Migration

Mortes de migrantes na costa da Espanha têm pior aumento

Devido às políticas fronteiriças apoiadas pela UE, em 2024, um número recorde de 10.457 pessoas morreu ou desapareceu tentando chegar à Espanha pelo mar.
Pelo menos 10.457 migrantes morreram tentando chegar ao território da Espanha em 2024. A atuação repressiva da União Europeia nas travessias do Mediterrâneo tem desviado migrantes africanos em direção à rota do Atlântico, que é ainda mais perigosa, convertendo o oceano em uma sepultura coletiva.

O ano 2024 acabou, mas não antes de atingir uma alta histórica no número de pessoas mortas nas fronteiras da Espanha. De acordo com dados da ONG Caminando Fronteras, pelo menos 10.457 pessoas morreram ou desapareceram nos últimos doze meses tentando chegar em solo espanhol por meio de rotas marítimas irregulares –– um aumento de 58 por cento desde 2023. A grande maioria dessas vítimas (9.757) estava tentando alcançar as Ilhas Canárias, da Espanha, na costa oeste da África –– enquanto a ação repressiva patrocinada pela União Europeia (UE) no mar Mediterrâneo e a guerra em Mali forçaram dezenas de milhares de pessoas a arriscar suas vidas em longas rotas traiçoeiras no oceano Atlântico.

Ao viajar principalmente em tradicionais barcos de pesca de madeira, conhecidos como cayucos, os migrantes que tomam essas rotas podem passar entre quatro dias e duas semanas no oceano. Muitas vezes, essas viagens são ainda dificultadas devido a frequentes falhas do motor nessas embarcações. "O barco ficou à deriva; fomos levados pelas ondas", relata T.D., um maliano sobrevivente de uma dessas tragédias. Quando a comida e a água a bordo acabaram, "vidas foram extinguidas uma após a outra", conta T.D. ao Caminando Fronteras. "Eu pensei que seria o próximo, mas foi o meu irmão", ele continua. "Eu disse a ele para não beber a água do mar e aguentar firme, mas ele continuou a beber e vomitou em seguida e, depois disso, se sentou e parou de falar. Eu não consegui lançar o corpo dele no mar; outras pessoas fizeram isso no meu lugar."

Antes de serem resgatados, T.D. e outros sobreviventes foram forçados a testemunhar a morte de uma família inteira: "O pai acabou se jogando no mar depois de entregar o último de seus filhos à água. Estávamos sem forças para detê-lo."

Entre os milhares de outros que também perderam suas vidas, estavam as cerca de 200 pessoas que viajaram em um cayuco de Mbour, Senegal, em meados de agosto. Pescadores senegaleses encontraram o barco mais de um mês depois a cerca de 80 km da costa de Dacar. Encontraram 30 corpos em estado avançado de decomposição, os demais passageiros estavam desaparecidos, presumivelmente mortos. As vítimas mais recentes foram as seis pessoas não identificadas enterradas em El Hierro, a menor da Ilhas Canárias, em 13 de dezembro, que morreram de hipotermia na travessia de mais de 643 km da Mauritânia.

"Enquanto o número de vidas perdidas aumenta sem cessar, o Estado espanhol continua buscando políticas centradas no controle de migração, com o apoio da Europa, e negando seus impactos sobre o direito à vida", insiste o relatório anual da Caminando Fronteras. "Essas políticas (fronteiriças) se baseiam em desumanizar e criminalizar as pessoas migrantes, deixando-as vulneráveis a violações de direitos humanos e tornando suas vidas descartáveis."

Nesse respeito, o fenômeno de mortes em massa nas fronteiras da Espanha não pode ser entendido simplesmente como uma série de tragédias isoladas. Aqueles que perderam suas vidas são vítimas do regime de fronteira brutal da Fortaleza Europa, que para desincentivar a entrada de migrantes e de refugiados do Sul Global, os força a se expor a riscos cada vez mais perigosos. Mas a onda histórica de migração para as Canárias nos últimos 18 meses também indica a eficácia limitada dessas políticas de contenção –– que, enquanto condenam tanta gente ao sofrimento e à morte, apenas fingem lidar com as causas mais profundas que levam as pessoas a arriscar uma travessia como essa.

Terceirização da repressão

Esse foi um ponto que Juan Carlos Lorenzo, o coordenador das Canárias dentro da Comissão Espanhola de Ajuda ao Refugiado, fez questão de destacar quando falei com ele em outubro. "A migração humana, especialmente quando envolve deslocamento forçado, é inevitável", ele insistiu. "A política da UE de terceirizar a segurança da fronteira para outros países (fora da UE) como o Marrocos ou a Tunísia pode até conter temporariamente os fluxos de migrantes em algumas rotas, aplicando medidas repressivas. Mas essas reduções temporárias só acontecem porque empurram as pessoas para pontos alternativos na fronteira sul da UE e as forçam a usar rotas ainda mais arriscadas, como as da Mauritânia e as do Senegal para as Canárias."

