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Esta terra é a nossa terra

O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil saiu mais fortalecido que nunca depois de um governo de direita.
O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o maior movimento social do Brasil, luta pela redistribuição de terras ocupando terras agrícolas não utilizadas, respaldado por direitos constitucionais. Seu icônico chapéu vermelho virou símbolo de resistência durante a presidência de Jair Bolsonaro. Hoje, o MST navega por tensões políticas, impulsionando a reforma agrária, mantendo-se na resistência à reação do agronegócio e das forças conservadoras.

Se você foi a um restaurante da moda em São Paulo em 2021 ou 2022, provavelmente viu alguém com o chapéu vermelho. Se você foi ao Mamba Negra, à rave underground com DJs de Berlim, ou a diversas inaugurações de galerias de arte, em suma, se você circulou por onde andava a elite cultural progressista do país, provavelmente, viu o chapéu vermelho.

O chapéu em questão é um boné de beisebol vermelho, que retrata um homem e uma mulher emergindo de um mapa do Brasil na cor verde. O homem levanta um facão bem acima da cabeça, pronto para cuidar das plantações ou, se preferir, para ir à batalha. A imagem tornou-se o logotipo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil, conhecido em inglês como Landless Workers’ Movement, logo após ser fundado, em 1984.

O MST pressiona pela redistribuição de terras ocupando terras controladas pelas elites tradicionais do país ou por capitalistas emergentes que lucram com um boom agrícola. O grupo baseia-se em um artigo da Constituição brasileira, que determina que a terra deve cumprir uma "função social". Se seus membros consideram que a terra é improdutiva ou está sendo mal utilizada, eles montam acampamento e lutam pelo reconhecimento legal dos assentamentos. Após mais de 40 anos, o MST se tornou o maior movimento social da América Latina e talvez do mundo. O movimento reúne cerca de 2 milhões de pessoas em todo o país e é presença constante na ala mais à esquerda da política brasileira.

Durante a presidência de Jair Bolsonaro, de 2019 a 2023, a popularidade do boné vermelho aumentou. Quase todos no MST vêm das camadas mais pobres da sociedade, e quase todas as suas atividades são rurais. Ainda assim, mesmo as crianças do centro da cidade usavam o símbolo do movimento. "Não, irmã", escreveu uma pessoa em um tweet. "Esse chapéu está se tornando um acessório para usar nas baladas”. O Setor de Comunicação do MST respondeu ao post viral com um comunicado à imprensa: “A reforma agrária exige o apoio de toda a sociedade”. O MST se orgulhava de ter pessoas usando seus símbolos. "Mas não se esqueçam!" continuou o comunicado. "Também devemos nos comprometer em apoiar a luta do povo". MST members attend the National Congress in Brasilia with a copy of the group’s newspaper, Sem Terra, in March 2006.

Vermelho por toda parte: Membros do MST vão ao Congresso Nacional em Brasília com um exemplar do jornal do grupo, Sem Terra, em março de 2006.(Evaristo SA / AFP via Getty Images)

A disseminação do chapéu foi, na verdade, o resultado de um plano cuidadosamente elaborado para criar vínculos entre o MST e as forças mais amplas da sociedade durante um período perigoso para a esquerda brasileira. O governo Bolsonaro supervisionou a destruição desenfreada da floresta amazônica, incentivou a posse de armas no país e foi declaradamente hostil ao MST. (O ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro publicou um panfleto sugerindo que um pacote de balas era a solução tanto para os javalis quanto para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Durante sua presidência, o MST optou por desacelerar as ocupações de terras para proteger seus membros. Nesse meio tempo, fez uma aliança tática com elementos progressistas da burguesia urbana e usou seus acampamentos existentes para se tornar um grande produtor de alimentos orgânicos. A estratégia funcionou: Vendendo roupas radicais para os ricos e ajudando a alimentar os pobres, o MST conquistou apoio nas cidades.

Talvez o MST seja a organização com melhor reputação entre os esquerdistas de todo o mundo. Seus admiradores dirão que o grupo conseguiu realizações que escapam aos movimentos progressistas em outros lugares: Mantém uma abordagem radical, pressionando por uma revolução a longo prazo, enquanto fornece casas e renda para a classe trabalhadora brasileira no curto prazo. Adaptou-se às mudanças nas condições sem sofrer grandes rupturas. Em 2019, lutou para tirar Luiz Inácio Lula da Silva, ex e atual presidente do Brasil, da prisão e voltar ao poder, mantendo sua independência do governante do Partido dos Trabalhadores. "Fomos muito inspirados pelo MST como movimento político e social", me fala Enzo Camacho, do ALPAS Pilipinas, um grupo que trabalha para organizar a diáspora filipina em Berlim. Belén Díaz, socióloga e membro do coletivo feminista de esquerda Bloque Latino-americano, foi mais direta: "O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é o movimento social mais respeitado no mundo".

Em outubro de 2022, o Partido dos Trabalhadores recuperou as chaves do palácio presidencial e, apesar de uma tentativa de golpe semelhante à ocorrida em 6 de janeiro (de 2022, nos EUA), promovida por Bolsonaro e seus apoiadores, Lula assumiu a presidência em 2023. Com a democracia protegida e os reacionários fora do poder executivo, o MST adotou uma postura mais ofensiva: Começou a ocupar mais terras improdutivas e voltou a invadir fazendas irregulares. O retorno do movimento à sua forma pré-Bolsonaro pareceu surpreender o governo Lula e gerou alguma atenção da grande mídia. Em 2023, uma manchete do New York Times dizia “Se você não usar sua terra, esses marxistas podem tomá-la”.

