Enquanto jornalistas do mundo todo tomavam ações coletivas no início de setembro para exigir que Israel parasse de matar seus colegas, e-mails acessados pela Novara Media mostram que a BBC e representantes sindicais desencorajaram a participação de seus próprios trabalhadores em vigília por profissionais palestinos. Isso tudo apesar do evento ser organizado por uma filial do próprio sindicato.
Em 27 de agosto, membros da filial londrina de freelancers no sindicato britânico de jornalistas (NUJ), que representa mais de três mil pessoas, realizaram uma vigília em frente à Downing Street, a residência oficial e gabinete do primeiro-ministro do Reino Unido. O ato foi em homenagem aos jornalistas de Gaza mortos por Israel desde 7 de outubro de 2023: ao menos 247 profissionais, segundo o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). Entre as pessoas presentes estava Sangita Myska, ex-apresentadora da rádio LBC, suspensa logo após uma entrevista conturbada com o porta-voz do governo israelense, Avi Hyman.
Os membros da filial também entregaram uma carta ao primeiro-ministro pedindo que o governo apoie uma investigação do Tribunal Penal Internacional (TPI) aos ataques de Israel contra profissionais da imprensa. Em 2022, escritórios de advocacia do Reino Unido, associações internacionais de jornalismo e grupos de direitos humanos apresentaram conjuntamente uma queixa-crime ao TPI, pedindo ao tribunal que averiguasse a investida israelense contra jornalistas na Palestina, dos quais pelo menos 46 foram mortos por Israel entre 2000 e 2022.
No entanto, ao invés de estimular o comparecimento de membros à manifestação do próprio sindicato, representantes sindicais na BBC fizeram o oposto. Um e-mail recebido por vários membros do sindicato na emissora lembrou os colegas de que "os trabalhadores da BBC têm restrições em relação a eventos que possam ter um viés político" e os incentivou a "seguir as diretrizes da emissora".
A diretriz editorial da BBC sobre imparcialidade informa que: "Funcionários da BBC podem participar de algumas manifestações, passeatas ou reuniões – incluindo comícios sindicais – em nome do grupo da emissora ao qual pertencem, mas não representando a organização como um todo."
Segundo a mesma diretriz: “pessoas que trabalham com atualidades e jornalismo noticioso (em todos os departamentos), assim como aquelas em cargos sêniores de liderança, não devem participar de manifestações sociais ou de reuniões sobre questões controversas, político-partidárias ou relacionadas a políticas públicas."
Em novembro de 2023, dezenas de trabalhadores judeus, incluindo aqueles que trabalham com atualidades e jornalismo noticioso, desobedeceram essa diretriz para participar de uma manifestação organizada por grupos pró-Israel e anunciada como uma “passeata contra o antissemitismo”.
Um porta-voz do sindicato negou com veemência à Novara Media ter desencorajado os membros na BBC de comparecer à recente vigília pelos jornalistas mortos de Gaza. Em resposta por escrito, foi dito que "a orientação enviada aos representantes (...) foi concebida para garantir que trabalhadores da BBC não violassem de maneira inadivertida as regras da emissora sobre imparcialidade, já que fazer isso poderia deixar essas pessoas vulneráveis no trabalho".
Um porta-voz da BBC disse que não tinha conhecimento de diretrizes específicas da emissora para esta ou em qualquer outra vigília.
Um jornalista sênior e também apresentador da BBC disse à Novara Media que estava muito preocupado com a recusa do representante sindical em apoiar profissionais que desejam homenagear seus colegas palestinos mortos. Na opinião dele, o e-mail é um retrato da passividade do sindicato em relação à Gaza.
Ainda de acordo com ele, "o sindicato não apoiou o comparecimento de seus membros na BBC que atuam em jornalismo noticioso à vigília promovida pela filial londrina de freelancers em nome de jornalistas de Gaza assassinados”. "Ao que tudo indica, demonstrar solidariedade a jornalistas, cujos trabalhos e fontes usamos como referência para nossas próprias matérias e reportagens, poderia infringir nossas regras de imparcialidade.
