmas. Não sei o que fazer com o mundo em que me encontrei, especialmente na medicina.

THH: Eu me debati com essa mesma constatação. Tem sido chocante ver como os direitos humanos universais e, especialmente, o direito à saúde para nós da medicina, não são universais de forma alguma. Observar nossas sociedades médicas profissionais, nossos hospitais e nossas instituições universitárias excluírem os palestinos em sua aplicação "universal" de valores foi um alerta repugnante. Isso alienou tantos de seus membros.

Por isso, muitos de nós não podemos mais respeitar o que essas instituições afirmam defender, nem ter estima por seus líderes. Dentro do mundo pediátrico, instituições têm silenciado ativamente médicos que defendem a proteção de crianças palestinas, em um momento em que crianças de Gaza estão sendo mortas, mutiladas e órfãs a uma taxa sem precedentes, e ONGs internacionais estão anunciando que Gaza é o lugar mais perigoso do mundo para uma criança estar.

MT: De certa forma, parece que a vida ficou mais clara. E essa clareza é muito orientadora, de uma forma que perturba o mundo em que estamos. Mas isso é uma acusação daquele mundo.

THH: As coisas estão muito mais claras para mim agora. Acho que antes eu tinha muita ansiedade com relação às próximas etapas. E agora há um nível de confiança no que estou vivendo que é novo e diferente.

As pessoas continuam me perguntando: "Você não tinha medo de ir para Gaza? E se você fosse morto? É muito perigoso". Eu aceitava muito bem o fato de que poderia ser morto. Mas observar a injustiça de longe era pior que esse risco. Qual é o sentido de viver se eu não estiver defendendo os princípios e valores em que acredito? Há coisas que importam muito mais do que minha segurança pessoal ou carreira profissional, como fazer tudo o que estiver ao meu alcance para impedir um genocídio.

Mary Turfah é escritora e estudante de medicina.

Foto: NovaraMedia

Available in
EnglishSpanishFrenchPortuguese (Brazil)ArabicGermanItalian (Standard)
Author
Mary Turfah
Translators
Jan Furtado Saar, Isabel Biondo and ProZ Pro Bono
Date
17.07.2024
Source
Original article🔗
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