Nota editorial: O movimento está atualmente aumentando o ímpeto das suas ações após um hiato durante a pandemia de Covid-19 e uma menor frequência de novas ocupações no início da presidência de Bolsonaro. Diante de múltiplos desafios, impulsionado por antigas desigualdades que só foram exacerbadas pelo presidente Bolsonaro e a pandemia, o movimento adotou novas linhas políticas e agora se prepara para mais ocupações para enfrentar a crise atual.
No início de outubro, três novas ocupações foram realizadas pelo MST nos estados de São Paulo, Bahia e Rio Grande do Norte em nome da reforma agrária popular. E vêm mais ocupações, conta Alexandre Conceição, da coordenação nacional do MST: esse processo “poderá ser muito massivo pelas condições políticas e da crise que nós temos, mas também pela incompetência do governo de não atender as necessidades do povo brasileiro na economia, geração de emprego e renda”. Conceição conversou com Nanci Pittelkow sobre esse momento, em entrevista ao De Olho nos Ruralistas.
De Olho nos Ruralistas: Acompanhamos nos últimos dias a realização de novas ocupações pelo MST. Em que cenário essas ocupações acontecem? Há previsão para novas ocupações?
Alexandre Conceição: Durante a pandemia nós tiramos uma definição, como MST, de que seguiríamos as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Para não disseminar o vírus e cuidar da saúde e da preservação da vida, adotamos algumas linhas políticas.
Primeiro: a resistência e o isolamento produtivo. A resistência é resistir aos despejos que estavam vindo com muita violência por parte do Bolsonaro e da turma dele; a resistência ativa é resistir nos territórios. E o produtivo é seguir produzindo alimentos mesmo com todo o desmonte que o Bolsonaro fez no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), nas políticas públicas e no orçamento.
O segundo elemento da nossa orientação política é a solidariedade, produzir alimentos, porque as pessoas começaram a passar fome no Brasil, voltaram a passar fome. A gente já tinha feito essa leitura um ano e meio atrás, de que a fome já tinha voltado no Brasil e a pandemia a agravaria muito mais. Portanto, os nossos territórios deveriam ser de construção de solidariedade, ou seja, produzir alimentos.
Terceiro, é justamente denunciar o latifúndio, a violência contra as mulheres, contra as crianças e anciões, que inclusive cresceu durante a pandemia, a violência racial… ou seja, fazer denúncia contra a violência. Nesse sentido, no isolamento produtivo e na pandemia, nós não podíamos ocupar por uma definição política nossa, e não por causa das baboseiras que Bolsonaro fala.
Sem terra monta acampamento em fazenda do Mirante do Paranapanema. (Foto: MST)
A ocupação é fruto de um povo que está na sua região e sente a necessidade de lutar pela terra. O MST ajuda a organizar esse ato político, de identificar o latifúndio improdutivo. Nós, do MST, nunca abandonamos a nossa estratégia fundamental que é a ocupação do latifúndio, porque, enquanto esse país tiver concentração de terra, de riqueza e de renda, nós não teremos uma democracia verdadeira. Portanto, para combater o governo Bolsonaro, combater a inflação dos alimentos e a fome, nós precisávamos resistir nos territórios e ao, mesmo tempo, seguir as orientações de não aglomeração e, portanto, esperar o melhor momento para a retomada das ocupações. E, com o processo da vacinação, esse momento está chegando.
Nós temos uma crise social muito grande: mais de 20 milhões de pessoas não têm o que comer; mais de 60 milhões de pessoas não sabem se vão acordar amanhã e tomar um copo de café; e são milhões de pessoas que não têm um teto. E a reforma agrária e a ocupação de terra resolvem de imediato o teto e resolvem de imediato a alimentação. Acreditamos que o processo de ocupação poderá ser, no próximo período, muito massivo pelas condições políticas e da crise que nós temos, mas também pela incompetência do governo de não atender as necessidades do povo brasileiro no tocante à economia, geração de emprego e renda.
