Economy

Reorganização da produção para servir a vida, não o lucro

Jason Hickel defende o desenvolvimento do Sul Global por meio da soberania econômica e do ecossocialismo, rejeitando o capitalismo extrativista para enfrentar as crises climáticas e de desigualdade.
Na palestra GRIP Lecture de 2025, Jason Hickel criticou os modelos convencionais de desenvolvimento, argumentando que a soberania do Sul Global precisa romper com o capitalismo extrativista por meio de transições ecossocialistas. Na sequência houve esta discussão, na qual ele destaca a lei capitalista do valor como causa das crises ecológicas e sociais, defendendo a democratização das finanças e o controle público sobre a produção.

Em 15 de maio de 2025, o antropólogo econômico, teórico do decrescimento e autor de obras populares como Menos é mais, Jason Hickel fez uma provocativa lectio magistralis como parte da terceira palestra anual GRIP na Universidade de Bergen, patrocinada pelo escritório de Bruxelas da Fundação Rosa Luxemburg. Em sua apresentação sobre "A luta pelo desenvolvimento no século XXI", Hickel desconstruiu a ideia de que o desenvolvimento do Sul Global pode ocorrer dentro da lógica do capitalismo extrativista e do imperialismo econômico. Em vez disso, ele argumenta que somente por meio de movimentos em prol da soberania econômica e uma transição ecossocialista será possível escapar das armadilhas da exploração neocolonial.

Após a conferência, ele conversou com Don Kalb, Maria Dyveke Styve e Federico Tomasone sobre estratégias políticas concretas na luta pelo clima e justiça redistributiva, refletindo também sobre as contradições do liberalismo, as crises ecológicas e sociais do capitalismo global e as possibilidades de termos um futuro socialista democrático. Na discussão, Hickel compartilhou sua perspectiva em constante evolução sobre a teoria marxista, criticou os limites da política horizontalista e ressaltou a urgência de construir novos veículos políticos capazes de reagir à emergência planetária.

DK: Ontem, você argumentou que é essencial repensar a Revolução Russa e a história da China – não apenas para a política internacional, mas também para a política da classe trabalhadora e a liberdade global. Percebi que sua narrativa evoluiu para uma leitura mais explicitamente antiliberal da história recente. Isso não era tão claro em The Divide, mas ficou evidente em sua palestra.  Você mudou para uma interpretação mais marxista?

Sim, acho justo dizer isso. Duas coisas estão acontecendo. Primeiro, minha análise se aprimorou com o tempo. Em segundo lugar, quando escrevi The Divide, estava me dirigindo a um público, em sua maioria, não familiarizado – e muitas vezes incomodado – com a linguagem marxista ou socialista. Eu queria me comunicar de forma eficaz com as pessoas que trabalham no desenvolvimento internacional, muitas das quais desconfiam do que consideram rótulos ideológicos.

Essa decisão estratégica teve um custo: The Divide ignora grande parte da questão do socialismo, embora muitos dos países que discuto fossem ou já estiveram socialistas ou engajados em revoluções comunistas. Essa ausência enfraquece a análise. Você não consegue entender a história da desigualdade global por completo sem abordar as tentativas de revolução socialista e do Movimento dos Países Não Alinhados de romper com o imperialismo capitalista e implementar modelos alternativos de desenvolvimento, seguidos pela violenta reação ocidental que assumiu a forma da Guerra Fria.

Desde então, tenho usado cada vez mais conceitos como a lei capitalista do valor, que agora vejo sendo central para explicar nossas crises ecológicas e sociais. Vivemos em um mundo de imenso potencial produtivo e ainda assim estamos enfrentando privações e um colapso ecológico. Por quê? Porque sob o capitalismo, a produção só acontece quando e onde ela é lucrativa. As necessidades sociais e ecológicas são secundárias em relação aos retornos do capital.

DK: Foi exatamente isso que me impressionou. Comparei seu trabalho com o de David Graeber. Vocês dois começam com a antropologia e se expandem para a política, mas a diferença crucial, a meu ver, é que você capta a lei do valor – enquanto Graeber, como anarquista, tende a evitá-la. Você concordaria que as condições contemporâneas nos obrigam a resgatar os principais conceitos marxistas e comunicá-los a um público mais jovem?