De fato, nos últimos 12 meses, mais de 46.000 migrantes chegaram nas Ilhas Canárias, um número 20 por cento mais alto do que o total de 2023, que tinha sido o maior número dos últimos trinta anos. Em uma entrevista recente com o El País, o alto comissário da ONU para refugiados da região do Sahel, Xavier Creach, explicou essa onda com base em dois fatores. Primeiro, o agravamento do conflito armado em Mali que tem deslocado pelo menos 200.000 refugiados para o país vizinho, a Mauritânia. Por causa disso os malianos se tornaram pela primeira vez o maior grupo nacional entre aqueles que chegaram nas Canárias em 2024, à frente de senegaleses e marroquinos.

Mas Creach observa que essa mudança demográfica entre os que chegaram na Espanha tem uma forte relação com um segundo ponto: os controles de fronteira mais rígidos ao longo do Mediterrâneo central estão dificultando ainda mais a chegada de refugiados e de migrantes na Itália, que registrou uma queda de 60 por cento na migração irregular neste ano. Esse era um dos principais destinos europeus para os que fugiam de Mali. Mas em decorrência do acordo de parceria estratégico de um bilhão de euros da Tunísia com a UE no último verão, o estado norte-africano lançou uma ação repressiva brutal contra migrantes, atrapalhando assim a rota norte em direção ao Mediterrâneo e redirecionando os fluxos migratórios provindos do Sahel para as Ilhas Canárias.

Em resposta, a Espanha e a UE combinaram um pacote de 500 milhões de euros para reforçar a capacidade da Mauritânia de conter migrações futuras, com suas forças de segurança envolvidas em muitas das mesmas práticas abusivas usadas contra migrantes em outros países agora "parceiros" da UE, como detenção arbitrária, violência física e deslocamento forçado para o interior do país. Em novembro, surgiram imagens chocantes de centenas de migrantes trancados em um galpão superlotado na Mauritânia, que lembravam imagens de centros de detenção na Líbia. Contudo, o país pouco populoso, com uma costa de mais de 804 km de extensão, ainda não conseguiu reproduzir uma estratégia de contenção abrangente e sustentável. Além disso, há um número cada vez maior de migrantes que chegam de tão longe quanto do Paquistão, de Bangladesh e do Egito na Mauritânia, que se tornou um ponto de entrada alternativo ao Mediterrâneo central.

Responsabilidade espanhola

Mas é evidente que as políticas da coalizão governamental de esquerda da Espanha têm um impacto direto sobre a taxa de mortalidade crescente no Atlântico –– mesmo que muitos comentaristas liberais nos países de língua inglesa elogiem as falas do primeiro-ministro Pedro Sánchez sobre os benefícios da imigração. Com seu discurso, Sánchez se destacou claramente entre os líderes da UE nos últimos meses, especialmente por sua rejeição firme ao plano da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, de enviar requerentes de asilo para centros de internamento na Albânia. Isso, por sua vez, levou o Partido Popular conservativo a acusá-lo de criar "um efeito chamativo" e de fazer a Espanha parecer um destino atraente para migrantes irregulares, enquanto seu líder, Alberto Núñez Feijóo, está cada vez mais adotando táticas de intimidação anti-imigrante que costumavam ser típicos do Vox, o partido de extrema-direita.

Além disso, o governo de Sánchez também parece estar prestes a regularizar nos próximos três anos a situação de 900 mil migrantes não documentados, depois que o parlamento espanhol aprovou o projeto de lei sobre essa questão em novembro. Contudo, a maioria dos migrantes que devem se beneficiar disso vem da América Latina e chegou na Espanha de avião, sem arriscar suas vidas no oceano.

Em contraste, quando se trata da migração ao longo das fronteiras do sul da Espanha, a administração de Sánchez tem impulsionado políticas que colocam as vidas ainda mais em risco. Primeiro, tem aumentado as operações de vigilância aérea e marítima da costa senegalesa em colaboração com a agência de fronteira da UE, Frontex, e com a marinha senegalesa. Com drones aéreos espanhóis monitorando a área e um número crescente de barcos interceptados e retornados ao Senegal, os cayucos são forçados a viajar muito mais longe mar adentro para evitar uma detecção –– dessa forma assumindo riscos ainda maiores.

"A primeira coisa que procuro saber quando ouço notícias de um barco sendo avistado perto da ilha é sua trajetória exata, caso exista a possibilidade que passe longe de El Hierro", explica Juan Miguel Padrón, prefeito da cidade portuária de El Pinar, onde milhares de pessoas chegaram neste ano. Como cayucos não podem mais passar perto do litoral africano, El Hierro, que é a mais ocidental das ilhas Canárias, se tornou nos últimos 18 meses o ponto principal de chegada para os barcos vindo do Senegal. Mas devido às fortes correntezas dessa rota, as embarcações correm o risco de serem arrastadas para o Atlântico. "Houve casos de barcos com 15 a 18 pessoas mortas a bordo aparecendo em Costa Rica e na costa da América Latina", conta Padrón. "Depois de El Hierro, há somente oceano."