Embora Bolsonaro tenha sido derrotado em 2022, seu Partido Liberal conquistou o maior bloco de cadeiras no Congresso. Lula deve trabalhar com as forças de direita financiadas por grandes proprietários de terra e pelo agronegócio predatório, para que seu governo não corra o risco de impeachment ou abusos do sistema legal – como as investidas que derrubaram Dilma Rousseff, a presidente anterior de esquerda, em 2016 e que levaram o próprio Lula à prisão em 2018. O movimento bolsonarista também continuou a usar seu poder, tanto nas instituições oficiais quanto nas bases, para atacar o MST. Para servir seus membros em um país de proporções continentais, o MST precisa se articular com agilidade entre essas forças poderosas e contraditórias. Por um lado, é chamado a servir de modelo para organizações de esquerda em todo o mundo. Por outro lado, as forças da reação nacional continuam determinadas a exterminá-lo.

Visão vermelha: Apoiadores de Lula se manifestam na frente de uma faixa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no estado do Paraná, em março de 2018. (Eraldo Peres / Foto AP)

Em 2023, primeiro ano do atual mandato de Lula, participei da 4ª Feira Nacional da Reforma Agrária do MST, em São Paulo, realizada para apresentar tanto seus membros quanto seus produtos. Era a celebração de uma organização que, surpreendentemente, parecia emergir dos anos Bolsonaro ainda mais forte do que antes. Gilmar Mauro, membro de longa data da diretoria nacional, disse à imprensa reunida para se acostumar com o retorno do MST à pressão ativa. "Temos que deixar de lado essa ideia de que existe um MST bom e um MST ruim, ou que o MST do passado não é o MST do presente", disse Gilmar Mauro. “Se você gosta da nossa comida, se você gosta do nosso arroz orgânico e da nossa manteiga e do nosso trabalho com os que passam fome nas cidades, então precisa entender que tudo o que temos foi conquistado por meio da ocupação”.

Posteriormente, Gilmar Mauro e eu nos encontramos nos escritórios da Secretaria Nacional em São Paulo, ao lado da loja onde o MST vende pilhas de seus chapéus vermelhos. Sentamo-nos em uma grande mesa de madeira, cercada por uma pequena biblioteca, com livros em português, espanhol e inglês. Não é apenas o bronzeado avermelhado de Gilmar Mauro, interrompido pelas mangas de uma camisa azul desbotada, que o denuncia como agricultor. Ele fala com o sotaque arrastado e cantado, que é comum no interior agrícola do Brasil. Vindo de uma família de agricultores sem-terra, subiu no movimento ao longo de décadas para se tornar um de seus líderes mais conhecidos do público. Acadêmicos nos Estados Unidos ou na Europa que leem muito Antonio Gramsci podem chamar Gilmar Mauro de "intelectual orgânico", alguém que defende os interesses da classe de onde veio. Os membros do MST também podem chamá-lo assim porque também leem muito Gramsci em seus programas de educação política.

Embora seja difícil obter números precisos, existem centenas de milhares de famílias no MST. Alguns vivem em fazendas legalizadas (assentamentos) ou em terras ocupadas (acampamentos) que aguardam reconhecimento das autoridades de reforma agrária, e alguns são militantes  em tempo integral (ativistas ou militantes, como preferir). Espalhados por um país com o dobro do tamanho da União Europeia, eles tomam decisões em bate-papos em grupo e em reuniões periódicas, que exigem longas viagens de ônibus. Gilmar Mauro atribui a resiliência do movimento à sua estrutura organizacional. Uma determinada "linha política" é alcançada democraticamente e, após tomarem uma decisão, todos a adotam, mesmo os que nunca gostaram da ideia. Parafraseando a teórica marxista Rosa Luxemburgo, Gilmar Mauro explicou: "É muito melhor para todos nós discutir, planejar e cometer um erro coletivamente do que cada um de nós fazer a coisa certa como indivíduos”.

Era quase pôr do sol, mas Gilmar Mauro bebeu uma quantidade preocupante de café preto enquanto conversávamos. Na parede à sua esquerda estava uma foto do revolucionário mexicano Emiliano Zapata, e à direita, uma foto do MST marchando contra a prisão de Lula em 2018. Uma grande foto do defensor dos direitos indígenas Bruno Pereira e do meu amigo Dom Phillips, um jornalista britânico, estava pendurada em uma parede do lado de fora. Eles foram assassinados enquanto trabalhavam juntos na Amazônia em 2022, como retaliação pelo trabalho de Pereira na defesa das tribos contra invasões ilegais de terras. É o tipo de violência que também persegue o MST.

Jocelda Ivone de Oliveira, 42, faz o possível para se manter acompanhada sobre os acontecimentos nacionais e geopolíticos. Ela mora no estado do Paraná, em um dos acampamentos do movimento, e acompanha os debates do MST pelo celular. Às vezes, vai à capital, Curitiba, para uma reunião. Mas, na maior parte do tempo, dedica-se aos assuntos do dia a dia, em casa, no coração agrícola do Brasil. Jocelda faz parte da direção de coordenação de seu acampamento, onde vivem e trabalham na terra mais de 1.000 pessoas.