Absolutamente. Como estudiosos, devemos usar as melhores ferramentas disponíveis para explicar a realidade material – e os conceitos marxistas permanecem analiticamente convincentes. Estamos em um momento em que essas ferramentas podem ser reintroduzidas e popularizadas de novas maneiras.

David Graeber era um pensador brilhante e extremamente criativo. Aprendi muito com ele – tanto como amigo quanto como estudioso. Mas você está certo, ele abordou a economia política de outra maneira. Nas suas obras mais recentes, especialmente em The Dawn of Everything, ele começou a reconhecer as limitações dos modelos de organização anarquista como o horizontalismo. Ele enxergou a necessidade de hierarquias funcionais – estruturas que podem realmente fazer com que as coisas sejam feitas sem trair os princípios igualitários.

DK: Isso se relaciona com outra questão. Em 2011, a esquerda populista não conseguiu antecipar o que eu chamaria de contrarrevolução global. O que estamos vendo hoje não é apenas um ressurgimento do fascismo – é uma insurgência antiliberal e antineoliberal mais ampla. Algumas forças são anti-woke, outras antiglobalistas e nem sempre compartilham uma ideologia coerente, mas parte da correnteza é antiliberal e potencialmente anticapitalista também. Como seu trabalho lida com essa reação complexa?

É paradoxal. Por um lado, este parece ser o pior momento para falar sobre socialismo. Mas por outro, é justamente o momento certo – porque o liberalismo está visivelmente em colapso e a ascensão do populismo da extrema-direita é um sintoma desse fracasso.

O liberalismo afirma defender os direitos universais, a igualdade e o ambientalismo, mas também se apega a um modelo de produção dominado pelo capital e pela maximização do lucro. Toda vez que esses dois compromissos se chocam, os líderes liberais escolhem o capital – e todo mundo vê a hipocrisia. É por isso que o liberalismo está perdendo legitimidade. O perigo é que, na ausência de uma alternativa de esquerda convincente, os trabalhadores descontentes gravitem em torno das narrativas da direita – teorias da conspiração xenófobas, usando imigrantes como bodes expiatórios e assim por diante. Os fascistas não oferecem soluções reais, mas estão preenchendo um vazio deixado pelos partidos liberais e até social-democratas que abandonaram qualquer crítica estrutural ao capitalismo.

Precisamos de uma alternativa democrática socialista que aborde as contradições profundas do capitalismo, incluindo sua irracionalidade ecológica. Mas construir essa alternativa exigirá veículos políticos reais – não apenas movimentos de protesto, mas partidos de massa com raízes profundas na classe trabalhadora.

DK: Vamos voltar à ideia da lei do valor. Você tocou nisso antes, mas pode explicar por que ela é tão essencial para entender as crises que enfrentamos hoje?

A lei do valor explica por que enfrentamos escassez de bens sociais e ecologicamente essenciais mesmo em uma era de capacidade produtiva sem precedentes. Sob o capitalismo, a produção é guiada não pelas necessidades humanas ou ecológicas, mas pela lucratividade. Se algo não é lucrativo, não é produzido – não importa o quão necessário seja.

Por exemplo, a transição verde. Temos o conhecimento, a mão de obra e os recursos para construir rapidamente infraestruturas de energia renovável, adaptar os imóveis e expandir o transporte público. Mas esses não são investimentos lucrativos, então o capital não os financia. Enquanto isso, continuamos produzindo bens de luxo, combustíveis fósseis e armas – coisas que prejudicam ativamente as pessoas e o planeta – porque são lucrativos. Essa contradição está no cerne de nosso colapso ecológico. 

É engraçado, quando as pessoas falam sobre escassez, muitas vezes se referem ao mundo socialista, ignorando as sanções e bloqueios que essas economias enfrentaram, e que mesmo assim, seus resultados sociais foram melhores do que os dos países capitalistas. Hoje, o próprio capitalismo produz escassez crônica – de moradias acessíveis, saúde, educação e tecnologias verdes. Isso é um resultado direto da lei do valor. Precisamos superá-la se quisermos sobreviver.

