A Assembleia Popular Nacional (ANP) que teve lugar em Cali durante o mês de julho na Universidade del Valle, foi sistematicamente sabotada pelas forças públicas. Porém, a intervenção das guardas cimarrona, indígena e camponesa e os manifestantes na linha de frente garantiram um espaço seguro e pacífico para o encontro.
"A polícia sabe tratar como um policial, a guerrilha como um guerrilheiro, o paramilitar como um paramilitar", diz Manuel Correa, "(...) todos têm a sua ideologia, mas estão muito longe da visão de mundo do povo negro". Correa é líder no município de Ríosucio, Bajo Atrato (Chocó); é também membro da Associação de Conselhos e Organizações Comunitárias do Bajo Atrato (Ascoba) e o segundo no comando da Guarda Cimarrona da região.
Para Manuel, assumir o papel de guarda tem sido um exercício de poder popular que ajuda a manter uma relação estreita com o resgate dos conhecimentos ancestrais dos povos negros. Historicamente, muitos decretos e disposições legais para proteger a autonomia dos territórios coletivos foram estabelecidos, tais como os contidos no Decreto 1745 de 1995, bem como no Acordo de Paz e o Capítulo Étnico. Mas, a realidade daqueles que vivem nestes contextos de constante corrupção, despojo e violações dos direitos humanos é diferente do pressuposto pela lei.
"Eles vêem a Guarda como uma pedra no sapato, porque é também um controle interno e externo. A Guarda não vai resolver todos os problemas, mas pode atribuir tarefas e expor alguém que engane a comunidade", diz Manuel.
A Guarda Cimarrona tem origem nas pessoas negras que foram escravizadas na época colonial e que obtiveram a liberdade fugindo para o Palenque San Basilio (Bolívar), de onde prosseguem na luta.
Num território tão complexo como Chocó, onde estão presentes diferentes grupos armados, legais e ilegais, fazer parte da Guarda Cimarrona é um trabalho arriscado que lhes tem custado ataques, ameaças e assassinatos. Ainda assim, afirmam que diariamente se enchem de força para consolidar um projeto que tem uma resistência histórica em suas entranhas.
Estas práticas comunitárias de poder popular foram reforçadas desde agosto de 2013 quando, pela primeira vez, mais de sete mil vozes de diferentes territórios realizaram o Primeiro Congresso Nacional do Povo Negro, Afrocolombiano, Raizal e Palenquero, em Quibdó (Chocó). Ali se consolidaram muitos dos mandatos com que procuram proteger bacias hidrográficas, terras, animais, sementes, medicina ancestral e práticas culturais.
"Quem somos nós? Guarda Camponesa!
O que defendemos? Vida e território!”
A resistência e organização da Guarda Camponesa nasce das necessidades estruturais das próprias comunidades, que são afectadas por diferentes níveis de violência.
"Sabemos que os governos repressivos nunca tiveram em conta as necessidades dos camponeses. Nos nossos territórios há camponeses que estão a doze horas de distância das principais vias, não há estradas, não há nada. No departamento de Cesar, apenas 1% da população camponesa pode ir à universidade, não temos saúde (...)", assegura David Donado, membro do Movimento dos Trabalhadores Camponeses (MTTC) em Cesar, e um dos líderes da Guarda Camponesa neste departamento.
As guardas camponesas são uma expressão de autonomia por parte das comunidades face a cenários complexos em que o Estado é um dos perpetradores. No extremo norte do país, a Guarda Camponesa de Catatumbo, organizada pela Associação Camponesa de Catatumbo (Ascamcat), surgiu em 2014 como um mecanismo de autoproteção face ao contexto de violência sistemática ancorado em projetos de mineração e energéticos e à erradicação forçada das culturas de coca na região.
"Cesar é um dos departamentos com as maiores reservas de carvão da Colômbia e, segundo a Agência Nacional de Minas (ANM), estas reservas produziram 64% do total deste mineral no país entre 2018 e 2019", diz David. Estas realidades constituem uma luta permanente das guardas camponesas, que se opõem ao modelo econômico extrativista que ameaça os projetos de vida das comunidades.