A partir da cidade mais próxima, levei algumas horas para chegar ao local. Tive que ziguezaguear e sacolejar por estradas de terra vermelha entre eucaliptos altos. Mas o cenário se ampliou depois que entrei no acampamento e desci até uma pequena vila, onde havia algumas dezenas de pequenos edifícios reunidas em torno de um cruzamento. Os moradores me levaram para a barraca verde que haviam construído para os visitantes. Eu fiquei lá com alguns professores e, em seguida, Jocelda veio para me levar até a escola.

"Todos os dias eu acordo, faço o café da manhã, cuido da minha família e tomamos conta do acampamento", ela me disse. "Mas, todos os dias, tenho medo de que sejamos forçados a sair desta terra, que o governo nos expulse e, mais uma vez, não saibamos o que vai ser do nosso futuro”.

Jocelda e eu subimos uma colina até a escola do acampamento. Agora, a escola faz parte do sistema nacional de educação pública, o que dá acesso a recursos do Estado. Naquele dia, funcionários da Secretaria Municipal de Educação estavam fazendo uma visita e militantes, que trabalham no Setor de Educação do MST serviram bolo e café doce enquanto inspecionavam os novos PCs no laboratório de informática. Descendo a rua, o pequeno Mercado Che Guevara, com uma pintura do revolucionário argentino, estava prestes a fechar, e o bar do outro lado da rua estava prestes a abrir. Em ambos, é possível comprar alimentos produzidos localmente ou produtos industrializados, trazidos da cidade.

Os acampamentos têm uma estrutura organizacional complexa. Idealmente, as responsabilidades são atribuídas com base na capacidade. O Setor de Disciplina faz cumprir as regras; a violência doméstica e o abuso infantil, por exemplo, levam à expulsão automática. O uso de drogas é proibido, principalmente para proteger os acampamentos contra acusações de tráfico ou atividades criminosas. O MST exige pelo menos 50% de mulheres em sua direção nacional, mas nos acampamentos, o percentual costuma ser maior.

O MST também atribui tarefas políticas. Lula estava preso em Curitiba, e durante o 580 dias em que ficou atrás das grades, o MST enviou membros para ficar em frente à prisão, exigindo sua libertação. (Em 2021, a Suprema Corte anulou as acusações de corrupção contra ele.) Durante a vigília, o MST montou um treinamento ideológico no local e psiquiatras ofereciam terapia gratuita aos militantes e seus familiares acampados lá.

Muitos membros do MST aproveitam a chance de ir à cidade para atividades do movimento. Outros, acostumados com a vida tranquila, relutam em ir. Mas o acampamento é estruturado de forma coletiva e algumas tarefas não são opcionais. "Tecnicamente, ninguém é obrigado a fazer nada", brincou um professor de geografia do ensino médio chamado Roberto Soares, enquanto seus alunos devoravam o frango com polenta, um jantar gratuito depois da escola. "Assim como ninguém é obrigado a viver em um acampamento como parte do MST”.

Embora o grupo esteja aqui há muito tempo e tenha formado conexões profundas com a comunidade local, Jocelda tem motivos para se preocupar. Paraná é um importante reduto bolsonarista. Não é apenas que o agronegócio privado é forte aqui e que os eleitores são conservadores. Paraná foi o centro da cruzada anticorrupção apoiada pelos EUA e agora desacreditada que perseguiu o Partido dos Trabalhadores por anos. O juiz que mandou Lula para a prisão, que o Supremo Tribunal Federal considerou que não agiu com imparcialidade, integrou imediatamente o governo Bolsonaro em 2019. Atualmente, é um senador que representa o estado. Para sobreviver aqui, é necessário fazer movimentos delicados e prudentes em relação às forças reacionárias. "O que Bolsonaro queria?", perguntou uma noite Jocelda enquanto estávamos sentados perto de sua casa. "Ele queria uma provocação, para que pudesse usá-la como justificativa para nos massacrar. Não podíamos vencê-lo no confronto direto. Então fizemos o oposto e nos concentramos no que fazemos melhor: produzir alimentos”.

Essa estratégia se mostrou crucial durante a pandemia, quando, apesar da explosão agrícola que agora alimenta grande parte do PIB do país, milhares de brasileiros começaram a passar fome. Em resposta, o MST enviou 7.000 toneladas de alimentos para serem distribuídas nas cidades. Nesse acampamento, cada família produz culturas de subsistência, como mandioca, abóbora, arroz e feijão, além de uma ampla seleção de frutas e alguns animais. Mas, também cultivam um pedaço da terra para culturas comerciais. Com essa renda, compram tratores, carros, planos de celular e óculos de sol legais.

Miriam Barino, uma mulher de meia-idade de fala mansa, supervisiona a agricultura de subsistência do acampamento. Ela tem filhos que trabalham na cidade, e sua vizinha, Marilda Silva Pereira, tem uma filha que trabalha como química na Alemanha. "Eu costumava ser uma fazendeira arrendatária, mas agora não tenho que pagar nenhum aluguel a nenhum proprietário", Miriam me disse enquanto dois moradores cuidavam do solo ao seu lado sob o sol suave do inverno. Ela supervisiona um complicado arranjo de lotes, organizados com papel e caneta, um pedaço de papel desgastado que ela me mostrou em sua cozinha. "Na nossa maneira de ver, a maioria das pessoas que vivem em favelas nas cidades foi expulsa quando grandes fazendeiros as substituíram por máquinas", ela me disse. "O lugar delas é aqui”.