De Olho nos Ruralistas: Sabemos que mesmo com decisões contrárias, houve várias reintegrações de posse. O MST prevê o aumento das reintegrações?
Famílias fizeram a retomada de área no Seridó, Rio Grande do Norte. (Foto: MST)
Alexandre Conceição: Nós estamos vendo um acirramento da luta no campo. De um lado o latifúndio velho e atrasado tentando roubar as terras públicas, com a grilagem e o chamado “Titula Brasil”. Esse é, na verdade, um programa do governo junto com latifundiários para roubar as terras públicas e permitir grilagem de terra. Do outro lado, o agronegócio ganhando milhões de dólares com o dólar nas alturas, na produção e monocultivo de soja e de carne para exportação, e, sobretudo, uma produção extremamente envenenada. Então, a disputa do território vai se acirrar pela crise social e pela organização que os movimentos do campo terão de fazer.
Primeiro para resistir no território já conquistado e, segundo, para reconfigurar e reconquistar territórios. Não podemos permitir que as terras públicas que, segundo a nossa Constituição, são para a reforma agrária, sejam entregues para latifundiários bandidos, como o Bolsonaro quer. O acirramento da luta política tende a ser maior entre os pobres do campo, que lutarão para ter acesso à terra, e o latifúndio, o agronegócio e o governo Bolsonaro. De um lado tem esses três pesos e, do outro lado, tem a ampla maioria e a sociedade, que já compreenderam e defendem que a reforma agrária é urgente e necessária para que a gente possa combater a inflação, ter um processo de solidariedade e, ao mesmo tempo, gerar emprego e renda de imediato.
A sociedade compreendeu durante a pandemia que o papel do MST — inclusive ganhamos prêmios internacionais — é o de não só disputar o território, mas preservar esse território e ao mesmo tempo colocá-lo a serviço da sociedade brasileira, produzindo alimentos. O que é diferente do que o latifúndio e o agronegócio querem. Querem para especular, para manter o povo escravizado e passando fome. Não tenho dúvida que vamos acompanhar um embate muito grande no próximo período na disputa do território — e a sociedade está conosco e tem compreendido que é necessário fazer a reforma agrária com esse viés da produção do alimento saudável, do alimento agroecológico, que protege a vida e ao mesmo tempo protege a saúde humana de cada um que consome esse produto.
De Olho nos Ruralistas: Com a proximidade do fim da pandemia, é possível perceber uma maior disposição das pessoas do campo para a luta?
Famílias ocupam latifúndio de 600 hectares e planejam a produção de alimentos saudáveis. (Foto: MST)
Alexandre Conceição: Sem dúvida. Esse processo de redução nas ocupações vem desde o governo Dilma, quando diminuiu a criação de assentamentos, teve a crise econômica e depois veio o impeachment da presidenta Dilma, na verdade, o golpe. E o golpe constituiu uma ponte para o abismo no campo, que no governo Temer foi justamente sucatear as políticas públicas. Primeiro eles acabaram com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), acabaram com a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, a da Igualdade Racial, ou seja, foram destruindo a política social que garante a sobrevivência e a manutenção do emprego da renda. Veja, os camponeses também fazem sua leitura de conjuntura. Se estão diminuindo as políticas públicas, não vou ocupar, vão esperar o melhor momento.
Esse momento está complicado agora, tem mais peso político, mas ao mesmo tempo a situação e a crise financeira, econômica e social no país se agrava cada dia mais. Em vez de as pessoas correrem atrás de um caminhão de lixo, irem atrás de um frigorífico pegar um pedaço de osso, compram um pé de galinha por R$ 8 o quilo, eles vão preferir ocupar a terra. Porque na terra eles pode produzir a sua galinha, o próprio gado, mandioca, macaxeira, milho. Portanto, a gente pode fazer um amplo debate com a sociedade de que é possível fazer o combate direto ao latifúndio e ao governo Bolsonaro.
Nanci Pittelkow é jornalista