O relatório da Caminando Fronteras indica ainda outro aspecto crítico do regime de segurança fronteiriça terceirizado da Espanha, pois descobriu que a "inatividade direta de busca e resgate foi decisiva" em pelo menos 150 casos de morte. A ONG, que administra uma central de emergência para migrantes, dá o exemplo de um cayuco com 150 pessoas que partiu do norte do Senegal em outubro. Caminando Fronteras recebeu um pedido de socorro do barco de madeira cinco dias após a sua partida. A guarda costeira espanhola localizou o barco em uma área no limite das zonas de busca e resgate da Espanha, do Marrocos e da Mauritânia. De acordo com a ONG, os três países passaram vários dias transferindo a responsabilidade do resgate de um país para o outro até o barco finalmente chegar ao litoral da Mauritânia depois de dez dias em alto mar. A essa altura, 28 pessoas haviam morrido.

Ao descrever essas mortes como "uma tragédia completamente evitável", 

Caminando Fronteras acredita que esse caso exemplifica como a Espanha tem transformado até mesmo os serviços de busca e resgate em "mais um instrumento de controle de migração, levando diretamente a um aumento no número de mortes nas rotas migratórias". "O principal é impedir que cheguem na Espanha, nada mais importa", conta um político guineense à ONG. "A Espanha diz (para a guarda costeira marroquina) para ir e o Marrocos pode ir ou não –– o que importa é que avisou que ia, e a Espanha já não é mais responsável… Não importa se os nossos jovens não sobrevivem."

Desaparecimentos coletivos

Daqueles que morrem tentando chegar nas Ilhas Canárias, a grande maioria simplesmente desaparece no Atlântico. Apenas aproximadamente quatro por cento dos restos mortais são recuperados. Da pequena porcentagem de corpos recuperados pelas autoridades espanholas, menos da metade é identificada. Um relatório arrasador de 2022 da Organização Internacional de Migração sobre a Espanha mostrou que é "praticamente impossível para os familiares de migrantes desaparecidos ou falecidos realizarem ou participarem do processo de busca, identificação ou repatriação". Isso fez surgir o fenômeno de centenas de sepulturas anônimas de migrantes nos cemitérios no litoral da Espanha –– muitas ficam apenas a alguns metros de distância das sepulturas coletivas da guerra civil espanhola –– e as famílias ficam muito tempo no escuro em relação ao destino de seus entes queridos.

"Estamos falando de desaparecimentos coletivos", afirmou a diretora da Caminando Fronteras, Helena Maleno, em uma entrevista de 2023. "As autoridades espanholas e europeias estão deixando morrer certas populações de forma seletiva –– abandonando deliberadamente os barcos em alto mar, ou até mesmo, em certos casos, matando-os diretamente em massacres, como temos visto em Tarajal e Melilla."

Como inúmeros especialistas e ONGs já argumentaram, qualquer alternativa para essa necropolítica perversa precisa envolver uma disponibilização de meios de migração seguros, ordeiros e regulares para pessoas do Sul Global, especialmente aquelas que solicitam asilo. Contudo, a direção da política interna da UE impede isso claramente, pois o novo pacto migratório de 2026 do bloco vai provavelmente reforçar os aspectos mais repressivos e punitivos de seu regime fronteiriço. Em especial, tem o objetivo de aumentar as deportações de migrantes irregulares e acelerar o processo de extradição, criando ao mesmo tempo uma nova ambiguidade jurídica em torno dos direitos das pessoas resgatadas pelos serviços de busca e resgate europeus de entrar em território da UE, usando seu novo mecanismo de "triagem".

Ao mesmo tempo, o ministro do Interior da Espanha, Fernando Grande-Marlaska, membro do Partido Socialista centro-esquerdista (PSOE) de Sánchez, está pressionando a Frontex a estender seu mandato na África ocidental para permitir que a agência implemente e conduza diretamente patrulhas na costa da Mauritânia, no Senegal e na Gâmbia. Depois que 2024 confirmou mais uma vez que a rota do Atlântico para as Canárias é a travessia marítima de migração mais mortal do mundo, as condições podem se agravar ainda mais com a intensificação da militarização da fronteira.

Available in
EnglishGermanItalian (Standard)SpanishPortuguese (Brazil)Arabic
Author
Eoghan Gilmartin
Translators
Luna Omine, Nathalie Guizilin and ProZ Pro Bono
Date
20.02.2025
Source
JacobinOriginal article🔗
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