FT: Isso me leva à Europa. A União Europeia tentou promover uma agenda capitalista verde nos últimos anos, mas agora estamos vendo uma grande mudança de curso em direção à militarização. O que é surpreendente é que essa agenda está sendo liderada por autodenominados liberais. Starmer no Reino Unido, por exemplo, está na vanguarda. O mesmo se aplica ao Parlamento Europeu. Como você interpreta esse desenvolvimento?

É profundamente perturbador. Durante anos, os líderes europeus nos disseram que não havia dinheiro para investir em descarbonização, serviços públicos ou proteções sociais – porque tínhamos que manter a taxa de déficit e dívida em relação ao PIB para garantir a estabilidade de preços. Mas, de repente, quando se trata de militarização, essas regras são colocadas de lado. Estão dispostos a gastar trilhões em armas e defesa.

Isso revela algo crítico: as regras do déficit nunca foram sobre economia. Elas eram ferramentas políticas usadas para bloquear o investimento em objetivos sociais e ecológicos, mantendo uma escassez artificial de bens públicos. Agora que os gastos militares são politicamente convenientes e lucrativos, os limites desaparecem. É uma traição à classe trabalhadora e às gerações futuras.

Além disso, sua análise é falha. Eles parecem pensar que a militarização trará soberania e segurança para a Europa, mas a verdadeira soberania exige um repensar completo do papel geopolítico da Europa. Isso significaria distanciar-se dos Estados Unidos e buscar a integração e a cooperação pacífica com o resto do continente eurasiano – incluindo a China – e o Sul Global. Em vez disso, as elites europeias permanecem presas na lógica da hegemonia dos EUA. Há décadas, a Europa Ocidental tem sido tratada como uma base avançada para a estratégia militar dos EUA. A Alemanha, por exemplo, está repleta de bases americanas. Os EUA querem que a Europa antagonize o Oriente – mas isso é de interesse para os EUA, não para a Europa. Temos que rejeitar isso. Os verdadeiros interesses da Europa residem na paz e na cooperação com os seus vizinhos.

FT: Essa é uma transição perfeita para minha segunda pergunta: o fardo histórico do imperialismo europeu. As classes dominantes da Europa infligiram enormes danos nos últimos séculos. Como podemos superar esse legado? Existe uma contradição real entre os interesses da classe trabalhadora europeia e os do capital quando se trata de política externa?

É uma pergunta importante. Em primeiro lugar, sim – políticas como a atual onda de militarização estão claramente alinhadas com os interesses do capital europeu. É por isso que elas estão acontecendo. Mas elas vão diretamente contra as necessidades das pessoas comuns e a estabilidade do planeta. Isso revela uma verdade mais profunda: há um conflito fundamental entre os interesses dos trabalhadores e os do capital. Isso nos obriga a desafiar o mito da democracia europeia. Nos dizem que a Europa é referência em relação aos valores democráticos, mas, na realidade, são os interesses do capital que dominam as nossas instituições.

A democracia nunca foi um presente da classe dominante – foi conquistada pelos trabalhadores. Mesmo assim, só conseguimos uma versão superficial. As demandas democráticas originais – desmercantilização de bens essenciais, democracia no local de trabalho, controle sobre as finanças – foram abandonadas. Em vez disso, temos eleições de tempos em tempos entre partidos que servem ao capital em um ambiente midiático dominado por bilionários. Se quisermos uma democracia real, precisamos estendê-la à economia. Isso significa superar a lei capitalista do valor e redirecionar a produção para as necessidades sociais e ecológicas. Isso significa democratizar a criação de dinheiro.

DK: Vamos apanhar esse assunto – dinheiro. Um dos aspectos mais originais do seu trabalho é o foco na produção do próprio dinheiro. Você poderia explicar como a soberania monetária se encaixa em sua crítica mais ampla ao capitalismo?