Às vezes, as ocupações do MST se transformam rapidamente em assentamentos. Às vezes levam décadas e, às vezes, são julgadas ilegais ou dispersadas à força. Essa aqui, no Paraná, poderá a dar certo se as autoridades de reforma agrária chegarem a um pagamento adequado do governo aos proprietários de terras. Mas, embora o MST tenha se mudado para a terra há 20 anos, Jocelda, Miriam e os outros continuam sendo ocupantes, não residentes permanentes. Há um grupo de guarda na única entrada que vem da rodovia mais próxima. No dia em que cheguei ao acampamento, tive que me identificar para passar pelas cinco ou seis pessoas que estavam sentadas lá vigiando a barreira enquanto sua grande bandeira vermelha, com o mesmo símbolo do chapéu, voava no alto.

O poder do protesto: Integrantes do MST protestam em Brasília para pressionar o Tribunal Superior Eleitoral a libertar Lula da prisão, em agosto de 2018.(Andre Borges / AGIF via AP)

O MST tem suas raízes em dois movimentos diferentes na história brasileira. As Ligas Camponesas, organizadas pelo Partido Comunista Brasileiro na década de 1950, são seu antecedente mais óbvio. Após o golpe apoiado pelos EUA em 1964, a ditadura militar esmagou as Ligas, compostas por meeiros e outros trabalhadores sem-terra. O movimento também traça sua história até partes da Igreja Católica inspiradas na teologia da libertação. Muitos de seus membros mais antigos têm alguma ligação com a Comissão Pastoral da Terra, um grupo pastoral rural criado durante a ditadura. (Essa linhagem dupla, tanto para padres quanto para marxistas, não é incomum no Brasil: Facções católicas progressistas e ex-guerrilheiros estavam entre os primeiros membros do Partido dos Trabalhadores de Lula).

Mas em seus livros e programas de formação de quadros, o MST se coloca como parte de uma história muito mais longa, que remonta à Roma antiga e serpenteia pelo feudalismo europeu. O movimento considera as lutas pela terra no Brasil como fundamentais: O país nasceu como uma colônia que exportava produtos agrícolas, com terras concedidas a aristocratas no sistema português e mantidas produtivas por indígenas e escravizados. Centenas de anos depois, na visão do MST, esse sistema permanece mais ou menos intacto – exceto que muitos dos descendentes desses trabalhadores foram expulsos da terra e forçados à pobreza e aos perigos da vida urbana.

Nesta conta, há uma série de oportunidades perdidas. Após a abolição da escravatura em 1888, a monarquia não forneceu reparações às pessoas que trabalhavam nas fazendas e o país nunca promulgou a reforma agrária. O MST aponta para os programas de distribuição de terras sob o presidente Abraham Lincoln como parte da razão pela qual os Estados Unidos saltaram à frente da América Latina – com algumas ressalvas importantes, incluindo a negligência dos Estados Unidos com as comunidades ex-escravizados e a destruição das nações indígenas (o movimento defende veementemente o reconhecimento das terras indígenas brasileiras). Então, no século XX, a burguesia brasileira se mostrou fraca demais para pressionar efetivamente pela reforma agrária que teria permitido ao país se industrializar. Os recursos naturais do Brasil permaneceram nas mãos de uma pequena elite predatória, que era impiedosamente extrativista e estupidamente ineficiente.

Como resultado, o Brasil caiu no subdesenvolvimento. A literatura do MST enfatiza que foi justamente o impulso pela reforma agrária, do presidente de esquerda João "Jango" Goulart, que levou os ricos a se unirem em torno do golpe apoiado pelos EUA em 1964. O governo militar que se seguiu elaborou um plano para distribuir pequenos lotes para famílias brasileiras, mas poderosos proprietários de terras bloquearam sua implementação.

A partir do início dos anos 1980, à medida que o país começava a caminhar rumo à democracia, os trabalhadores sem-terra começaram a se mobilizar para que lhes fossem concedidos lotes, especialmente no sul. Seu método era a ocupação, e eles se uniram ao MST em janeiro de 1984. Em 1988, a nova Constituição especificou que a terra poderia, nas condições certas, ser entregue às famílias. Grande parte da legalidade e legitimidade das atividades do MST depende da redação do artigo 186, que estabelece os requisitos mínimos para os proprietários de terras privadas: Eles devem "fazer uso racional e adequado" da terra e "preservar o meio ambiente", cumprindo todas as normas rurais e trabalhistas e o estado deve indenizá-los caso suas propriedades forem retiradas. Mas, assim como acontece com as proteções para a Amazônia e para os povos indígenas, essas promessas colidiram com o poder econômico privado. Sem pressão adicional, os funcionários do Instituto Nacional de Reforma Agrária davam a impressão de nunca fazer nada. Para o MST, a solução foi a ocupação.

