A pandemia de Covid-19 é uma crise como nenhuma outra. Ao contrário da crise financeira de 2007-08, não podemos culpar os bancos ou os mercados financeiros. Também não podemos atribuir a responsabilidade ao keynesianismo, como foi feito nos anos 1970. Em contraste, a pandemia nos leva a avaliar os problemas estruturais inerentes ao sistema global de garantia do bem-estar. Gente de todo o espectro político pode ver tanto o despreparo de nossa sociedade quanto sua resposta inadequada à epidemia. Defendemos aqui que nossa incapacidade de lidar com a crise atual expõe fragilidades nos próprios fundamentos do paradigma econômico dominante. A fim de enriquecer nossa compreensão sobre como as economias funcionam, para que possamos construir uma economia mais resiliente e justa, é necessário mudar esse paradigma.
Desdobramentos teóricos no campo da economia, após o período da Economia Política, levaram a uma ausência de prontidão, em decorrência da desvinculação de aspectos sociais mais amplos relacionados, por exemplo, à natureza, à ética e ao poder. Gradualmente foram subtraídos desse campo teórico os contextos sociais e históricos da análise econômica, passando-se a ver o comportamento social através da lente do homo economicus, e os resultados macroeconômicos através da lente técnica de soluções de equilíbrio de modelos matemáticos. Esses desdobramentos, procurando ser apolíticos e a-históricos, foram construídos sobre pressupostos positivistas europeus de uma verdade objetiva universal.
Neste processo, os economistas se mostraram cada vez mais confortáveis em compreender as interações humanas essencialmente através do mercado. Gradualmente começaram a pensar em si mesmos como modeladores, "simplificando" a realidade através de modelos e invocando os pressupostos necessários em relação ao equilíbrio do mercado, agentes representativos e otimização; uma tecnicização da disciplina que foi acompanhada também por um uso crescente da econometria.
O quadro final é uma disciplina marcada pelo papel influente de uma estrutura de equilíbrio geral, que assume condições como a concorrência perfeita, e vê o Estado como uma instituição de apoio aos mercados. Neste ponto, os desvios das premissas básicas que sustentam o equilíbrio de mercado são considerados "imperfeições" ou "externalidades", mantendo assim uma forma de fundamentalismo de mercado em seu núcleo.
Com esse pano de fundo, a disciplina está lutando para lidar com a natureza transversal da crise atual. Os economistas só conseguem entender e teorizar a Covid-19 como um choque externo, refletindo sua visão da economia como algo separado do resto da sociedade e de externalidades que impedem o funcionamento eficaz dos mercados. Naturalmente, as recomendações políticas que emanam desta estrutura teórica giram em grande parte em torno da solução de falhas do mercado e de incentivar os indivíduos a se comportarem racionalmente. Agora que a economia está parcialmente fechada e os mecanismos "normais" de mercado são colocados em espera, talvez não seja surpreendente que a disciplina tenha dificuldades para propor soluções políticas eficazes.
As implicações destas considerações em relação aos aspectos da disciplina não se limitam a moldar nossa compreensão da ciência econômica - elas também têm um forte impacto sobre a política. O viés da teoria econômica, sobre o mercado ser um alocador eficiente de recursos, levou a um enfraquecimento das estruturas das economias e de suas capacidades de se engajar no provisionamento social em todo o mundo, tanto por causa da difamação do "Estado" junto com uma celebração da eficiência do mercado, quanto por causa da promoção da austeridade que levou à redução do déficit do governo, cortes nos gastos e tentativas de desmantelar os sistemas de bem-estar social em todo o mundo.
Como a eficiência se tornou um objetivo público central, isso implicou na eliminação de quaisquer recursos não utilizados para garantir que todo o capital fosse colocado em uso eficiente. O foco na eficiência não só levou à baixa remuneração monetária de trabalhadores essenciais, como enfermeiros, mas também a procedimentos "just in time" e "lean work"* que justificam décadas de sub-investimento sistemático no planejamento e na capacidade de crescimento. Vemos isso, por exemplo, na redução do número total de leitos hospitalares, tal como no caso dos leitos do National Health Service (Serviço Nacional de Saúde) na Inglaterra, que caíram em mais da metade durante o período de 1987 a 2017.