Sob o capitalismo, o estado detém o monopólio legal sobre a emissão de moeda, mas, na prática, ele concede esse poder aos bancos comerciais. Os bancos criam a grande maioria do dinheiro na economia por meio do processo de concessão de empréstimos. Mas eles só concedem empréstimos quando esperam que sejam reembolsáveis e, portanto, lucrativos – quando servem para acumular capital. Isso significa que o poder de criar dinheiro e, assim, mobilizar trabalho e recursos, está subordinado à rentabilidade capitalista. É uma expressão direta da lei capitalista do valor. As capacidades produtivas só são ativadas se gerarem retornos ao capital. É assim que os bancos conduzem a economia: não para o que precisamos, mas para o que é lucrativo.

Para mudar isso, precisamos de duas coisas. Primeiro, uma estrutura de orientação crediária - um conjunto de regras que direcionam os empréstimos bancários para longe de setores destrutivos, como combustíveis fósseis e emissões de luxo, e para investimentos socialmente necessários. Em segundo lugar, precisamos expandir o papel das finanças públicas. O estado deve criar dinheiro diretamente para financiar bens e serviços essenciais – energia renovável, habitação, transporte público – mesmo que não sejam diretamente lucrativos para o capital privado. 

Existe um mito de que só podemos produzir o que é lucrativo. Mas, na realidade, desde que tenhamos mão de obra e recursos, podemos produzir qualquer coisa que decidirmos coletivamente. A única barreira é política. Assim que democratizarmos a criação de dinheiro, podemos libertar a produção do imperativo do lucro e organizá-la conforme as necessidades humanas e ecológicas.

DK: Isso é convincente. Muitos dos meus amigos de esquerda na Europa argumentam que o euro é o principal obstáculo. Eles defendem o retorno às moedas nacionais para recuperar a soberania. Eu mesmo defendo uma posição diferente: devemos democratizar o próprio euro. Estes são estados pequenos e interdependentes. Retornar às moedas nacionais eleva o risco de divisão e de uma nova dependência de potências externas como os EUA, que nos atiram uns contra os outros. O que você acha?

Tenho muita simpatia para esse argumento. Entendo o apelo da soberania monetária por meio de moedas nacionais – ela oferece controle mais direto sobre a produção e os gastos. Mas também fragmenta a luta. Se cada país da zona do euro tiver que travar de forma independente sua própria batalha de classe pela transformação econômica, o progresso será, na melhor das hipóteses, desigual e vulnerável. Um caminho mais estratégico é reformar as regras do Banco Central Europeu. Isso poderia ser feito rapidamente, em nível institucional. Poderíamos permitir que os Estados-membros expandissem o investimento público imediatamente, suspendendo as restrições da austeridade.

Os críticos dirão que isso aumenta o risco de inflação e, sim, se você simplesmente injetar recursos públicos sem ajustar o resto da economia, poderá aumentar a demanda por mão de obra e recursos limitados. Mas o decrescimento ecossocialista oferece uma solução: reduzir a produção prejudicial e desnecessária de SUVs, navios de cruzeiro, jatos particulares e realocar a mão de obra e recursos para atividades socialmente benéficas. Isso estabiliza os preços, transformando ao mesmo tempo a estrutura da economia.

A inflação não é um obstáculo técnico – é um obstáculo político. A verdadeira razão das regras de austeridade é para preservar um espaço para que o capital possa se acumular sem contestação. Se transferirmos recursos produtivos para bens públicos, ameaçamos o domínio do capital no sistema. É isso que as elites estão tentando evitar quando invocam índices de dívida e limites de déficit.

DK: Houve um momento estranho recentemente. Trump disse, com referência à inflação, algo como: "Em vez de 18 bonecas Barbie, seus filhos terão duas." Seu argumento era que a soberania econômica é mais importante do que a abundância material. Achei incrível - de certa forma, ele está articulando uma espécie de mensagem anticonsumista. Isso não é parte do perigo do fascismo atual? Parece antineoliberal, mas não é anticapitalista.