Durante os dois primeiros mandatos de Lula, de 2003 a 2010, a economia cresceu, em parte graças às exportações de commodities para a China, mas desacelerou à medida que os preços caíram e o país foi consumido por crises políticas entre 2015 e 2018: Dilma Rousseff foi substituída por Michel Temer, o presidente pró-mercado não eleito. Lula foi preso e, quando Bolsonaro concorreu em 2018, os bons tempos já haviam acabado para os brasileiros de classe média baixa. Com a vitória de Bolsonaro, os ricos proprietários de terras ganharam um apoiador declarado no palácio presidencial. João Pedro Stédile, há muito tempo o intelectual mais proeminente do MST, ficou surpreso com o fato de tão poucas pessoas – além do MST – saírem em defesa do Partido dos Trabalhadores quando Lula foi preso. "Havia uma falta de apoio popular", disse-me Stédile, "porque os trabalhadores já haviam sido derrotados como classe".

Paulo Teixeira, ministro do Desenvolvimento Agrário de Lula, recebeu a tarefa de lidar com a pressão da esquerda e os ataques da direita. "Este governo ouve os movimentos sociais e nós fazemos um filtro", disse-me Teixeira tarde da noite, enquanto se preparava para uma reunião com autoridades da reforma agrária na capital. Ele acredita que as ocupações do MST são uma forma legítima de pressão, mas também não acha que sejam necessárias agora que seu ministério está avançando com a reforma agrária, com foco na distribuição de terras públicas e terras de proprietários em dívida com o Estado.

Houve pelo menos três casos em 2023 em que o MST foi longe demais, disse Teixeira – incluindo ocupações de terras pertencentes a uma empresa de papel e celulose e a uma empresa estatal de pesquisa agrícola. Se o movimento ocupar terras que, ao que parece, estão sendo usadas legalmente, os tribunais não reconhecerão o assentamento e ordenarão a dispersão do acampamento. Às vezes, é escolhido o alvo errado e o MST segue em frente. Mas as ocupações de uma empresa produtiva e de instalações estatais foram mais um "protesto" intencional, explicou Teixeira, embora tenha dito que preferia que o MST tivesse marcado sua posição de outra maneira. "Tudo o que foi feito, toda a reforma agrária que foi realizada, ocorreu dentro da legislação existente e dentro da Constituição".

Após os dois primeiros mandatos de Lula como presidente, quando a popularidade do Partido dos Trabalhadores começou a diminuir, alguns ativistas (e membros) acharam que o MST havia se aproximado demais do governo e deixaram publicamente o grupo. Nos anos sombrios do extremismo de ultradireita, no entanto, muitos passaram a valorizar a estrutura, o pragmatismo e os vínculos institucionais do MST. Agora que Lula está de volta, os líderes do MST reclamam que esquerdistas bem-intencionados (inclusive dentro do governo) lhes dizem que as ocupações já não são mais necessárias, que o foco intenso do grupo pela reforma agrária radical perdeu a relevância em um país cada vez mais urbanizado ou ainda, que o MST deve encontrar uma maneira de viver ao lado do grande agronegócio em vez de tentar substituí-lo.

O MST, é claro, não concorda. Seu setor Frente de Massas atua constantemente na divulgação e recrutamento de brasileiros da classe trabalhadora. A poucas horas de Brasília, no conservador estado de Goiás, um conhecido recrutador local conhecido como Frangão participou ativamente da campanha para fazer exatamente isso. Ao perguntar pela comunidade, ele ajudou a encontrar dezenas de pessoas interessadas em conquistar seu próprio pedaço de terra, formando assim um grupo de futuros revolucionários. Encontrei as mulheres desse grupo na periferia pobre da capital do estado, Goiânia.

João Pedro Stédile at a press conference in Rio de Janeiro in December 2005. O intelectual público: João Pedro Stédile em uma coletiva de imprensa no Rio de Janeiro, em dezembro de 2005.(Vanderlei Almeida / AFP via Getty Images)

Em uma manhã de março de 2023, eles acordaram muito cedo e, juntando-se a um grupo composto por aproximadamente 600 famílias, partiram para ocupar uma grande fazenda nos arredores de Goiânia. Aglomerados em carros e vans, entraram na propriedade e hastearam a bandeira do MST em um mastro feito de cana-de-açúcar. Eles foram preparados para meses, senão anos, de acampamento.

Marlene Pereira de Moraes, 65 anos, uma das novas recrutas, me disse que esperava que o resto de sua família pudesse se juntar a ela em um acampamento bem-sucedido. Eles imaginavam que teriam uma boa chance com a propriedade, já que o proprietário havia sido condenado por tráfico de mulheres para exploração sexual. Mas, o governador do estado tinha outras ideias: Ele havia prometido em sua campanha que não haveria novas "invasões" de terras agrícolas privadas. Ele enviou a polícia militar e usou as forças do Estado para intimidar muitas das famílias a se manterem afastadas. Ueber Alves, advogado do MST, me disse que essa tática é ilegal. Mas quando um governador infringe esse tipo de lei, não está claro quem deve responsabilizá-lo.