Segundo os guardas, o atual governo tem um discurso que estigmatiza este trabalho, o que agrava ainda mais a repressão contra os seus membros.
De acordo com o Instituto de Estudios para el Desarrollo y la Paz (Indepaz), dos 310 líderes sociais mortos em 2020, 89 foram identificados como camponeses e 19 como afrodescendentes.
David Donado vê a Guarda Camponesa como uma esperança para os projetos de vida das comunidades rurais. Assim, durante a Greve Nacional, que começou em 28 de abril de 2021, as Guardas Populares desempenharam um papel fundamental que lhes deu um maior reconhecimento pela opinião pública como protetores e defensores da vida.
"O poder popular da guarda se dá mediante a proteção do meio ambiente, dos companheiros, dos vizinhos. Para saber o que acontece à minha volta, resolver, e, a partir daí, começar a ver qual é o gatilho. (...) A guarda não exclui ninguém, mas convida-os a defender e cuidar da nossa mãe terra", descreve Daniela León, uma jovem que é guarda do Conselho Indígena Regional do Cauca (CRIC).
Tal como Daniela, cada vez mais mulheres estão entrando para a Guarda Indígena em Cauca. "Procuramos pôr fim à matança e aos massacres sistematizados nos nossos territórios; é por isso que somos os guardiães do território, e também por isso que se reconheceu a necessidade de criar múltiplas guardas (Cimarrona, urbana, camponesa) para que os membros da comunidade possam preservar a tranquilidade do seu espaço", diz Daniela.
Durante décadas, a Guarda Indígena do Cauca alimentou e cultivou as práticas do poder popular e ancestral herdadas há séculos. Este conhecimento é representado no bastão do comando, que é dado àqueles que são considerados comprometidos com a comunidade.
"Tendo em conta o fato de os nossos líderes estarem ameaçados e a mãe terra estar em perigo devido à chegada das multinacionais, foi necessário tomar e reforçar a Guarda Indígena Kiwe the'gsa/Pu'yaksa'wesx, grupos de pessoas nomeadas pela comunidade, médicos tradicionais e a mais alta autoridade", diz a Associação de Autoridades Territoriais Antigas da Nasa Ancestral.
Para os guardas indígenas, cimarronas e camponeses reunidos na Assembleia Popular Nacional, a germinação de outras guardas, como a ‘Primeiras Linhas’, foi uma grande "surpresa", como disse Manuel, membro da guarda cimarrona. "(...) Foi ótimo encontrar aqui a aceitação de todas as pessoas que fazem parte do movimento popular. Encontramos expressões de tutela em outros cenários, nas cidades, na posse de território, na apreensão de territórios", diz Manuel.
Para as Primeiras Linhas, e segundo a ANP, as suas práticas organizacionais correspondem ao exercício legítimo do protesto social e são também uma resposta à brutal repressão das forças de segurança durante as manifestações.
Em julho, a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH) apresentou 42 recomendações visando o respeito dos direitos humanos dos manifestantes. Com base na sistematização dos números da organização Defender Libertad, entre 28 de abril e 30 de junho 84 pessoas foram mortas, 106 sofreram violência de gênero, 1.790 foram feridas fisicamente (298 delas defensores dos direitos humanos) e 3.274 foram detidas.
Nos próximos meses, espera-se a realização da primeira Assembleia Nacional de Guardas e Primeiras Linhas, quando buscarão consolidar as propostas nacionais e locais ante o atual contexto humanitário.
Nota dos tradutores: as comunidades afro-colombianas organizadas nas cimarronas são símbolos de resistência para a preservação de sua identidade e seus direitos, garantidos pela Constituição colombiana, tal qual as comunidades quilombolas têm direitos constitucionais no Brasil. O “cimarronismo” guarda muitas semelhanças com o “quilombismo”, mas no texto a seguir preservamos o termo original para preservar as especificidades da organização cimarrona. Todes leitores podem encontrar mais sobre as relações entre quilombolas e cimarronas aqui, aqui e aqui. Boa leitura!