Isso mesmo, e eu achei esse momento interessante também. Algumas pessoas até alegaram que Trump estava adotando o decrescimento, o que é totalmente errado. O decrescimento é uma ideia fundamentalmente anticapitalista. Significa reduzir a produção ecologicamente destrutiva e desnecessária, aumentando ao mesmo tempo os bens públicos, a regeneração ecológica e a equidade social. Trump não está fazendo nada disso.

Mas há algo que podemos aprender com este momento. Ele conseguiu vender a ideia de sacrifício material – "menos bonecas Barbie" – em nome da soberania e do orgulho nacional. Isso nos diz algo importante: as pessoas estão dispostas a aceitar limites ao consumo se forem enquadrados em uma visão mais ampla e significativa. Muitas vezes, nós, da esquerda, presumimos que as pessoas não aceitarão nenhum tipo de restrição material. Mas isso não é verdade. O que importa é a narrativa. Se oferecermos às pessoas uma visão coerente de liberdade, dignidade, democracia econômica e um planeta habitável, conseguimos agir em prol da transformação. O desafio é elaborar essa narrativa de uma forma que seja emocional e moralmente atraente.

É claro que, para que o decrescimento seja justo, devemos garantir que as necessidades básicas sejam atendidas. É aí que entra uma garantia pública de emprego. Isso nos permitiria redirecionar o trabalho de setores prejudiciais para setores benéficos, com salários dignos e democracia no local de trabalho. Essa é a diferença entre uma transição ecossocialista e a austeridade autoritária.

MDS: Isso me faz pensar em como construir uma alternativa socialista verdadeiramente democrática. Especialmente no Norte Global, como convencemos a classe trabalhadora de que esse futuro – baseado na solidariedade, limites e justiça globais – é, como você disse, melhor do que o que eles têm agora?

É uma pergunta importante. Precisamos ajudar as pessoas a entender que a abundância de consumo no Norte é construída sobre trocas desiguais – sobre a exploração do trabalho e dos recursos do Sul Global. A moda rápida, os eletrônicos baratos, a substituição frequente de produtos – tudo isso depende de um sistema global de apropriação. Mas, mais importante ainda, precisamos mostrar que a classe trabalhadora no Norte, na verdade, não vence sob esse sistema. O que eles ganharam em bens de consumo baratos, eles perderam em agência política, autonomia e liberdade coletiva. Suas demandas por desmercantilização, democracia no local de trabalho e controle sobre a produção foram abandonadas.

O capital usou importações baratas para pacificar a dissidência da classe trabalhadora, enquanto consolidava seu próprio poder. Portanto, o verdadeiro prêmio para os trabalhadores não é outro iPhone – é democracia, dignidade e um futuro vivível. Precisamos reacender essa visão, fundamentada em interesses compartilhados com o Sul Global. A chave é enquadrar a transformação ecossocialista não como uma perda, mas como uma libertação – da exploração, da precariedade e do colapso ecológico. E é aí que a solidariedade se torna real: não a caridade, não o auxílio ao desenvolvimento, mas a luta compartilhada por um mundo melhor.

MDS: Exatamente. Essa é a tensão que percebo. As elites ocidentais carreguem claramente a maior culpa no imperialismo e na destruição ecológica. Mas em países como a Noruega, as pessoas da classe trabalhadora também se beneficiam materialmente da troca desigual – nosso estado de bem-estar social é financiado por rendas do petróleo, importações baratas e extrativismo global. Como construímos a solidariedade anti-imperialista nessas condições? Como apoiamos a mudança revolucionária no Sul enquanto mobilizamos o Norte?

É um desafio essencial e complexo. Primeiro, temos que reconhecer que o cenário mudou desde a década de 1960. Naquela época, muitos líderes do Sul Global chegaram ao poder por meio de movimentos anticoloniais de massas. Eles tinham mandatos para a transformação socialista. Mas com o tempo, esses movimentos foram reprimidos, cooptados ou derrubados – muitas vezes com apoio ocidental – e substituídos por elites compradoras que se beneficiam do atual arranjo imperial. Essas elites não estão interessadas na libertação. Elas estão alinhadas com o capital global, mesmo que suas próprias populações sofram. É por isso que os movimentos emancipatórios de hoje no Sul estão enfrentando não apenas o imperialismo ocidental, mas também suas próprias classes dominantes.