Quantos colegas palestinos precisarão morrer ainda para que o sindicato diga à BBC que defender o direito à proteção dos profissionais enquanto trabalham não é algo político, mas é a base do jornalismo? São valores como verdade, transparência e responsabilidade que a própria empresa diz seguir."
O jornalista acrescentou que o e-mail é uma atitude típica do sindicato, que evita se posicionar sobre membros que fazem a cobertura do genocídio em Gaza. "O sindicato britânico de jornalistas tem se comportado de maneira lamentável sobre Gaza. (…) Representantes sindicais têm agido de maneira covarde. Eles têm ciência de matérias proibidas nas redações e sobre o viés pró-Israel da BBC... E não fazem absolutamente nada.
Fazemos parte do sindicato e pagamos nossas contribuições. O que eles estão fazendo pelos direitos de seus jornalistas de informar a verdade?" Ele ainda relatou que "muitos membros estão questionando sua permanência no sindicato diante de tanta ineficiência sobre o assunto".
O sindicato britânico de jornalistas já publicou diversas declarações contundentes em solidariedade aos jornalistas de Gaza desde o início do genocídio, tendo recentemente condenado o “ataque horrendo” de Israel que matou cinco jornalistas e profissionais de imprensa da Al Jazeera em agosto. Mas, fora isso, o órgão tem evitado intervir nas disputas entre jornalistas e veículos de comunicação que, segundo alguns trabalhadores, não cobrem Gaza adequadamente.
A BBC tem grande influência dentro do sindicato. Não só por sua condição de emissora pública, mas também por ser a segunda maior empregadora de membros do órgão, ficando atrás apenas da Reach PLC, conglomerado midiático detentor de mais de 120 veículos, como os jornais Mirror e Express. As tensões sobre a cobertura da BBC em Gaza e a reação do sindicato a isso se acirraram em abril, durante a reunião bianual de representantes nacionais do sindicato.
Um debate acalorado surgiu sobre a petição 102, apresentada pela filial londrina de revistas e que mencionava uma carta de 2024 assinada por 101 trabalhadores da BBC. Na carta, eles acusavam a emissora de dar cobertura favorável a Israel em suas reportagens sobre Gaza. A petição instava o sindicato a "elaborar uma resposta coletiva ao declínio dos padrões editoriais na cobertura" de Gaza.
No entanto, representantes da BBC na conferência argumentaram que a petição violava as regras do sindicato. Com isso, eles conseguiram forçar emendas antes mesmo que o texto fosse discutido. Além disso, essas mesmas pessoas acusaram a petição de atacar a integridade dos jornalistas da BBC, alegando que sua aprovação poderia colocar a vida dos repórteres em perigo. Os representantes da BBC também perguntaram se os colegas achavam que o mundo seria melhor sem o jornalismo da emissora e insultaram aqueles favoráveis à petição.
Uma fonte no sindicato presente na conferência falou com a Novara Media sob condição de anonimato: "Os representantes da BBC na conferência mais pareciam assessoria de imprensa da emissora, e não sindicalistas. Confundiram a posição da alta cúpula da BBC com a de representantes sindicais, cujo trabalho deveria ser o de enfrentar a diretoria."
Questionada se trabalhadores da BBC teriam permissão para participar de futuras vigílias para jornalistas, a emissora não respondeu.
No dia 1º de setembro, jornalistas de mais de 250 veículos em 50 países se uniram para alterar as primeiras páginas de seus jornais impressos. A ação – apoiada por nomes como o jornal britânico The Independent e a rádio estadunidense NPR – exigia que Israel parasse de matar jornalistas em Gaza.
Procurada, a filial londrina de freelancers no sindicato não quis se pronunciar.
Rivkah Brown atua como editora de pautas e repórter na Novara Media.