A ideia do Estado como esse potencial Leviatã que precisa ser contido juntamente com uma abordagem "eficiente" da organização da sociedade gerou fragilidades preocupantes, desigualdades e vulnerabilidades, deixando-nos completamente despreparados e incapazes de responder efetivamente à pandemia. Se pensássemos em estruturar nossa sociedade de acordo com as diretrizes de resiliência e robustez, ao invés da eficiência, a capacidade de preparação de nossa sociedade frente a uma pandemia seria muito superior.
No lado técnico, a economia passou por uma guinada empírica através de experimentos randomizados e quase-experimentações, o que tem sido utilizado para justificar um aumento na relevância política e no impacto científico da economia. Com o surgimento dos chamados RCTs**, vimos também um aumento da chamada política baseada em evidências - uma discussão da maior importância para compreender o papel das evidências na atual resposta política à pandemia, particularmente à luz da resposta do Reino Unido.
A questão é a de tomar decisões baseadas em experimentos comportamentais em contextos totalmente diferentes e usar evidências e conhecimentos de modelagem mais amplamente como um guia quase inquestionável para políticas, apesar do fato de que qualquer modelo representará apenas uma perspectiva particular. No primeiro caso, vemos o Reino Unido confiando em experimentos randomizados para estender o apoio de destacamentos militares ao NHS tendo em vista que um fechamento total da economia precocemente pode causar efeitos psicológicos negativos e um risco de desmoralização de pessoas em caso de um lockdownprolongado. No segundo caso, temos o modelo do Imperial College London (ICL) que fornece provas já no final de janeiro para apoiar o distanciamento social geral, ao mesmo tempo em que se concentra na mortalidade da Covid-19 e não avalia outras implicações sanitárias e não sanitárias da pandemia. Dessa forma, não lidando com custos econômicos e sociais mais amplos de várias ações.
A resposta do Reino Unido demonstra tanto a influência excessiva de uma expertise particular na política quanto a influência desproporcional dos modelos. Ter uma equipe limitada de especialistas significa que perspectivas importantes serão inevitavelmente desprezadas. Dado que "o parecer do coronavírus é político", formar um grupo consultivo científico mais diversificado seria um primeiro passo para ampliar as evidências disponíveis para o governo e tornar explícitas as tensões e os juízos de valor inerentes a qualquer resposta. De fato, isso levaria a um maior escrutínio e compreensão públicos, o que seria saudável para o debate democrático.
Para que a profissão econômica permaneça relevante, ela precisa retornar às suas raízes e trazer a economia política de volta para "dentro". Em vez de estar centrada no estudo da alocação de recursos escassos, a economia heterodoxa se preocupa com o estudo da produção e distribuição do excedente econômico, incluindo o papel das relações de poder na determinação das relações econômicas, o estudo dos sistemas econômicos além das relações de mercado, e o emprego de teorias centradas nestas questões. Esta visão alternativa e abordagem da economia pode nos ajudar a compreender as causas e consequências da pandemia de Covid-19 de formas cruciais.
Em primeiro lugar, dado que a economia heterodoxa se afasta dos agentes de otimização racional e do individualismo metodológico do mainstream, ela nos permite compreender as desigualdades estruturais que a pandemia expôs e exacerbou. Aqui são essenciais os insights das economistas feministas, que há muito apontam para a importância de compreender tanto a reprodução social quanto as relações sociais entre os atores. Como a propagação do vírus entre os indivíduos levou a medidas como o fechamento de escolas, a sociedade foi forçada a lidar com a importância da reprodução social como uma atividade central que mantém a economia funcionando. Além das desigualdades de gênero, a pandemia também expôs desigualdades de acordo com a classe e raça.
Em segundo lugar, a economia heterodoxa, com seu foco nas estruturas de produção e reprodução na sociedade, leva a uma melhor compreensão das economias considerando suas determinações históricas e mecanismos causais não limitados à esfera do mercado. Uma implicação desta visão é que não podemos esperar as mesmas respostas comportamentais ou resultados sociais em diferentes comunidades sociais, dadas as diferenças na história, cultura e organização econômica. Em vez disso, a perspectiva nos obriga a considerar como as respostas à pandemia são mediadas por fatores institucionais, sociais e econômicos.