De Morães e outros quatro recrutas recentes do MST sentaram-se comigo enquanto aguardavam, em um limbo judicial, para saber se conseguiriam montar seu acampamento. Alguns tinham experiência com agricultura e outros não. Todos eles se mantinham ocupados aprendendo sobre a filosofia do MST. "Eu me joguei no movimento, de corpo e alma", disse-me Avelice Pereira de Sousa. "Queremos ganhar um pedaço de terra e queremos um lugar para crescer, produzir e envelhecer. E nosso objetivo maior, é claro, é a reforma agrária em todo o país”. Francisca Rocha Costa, 68, perguntou-me, muito educadamente, se eles próprios também poderiam gravar a entrevista. Alguém os avisou que jornalistas inescrupulosos poderiam distorcer suas palavras.

No meu último dia em seu acampamento no Paraná, Jocelda passava a tarde com a filha Heloisa enquanto cortavam uma carne de porco. Como costuma acontecer, a conversa se voltou para a história da reforma agrária. "Está claro que Mao só finalmente triunfou na guerra civil porque teve o apoio dos camponeses, o apoio do povo, contra os grandes latifundiários", disse ela. Sua vizinha Edna Santos, diretora do Setor de Educação no local, o que significa que ela supervisiona as escolas que o MST construiu e integrou ao sistema nacional com financiamento público, entrou na conversa, tentando se lembrar de uma palavra em particular. "O que era mesmo que chamavam o tipo de servidão que tinha na Rússia?" ela perguntou. "Servos. Sim, eles viviam sob servidão, enquanto na China era diferente. Eles eram simplesmente camponeses muito pobres”.

Edna, 55, gosta de usar um boné militar com a bandeira cubana, outro dos que o MST vende em lojas nas cidades. Ela chegou ao acampamento em 2019, após uma tentativa fracassada de obter reconhecimento para um assentamento que recebeu o nome do famoso Quilombo dos Palmares, uma comunidade no Brasil colonial formada por africanos escravizados fugitivos. Além de ajudar a administrar a escola, ela atua como DJ nas festas dançantes de sábado à noite do acampamento. "No começo eu toco música gaúcha, mas com o passar da noite, mudamos para música eletrônica mais pesada", ela me disse. O concerto é realizado na "tenda grande", que é mais como um hangar, de onde pendem várias bandeiras vermelhas gigantes do MST e uma bandeira do arco-íris com os dizeres "Toda forma de amor é válida": Todo amor é válido. "Eu que coloquei essa", ela me disse com orgulho.

Terra para todos: Os membros do MST fazem uma marcha em 1984, ano em que a organização foi fundada. (Acervo do MST)

O interesse pela missão revolucionária varia muito em todo o movimento. Há pessoas que se preocupam principalmente em conseguir seu próprio terreno e ter um pouco de paz da violência da cidade. O MST tem um programa para ensinar os membros a ler e escrever, inspirado em um desenvolvido em Cuba, mas é fácil encontrar membros que não passaram por ele e só querem cultivar. Por outro lado, qualquer pessoa que demonstre interesses específicos ou um conjunto específico de habilidades será provavelmente indicada para uma posição de liderança ou terá oportunidades de educação adicional. Podem conseguir uma bolsa de estudos para cursar uma graduação/pós-graduação em agronomia ou ensino, estudando meio período em uma grande universidade próxima. "Se não fosse pela maneira como revolucionou a educação, se não fosse pela maneira como também ocupou o sistema de educação formal, o MST ainda não existiria da maneira que existe hoje", disse Rebecca Tarlau, professora da Penn State que escreveu sobre a pedagogia do MST. "Em 1998, mais ou menos, nenhum líder, talvez João Pedro Stédile fosse o único que tinha diploma universitário".

Depois de uma viagem de sete horas de volta pelo Paraná em direção à costa atlântica, conheci Sara da Lila Wandenberg dos Santos, a coordenadora de 37 anos de um acampamento menor. Formou-se em pedagogia pela universidade estadual próxima, paga pelo MST e depois viajou para São Paulo, para cursar a Escola Nacional Florestán Fernandes, a mais importante das escolas de educação política do MST no país. Lá ela fez o Latininho, um curso de curta duração sobre a história dos movimentos sociais oferecido para ativistas de toda a América Latina. "Eles falavam em espanhol e todos os brasileiros conseguiam entender tranquilamente. O contrário não teria funcionado", disse Lila com uma risada.

Enquanto o acampamento da Jocelda está no centro plano e de terra vermelha do estado, o assentamento menor da Lila está localizado no que resta da densa e enevoada Mata Atlântica. Ao cruzar este estado, na parte relativamente desenvolvida do sudeste do Brasil, você pode dirigir em rodovias e parar em lanchonetes de luxo em áreas de descanso que lembram o Arizona contemporâneo, ou pode dar uma volta por uma longa estrada e encontrar algo mais próximo do oeste americano há 150 anos, uma cidade próspera, alimentada por grilagem ilegal de terras e cujas leis são aplicadas por caubóis e pistoleiros contratados. Lila olhava atentamente através dos óculos de armação preta enquanto conversávamos em seu apartamento, esperando que a filha voltasse da escola e o filho voltasse do treino de tênis de mesa. Se ela quer subir no MST, provavelmente ajuda o fato de seu acampamento ter recebido um prêmio por seus esforços inovadores na recuperação do ecossistema local.

"Na realidade, o processo de formação começa no momento em que as pessoas montam um acampamento", disse Geraldo Gasparin, um dos dois membros que supervisionam o programa nacional de educação política do MST. "Você aprende uma quantidade incrível simplesmente fazendo. Toda a velha geração tem barbas brancas", acrescentou. "Nosso trabalho é formar uma nova geração de militantes".