É aqui que entra a libertação nacional. Não é uma questão de ajuda ou de desenvolvimento; trata-se de soberania política e poder coletivo. É preciso que os progressistas ocidentais apoiem esses movimentos – não por meio da caridade, mas por meio da solidariedade. Isso significa romper com a lógica do complexo industrial de desenvolvimento e apoiar revoluções de base que buscam recuperar o controle sobre os recursos, a produção e a governança. Você está certo: os trabalhadores do Norte de fato se beneficiam de algumas maneiras materiais. Mas eles também são profundamente desempoderados. Eles têm bens de consumo baratos, mas não o controle democrático da produção. O capital usou a troca desigual para neutralizar demandas por autonomia e dignidade. Portanto, a classe trabalhadora realmente não ganha. Eles têm ilusões de prosperidade, enquanto seus direitos e liberdades fundamentais são corroídos.

Precisamos de uma estratégia de frente dupla. No Sul Global: movimentos de libertação nacional que desmontam a dependência neocolonial. No Norte Global: movimentos que exigem controle democrático sobre a produção e as finanças. Juntos, eles formam o caminho para acabar com o capitalismo. Não é opcional – é uma necessidade existencial.

DK: Isso faz sentido, mas levanta um problema real de timing político. Se a libertação nacional no Sul cortar os fluxos de valor até o âmago, isso desencadearia inflação, escassez e uma forte reação política. Os movimentos da classe trabalhadora no Norte estarão prontos para responder rápido o suficiente – com investimento público, proteções sociais e uma nova visão? Ou a extrema-direita chegará lá primeiro?

Esse é o perigo crítico. Se não nos prepararmos, poderemos ver um resultado muito sombrio. Imagine um cenário em que o Sul Global comece a se desconectar com sucesso – seja por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota da China, blocos comerciais regionais ou outros meios. Isso cortará os fluxos de mão de obra barata, recursos e lucros para o núcleo imperial. De repente, o consumo no Norte se contrai. Se a esquerda não terá construído um plano pós-capitalista coerente, o capital agirá para preservar seu domínio. E como será isso? Fascismo. Esmagando o trabalho em casa, barateando os salários domésticos, reprimindo a dissidência. Esse é o caminho para o qual acho que Trump está se preparando – não porque ele tenha um plano claro, mas porque a lógica do declínio do império exige isso.

É por isso que devemos apresentar um caminho alternativo real. A boa notícia é que temos os dados. Pesquisas mostram que conseguimos manter ou mesmo melhorar os padrões de vida no Norte com níveis muito mais baixos de uso de energia e recursos. Mas isso requer a desmercantilização de serviços essenciais – habitação, transporte, saúde, educação – para proteger as pessoas da inflação e garantir o bem-estar fora das dependências do mercado. Esta é a tarefa da esquerda: garantir que o colapso do consumo imperial não vire uma porta de entrada para o autoritarismo, mas um trampolim para a democracia e a libertação.

DK: Isso nos leva a uma questão fundamental: a organização política. Acho que todos concordamos que o protesto por si só não é mais suficiente. Vimos enormes mobilizações na última década – Fridays for Future, Extinction Rebellion – mas não resultaram em mudanças reais. O que vem depois?

Exatamente. A cultura de protesto da última década, embora incrivelmente energizante, chegou a um impasse. Enormes manifestações climáticas levaram milhões às ruas. Por um momento, parecia que a classe política teria que reagir. Mas eles não o fizeram. Nada de substancial mudou.

Agora estamos em um momento de acerto de contas. As pessoas se sentem desiludidas porque percebem que essas ações não foram suficientes. A energia se dissipa e o sistema permanece intacto. É por isso que acredito que precisamos voltar a algo sobre o qual muitos não gostam de falar: o partido. Não os partidos tradicionais que operam dentro dos limites das instituições liberais, mas os partidos de massa da classe trabalhadora – veículos para construir um poder real. Estes partidos precisam estar enraizados em sindicatos, comunidades e organizações populares. Eles devem operar com democracia interna, mas também com coerência estratégica. Isso pode significar um retorno a algo como o centralismo democrático, que se mostrou mais eficaz do que o horizontalismo na realização de mudanças estruturais.