Situar a economia na sociedade permite a exploração das complexidades entre a economia e a natureza, por exemplo, por pesquisadores de sistemas alimentares ou por economistas ecológicos. De fato, para estudiosos com uma compreensão mais ampla de como a produção afeta os sistemas alimentares e ecológicos, o surgimento e a disseminação do Covid-19 foi uma surpresa menor. Tal perspectiva contrasta fortemente com a visão da pandemia como um choque exógeno, mostrando até que ponto a produção capitalista está entrelaçada com a natureza e não pode ser vista como separada - uma lição importante também para muitos economistas heterodoxos.
Terceiro, os economistas heterodoxos colocam os conflitos distributivos no centro da análise da economia, o que ajuda a explicar que os baixos salários entre os trabalhadores essenciais são determinados pela política, em vez de serem um reflexo de um preço determinado pelo mercado. Como a pandemia forçou os formuladores de políticas a considerar a saúde pública como uma questão social mais ampla, bem como a inclusão de abrigos para os sem-teto, licença médica remunerada e cobertura universal de saúde, precisamos de uma estrutura que nos permita ver os aspectos estruturais duradouros destes problemas socioeconômicos. Os conflitos distributivos também podem ser vistos como tendências polarizadoras dentro da economia global e as novas vulnerabilidades decorrentes da integração econômica mundial, que mostram tanto como as cadeias globais de valor são hierárquicas e desequilibradas com núcleos centrais e restrições às economias em desenvolvimento devido a sua posição subordinada ou dependente na economia global.
Finalmente, precisamos ir além de uma simples dicotomia estado-mercado (e a visão simplista de que os economistas heterodoxos querem "mais" do estado e a corrente dominante quer "menos"). O papel do Estado na economia é muito mais amplo do que apenas corrigir falhas de mercado, deveríamos ter uma compreensão mais ampla das economias como ambientes não mercadológicos. Dentro desta visão, existe uma economia pública composta de múltiplos sistemas econômicos, na qual o setor público não é regido pelos mesmos princípios e axiomas que os do mercado. Esta visão nos leva a considerar as vantagens de um sistema de escolha e de financiamento coletivo que produz bens, serviços, benefícios e proteção voltados para o bem-estar da sociedade como um todo.
A natureza da disciplina torna difícil para os economistas compreender a economia de uma forma abrangente e realista. A visão dos economistas sobre a Covid-19 como um choque externo coloca problemas para a capacidade da ciência econômica de lidar com as crises interconectadas que esta pandemia representa. Nesta conjuntura, é mais importante do que nunca abrir o debate sobre como entender e enfrentar estas crises, com o objetivo de tornar nossas economias mais resilientes e justas, ao invés de simplesmente mais "eficientes". É hora de rever a concepção errônea da economia como uma economia de equilíbrio e essa obsessão com formas estreitas de evidências e modelagens.
Nós economistas também precisamos ser mais explícitos sobre o aspecto político e ideológico de nosso trabalho acadêmico. As análises que são mais preocupadas com conflitos sociais e interesses de grupos distintos poderiam abrir o caminho para um debate público mais amplo e informativo sobre a economia. Para que tal debate seja eficaz, há também a necessidade de rever o papel da chamada política baseada em evidências na economia e nas políticas públicas. A pandemia expõe o fato de que os dados e evidências nunca são totalmente neutros.
Nos próximos meses e anos, haverá uma batalha para definir a narrativa da pandemia. Precisamos de uma explicação da crise que seja capaz de ver a economia como mais do que apenas mercados e sim como algo integrado à sociedade. Ela deve ser capaz de ligar as causas e consequências da pandemia aos nossos sistemas de produção e distribuição. Uma mudança fundamental na narrativa econômica predominante é necessária para uma sociedade mais justa, sólida e democrática.
\ Just in Timee *Lean work: metodologias do mundo do trabalho e de negócios que pregam redução de custos, desperdícios e de tempos de fluxo dentro dos sistemas de produção e trabalho. [Nota do Tradutor]
\* Randomized Control Trials* (RCTs): são os chamados “ensaios randomizados controlados”, um tipo de experimento científicoque visa reduzir fontes de vieses na seleção de grupos para testagem de novos tratamentos e garantir a eficiência.
Carolina Alves é pesquisadora da Joan Robinson Fellowship em Economia Heterodoxa, na Universidade de Cambridge.
Ingrid Harvold Kvangraven é Professora em Desenvolvimento Internacional na Universidade de York.
Foto: André Mellagi