No dia em que visitei a escola de educação política em São Paulo, um grupo de quadros do MST de todo o país tinha acabado de terminar um curso sobre mulheres pensadoras, brasileiras como Nise da Silveira, Vânia Bambirra e Lélia Gonzalez, que merecem um lugar no cânone ao lado dos homens brasileiros. Confessei a Ruth Teresa Rodrigues dos Santos, coordenadora do armazém do MST no Rio de Janeiro, que não tinha ouvido falar de todos aqueles nomes antes. "Nem eu", respondeu ela. "Essa é uma das coisas que pretendemos mudar".

Depois que Lula voltou ao poder, a direita bolsonarista não esperou muito para lançar um contra-ataque. Alguns de seus principais políticos rapidamente abriram um inquérito parlamentar sobre crimes supostamente cometidos pelo MST. Durante meses, serviu de palco para que parlamentares de direita denunciassem o movimento social.

A comissão ouviu agricultores reclamando da tomada de suas terras e das intermináveis batalhas legais que se seguiram. Um membro de uma dessas famílias de agricultores com quem falei mencionou os Estados Unidos e imediatamente me pediu para não atribuir a citação a ele. "Esse tipo de coisa nunca aconteceria em seu país, porque vocês respeitam o Estado de Direito", disse ele. "E vocês têm uma lei própria para as pessoas que passam dos limites, como é mesmo? 'Vá em frente, faça o meu dia'".

Notei comparações semelhantes com as práticas dos EUA de fazer justiça com as próprias mãos ao longo da reportagem. Enquanto esperava para me encontrar com o deputado Luciano Lorenzini Zucco, presidente da comissão, sentei-me em seu escritório ao lado de uma mochila tática de camuflagem, decorada com a bandeira dos EUA e um emblema do Justiceiro, o logotipo da caveira frequentemente usado pelas tropas e policiais dos EUA. "O direito à propriedade é respeitado nos Estados Unidos", disse-me Zucco assim que chegou. "As leis são rigorosas e são aplicadas se forem desrespeitadas. Os agricultores são valorizados. É por isso que consideramos os EUA como um modelo".

No final de 2023, o inquérito parlamentar havia fracassado sem sequer produzir um relatório final. Mas, ao longo de 2024, ficou cada vez mais claro que o MST também estava limitado por forças institucionais da esquerda. Embora o governo Lula sempre sinalize que está do lado da reforma agrária, o reconhecimento de novos assentamentos está mais lento do que os agricultores do MST gostariam. Os líderes do movimento entendem que Lula tem recursos limitados e pouco espaço de manobra no Congresso, mas também reclamam que ele poderia estar fazendo mais. Em uma entrevista no ano passado, Stédile disse que o movimento estava "realmente de saco cheio da incompetência do governo".

Nos últimos 15 anos, o movimento contou com sua organização e amplo apoio popular para mostrar sua força política, desempenhando um papel fundamental na defesa da democracia brasileira, salvando cidadãos da fome e unindo os pobres rurais e o proletariado urbano em uma luta comum. Mas essas conquistas, embora impressionantes, ainda estão distantes da transformação radical da estrutura fundiária, que é a razão de ser do movimento.

Ajuda alimentar: Quando a pandemia chegou, o MST distribuiu alimentos orgânicos para os pobres das cidades.(Lia Bianchini / Acervo do MST)

Uma vez que a tendência de usar roupas e acessórios do MST realmente se tornou popular, começou rapidamente a deixar de ser moda. Já não se vê o chapéu com tanta frequência. Não é mais a mesma novidade de antes nos espaços alternativos do centro da cidade. Durante o auge da frente única antibolsonarista, alguns militantes brincavam que muitos dos modelos e DJs que usavam o boné provavelmente tinham pais que eram grandes fazendeiros e bancavam seu estilo de vida. Mas o movimento continua muito mais popular do que era há cinco ou 10 anos.

Não houve exatamente uma “guinada” à direita entre as elites culturais do Brasil, como demonstrou o entusiasmado apoio ao drama contra a ditadura Ainda Estou Aqui , mas o momento é diferente. Enquanto em 2021 e 2022, todos estavam mobilizados no esforço desesperado para impedir a formação de outro regime autoritário, no último ano, os progressistas aqui passaram a maior parte do tempo assistindo a um governo de centro-esquerda se atrapalhando e tentando fazer o possível diante de circunstâncias difíceis. No final do ano, os candidatos do MST venceram as eleições em todo o país.

E então, Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. Nos últimos dois anos, o movimento bolsonarista não esconde que considera o republicano como um aliado crucial em sua busca para retomar o poder. No início de 2025, sentei-me novamente com Gilmar Mauro, hoje com 58 anos. Ele tinha acabado de chegar a São Paulo depois de plantar uma oliveira dedicada à Palestina em sua própria fazenda.