FT: Isso ressoa profundamente. Muitos da nossa geração viram a ascensão e queda do "movimento dos movimentos". Acreditávamos no horizontalismo – em assembleias, autonomia, consenso. Mas com o tempo, ficou claro que essas formas não eram duráveis ou eficazes o suficiente para desafiar o capital. Elas foram facilmente neutralizadas ou reprimidas. Agora estamos enfrentando uma crise de desmobilização em massa, especialmente entre a classe trabalhadora. Após décadas de ataques neoliberais, sindicatos e organizações trabalhistas foram esvaziados ou cooptados. Mas, ao mesmo tempo, as promessas da democracia social estão claramente mortas. O capital não compartilha mais nada com os trabalhadores. Portanto, a velha barganha acabou, e a grande questão é: como reconstruir?

Essa é a pergunta do século, e ela começa com clareza sobre quais devem ser as lutas do movimento da classe trabalhadora. No momento, muitos sindicatos estão presos em uma postura defensiva – tentando preservar empregos alinhando-se com o capital, esperando que o crescimento chegue até eles e mantenha seus membros sustentados. Mas essa lógica é uma armadilha. Francamente, é uma vergonha que os sindicatos em 2025 ainda vejam o crescimento capitalista como solução para a precariedade da classe trabalhadora.

Precisamos ir além das lutas no chão de fábrica por salários e condições e recuperar as ambições transformadoras do movimento trabalhista. Isso significa lutar por garantias públicas de emprego, por serviços públicos universais e pelo controle democrático sobre a produção. Os sindicatos precisam estar na vanguarda da transição ecológica e não um obstáculo a ela. Eles precisam romper com a lógica do capital e se alinhar com os interesses mais amplos da humanidade e do planeta. Imaginem isso: conseguimos levar centenas de milhares de pessoas às ruas por demandas salariais. Mas por que não ir mais longe? Por que não exigir a desmercantilização do ensino superior ou o controle dos trabalhadores sobre a indústria? Nós temos os números. Nós temos o poder. O que precisamos é de visão política.

MDS: Quero usar isso como base. Se levamos a sério a reconstrução de partidos de massa, como podemos garantir que eles tenham uma perspectiva internacionalista? A extrema-direita não tem problemas em se organizar além das fronteiras. Eles colaboram. Eles criam estratégias globalmente. Mas a esquerda muitas vezes se retira para as estruturas nacionais – especialmente em lugares como a Noruega, onde as pessoas tendem a se concentrar apenas em proteger o estado de bem-estar social. Como podemos nos organizar transnacionalmente, especialmente através das cadeias globais de suprimentos, onde a maioria da exploração mundial do trabalho realmente acontece?

Esse é um ponto crucial. A imaginação política da esquerda ainda está, em grande parte, confinada pelo Estado-nação, mas o capital é global. As cadeias de suprimentos são globais. O fascismo é cada vez mais global. Nossa resposta também precisa ser.

Precisamos nos organizar ao longo das linhas da cadeia de suprimentos – coordenando greves e campanhas não apenas dentro dos países, mas entre eles. Trabalhadores do Sul Global, especialmente mulheres em fábricas e setores agrícolas, são a espinha dorsal da economia mundial. Se construirmos solidariedade entre eles e os trabalhadores do Norte – com base em lutas compartilhadas em vez de piedade ou caridade – conseguimos interromper o sistema em sua essência. Imagine o poder de ações coordenadas entre os nós de produção – de Bangladesh à Alemanha, do México à Noruega. Esse é o nível de visão estratégica que precisamos desenvolver. Não é apenas possível – é necessário, e começa com a reconstrução das instituições internacionalistas do poder da classe trabalhadora.

FT: Sim, e para concluir – nossos movimentos estão enfrentando uma grande questão geracional. Vimos ondas de mobilização desmoronarem repetidas vezes. As formas antigas não funcionam mais. Mas como reconstituir a organização nas condições atuais, quando a classe trabalhadora parece desmobilizada e as instituições da esquerda ainda estão presas no liberalismo?