"Na nossa visão, os Estados Unidos são um império em declínio e quando os impérios entram em declínio, podem se tornar mais agressivos", ele me disse. Trump, é claro, é tanto a expressão desse declínio quanto o instrumento da agressividade que o acompanha. Se ele estivesse no poder em 2022, quando Bolsonaro lançou seu violento ataque à presidência, a tentativa de golpe poderia muito bem ter sido bem-sucedida. Mauro acredita que o novo governo Trump vai acelerar a catástrofe climática. Que busca não apenas deportar migrantes, mas sujeitar os trabalhadores estrangeiros restantes dos Estados Unidos a condições análogas à escravidão. Que vai atacar os governos de esquerda da região e que os oligarcas de direita que controlam a Internet do mundo vão usar suas plataformas para manipular as eleições. "Qualquer líder mundial com alguns neurônios funcionando precisa desenvolver alianças rapidamente para conter essas forças perigosas", disse ele.

No cenário doméstico, Mauro enumerou uma série de ameaças ao ecossistema brasileiro. O governo de Lula dedicou apenas uma fração do dinheiro necessário para resolver as reivindicações pendentes de reforma agrária, disse ele. "Isso não significa que não houve avanços. Houve". Ele destacou a luta contra a extrema-direita como a tarefa de maior importância histórica, em escala mundial, para o governo Lula. Talvez o mesmo possa ser dito, nos últimos anos, em relação ao MST. “O movimento se tornou uma força organizacional. Agora é um instrumento que pode ir além de sua missão central".

Na noite de 10 de janeiro de 2025, na cidade de Tremembé, no interior do estado de São Paulo, um morador local apareceu na comunidade do MST, Olga Benário, que recebeu o nome da comunista germano-brasileira executada pelos nazistas. Segundo testemunhas, ele acreditava que havia comprado um pedaço da terra e poderia usá-lo como quisesse. Isso é legalmente impossível — as autoridades da reforma agrária haviam designado essa área como assentamento — e representantes do movimento disseram isso a ele. Ele saiu e depois voltou com um grupo de homens armados. Valdir do Nascimento, 52, deu um passo à frente para negociar. Os homens abriram fogo, alvejando o acampamento com balas, disseram os moradores.

"Assim que os tiros começaram e não paravam mais. Foi uma bala após a outra. Então eu vi uma faísca saindo de uma das armas. Depois disso, foi uma cena de terror", disse Roseli Ferreira Bernardo, a quem todos chamam de Binha. Ela me contou a história do lado de fora da casa do Valdir do Nascimento. "Ouvi minha filha me chamar, gritando por socorro. Mas eu me virei e disse: 'Não consigo ajudar. Não consigo andar. Não consigo andar’”.

Binha tinha levado um tiro no pé. Valdir do Nascimento e outro homem, Gleison Barbosa de Carvalho, 28, foram mortos. Mais quatro pessoas ficaram feridas. O MST sempre enfrentou a ameaça da violência. Mas esse ataque ocorreu a apenas duas horas da maior cidade da América do Sul, em uma região que está se desenvolvendo rapidamente. Teixeira, o ministro do Desenvolvimento Agrário, abriu uma investigação e disse que o ataque foi o "fruto das sementes plantadas pelo discurso de ódio da extrema-direita".

O MST respondeu imediatamente. Ativou uma rede de militantes em acampamentos próximos, aliados progressistas nas cidades, contatos na imprensa, advogados do movimento e autoridades parlamentares simpatizantes.

Durante minha visita naquele mês, a comunidade estava em alerta máximo. Entre outros reforços, o movimento enviou Thalita Carvalho, que mora em um acampamento próximo e havia acabado o turno de vigia durante a noite. Quando era criança, ela acreditava na forma que a mídia retratava o MST, como um grupo violento que invadia e roubava propriedades. "Olhe para mim agora", disse ela, "usando botas e com um facão pendurado na cintura". Thalita Carvalho passou muitos anos como profissional do sexo na cidade e muitas vezes foi vítima de violência. Ela me disse que isso deve tê-la tornado mais forte. "Quando entrei para o MST, tive problemas porque bebia e brigava. Eu me acalmei um pouco quando soube que podia confiar em todos e eles decidiram me colocar na equipe de segurança", continuou ela, sorrindo. "Acho que sou a única mulher trans no corpo de segurança".

Ao longo dos anos, mantive contato com as mulheres em Goiás, as recrutadas pelo "Frangão" e pela Frente de Massas. Após meses de espera, eles receberam boas notícias: Eles poderiam retornar à terra que ocuparam. As coisas mudaram rapidamente e as autoridades de reforma agrária anunciaram que poderiam se estabelecer permanentemente no local. Ao contrário do caso na propriedade da Jocelda Ivone de Oliveira, a situação legal da propriedade usada para tráfico era relativamente fácil de resolver e Avelice de Sousa logo assumiu uma posição de liderança em um acordo legal. Ela me enviou uma foto de seu filho brincando em volta de uma plantação de mandiocas, que estavam começando a brotar.

"Voltamos e estamos muito felizes", disse ela. “Mas, ainda não terminamos. Queremos trazer mais pessoas para a terra. No momento, estamos cavando um poço maior.

Vincent Bevins é o autor de A década da revolução perdida: a onda de manifestações que incendiaram o mundo e O método Jacarta: a cruzada anticomunista e o programa de assassinatos em massa que moldou o nosso mundo.

Foto: The Nation

Available in
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Author
Vincent Bevins
Translators
Vitor Abreu, Maria Teresa Stefani and Open Language Initiative
Date
08.07.2025
Source
The NationOriginal article🔗
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