É verdade. Passamos por um longo processo de desorientação. O ataque neoliberal desmantelou a infraestrutura organizacional da classe trabalhadora – seus partidos, seus sindicatos, suas plataformas de mídia. Portanto, não estamos começando do zero, mas estamos começando de um lugar muito mais fraco, e você está certo: muitas instituições que ainda existem estão presas em uma mentalidade defensiva. Elas estão se apegando a promessas social-democratas que não se sustentam mais. O capital não precisa mais fazer compromissos. Não está oferecendo nada à classe trabalhadora – nem mesmo estabilidade.

O desafio é reconstruir – não apenas reagir. Precisamos de um novo paradigma organizacional. Isso significa clareza, disciplina e visão de longo prazo. Significa ser assumidamente político. E sim, provavelmente significa um retorno aos partidos de massa – mas enraizados nas condições contemporâneas, aprendendo com os aspectos positivos e os erros do passado.

DK: Isso me lembra algo de uma geração anterior. Na Holanda, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, tivemos movimentos massivos de ocupadores horizontalistas – dezenas de milhares de pessoas dispostas a tomar as ruas, ocupar prédios e resistir fisicamente à repressão policial. Foi revolucionário em relação à energia, embora nem sempre em relação à estratégia. Mas não tínhamos estrutura partidária. E, eventualmente, o estado respondeu com repressão brutal e medidas severas políticas interpartidárias. O movimento foi demolido e, em poucos anos, a Holanda se tornou uma das primeiras democracias neoliberais de "terceira via". Essa história é um aviso.

Exatamente. Vimos esse padrão repetidas vezes. O horizontalismo é ótimo para mobilizar as pessoas rapidamente, para criar momentos de imaginação radical. Mas não é o suficiente. Quando a situação aperta, ele é varrido de cena. Precisamos de estruturas duráveis – organizações capazes de manter a posição, promover demandas e assumir o poder. Precisamos aprender com os fracassos do passado, mas também recuperar os aspectos positivos. Organização, disciplina, clareza de visão – isso não é autoritário. Elas são necessárias. Se não construirmos veículos que possam levar a luta adiante, estamos deixando o campo aberto para uma reação autoritária.

FT: Finalmente, voltando ao início – este é realmente um momento de bifurcação, não é? Como Immanuel Wallerstein costumava dizer, os sistemas mundiais chegam, eventualmente, a pontos em que suas trajetórias se dividem. Ou encontramos um caminho através da transformação, ou entramos em uma espiral de fragmentação, repressão e colapso ecológico.

Exatamente. É isso que torna este momento tão grave. Mesmo que a extrema-direita não esteja totalmente ciente do que está por vir, a lógica do declínio global está nos empurrando para essa direção. À medida que o núcleo imperial perde o acesso à mão de obra e recursos baratos, a classe dominante responderá voltando-se para dentro – esmagando o trabalho doméstico e militarizando a sociedade. Já estamos vendo isso acontecer, e se a esquerda não oferecer uma alternativa – uma visão pós-capitalista enraizada na justiça, democracia e estabilidade ecológica – então o capital administrará a transição por meio da violência e da repressão.

Mas temos uma chance. Sabemos que as necessidades humanas podem ser atendidas com muito menos energia e uso de material. Conseguimos construir serviços públicos universais. Conseguimos estabilizar os preços sem crescimento. Conseguimos reorganizar a produção para servir a vida e não o lucro. Essa é a visão pela qual devemos lutar. Não em abstrato, não um dia, mas agora. Porque o mundo em que poderíamos viver ainda é possível, mas está se esvaindo.

Available in
EnglishSpanishPortuguese (Brazil)GermanFrenchItalian (Standard)Arabic
Authors
Jason Hickel, Don Kalb, Maria Dyveke Styve and Federico Tomasone
Translators
Diuly Kewlen, Nathalie Guizilin and Open Language Initiative
Date
22.08.2025
Source
Rosalux.deOriginal article🔗
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